Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Marilena Chaui

A filósofa Marilena Chaui, 63, endereçou a alunos da USP, onde leciona, uma carta na qual dá satisfações a respeito de seu comportamento diante do escândalo do ‘mensalão’. Segundo Chaui, o ‘silêncio’ que a ela se atribui é uma ‘construção’ dos meios de comunicação, os quais ela critica, enumerando as razões que a fizeram encerrar sua ‘manifestação pública por meio da imprensa’. Chaui diz que decidiu escrever a carta porque soube, por colegas, da ‘perplexidade’ de alunos com sua atitude.


A carta data de 31 de agosto. É, portanto, anterior à participação da filósofa num debate sobre a ‘refundação do PT’, realizado em São Paulo no último dia 12. Nele, Chaui afirmou que o partido foi o grande responsável pela construção da democracia no país e, por isso, seria vítima de ‘ódio’ inédito da direita. Concluiu então com o grito de guerra ‘No pasarán!’ – usado pelos comunistas espanhóis nos anos 30, contra a escalada fascista. A fala de Chaui, registrada pela Folha, dividiu opiniões dentro e fora do PT. (…)’


***


‘‘Prezados alunos,


soube, por alguns colegas professores, que muitos de vocês estão intrigados ou perplexos com meu suposto ‘silêncio’. Digo suposto porque, como lhes mostrarei a seguir, essa imagem foi construída pelos meios de comunicação, particularmente pela imprensa. Na verdade, tenho falado bastante em vários grupos de discussão política que se formaram pelo país, mas tenho evitado a mídia e vou lhes dizer os motivos. Antes de fazê-lo, porém, quero fazer algumas observações gerais.


1. Vocês devem estar lembrados de que, durante o segundo turno das eleições presidenciais, a mídia (imprensa, rádio e televisão) afirmava que Lula não iria poder governar por causa dos radicais do PT, isto é, pessoas como Heloisa Helena, Babá e Luciana Genro. Você não acham curioso que, de meados de 2003 e sobretudo hoje, essas pessoas tenham sido transformadas pela mesma mídia em portadores da racionalidade e da ética, verdadeiros porta-vozes de um PT que foi traído e que teria desaparecido? Como indagava o poeta: ‘Mudou o mundo ou mudei eu?’. Ou deveríamos indagar: a mídia é volúvel ou possui interesses muito claros, instrumentalizando aqueles podem servi-los conforme soprem os ventos?


2. Vocês devem estar lembrados de que, desde os primeiros dias do governo Lula, uma parte da mídia, manifestando preconceito de classe, afirmava que, o presidente da República, não tendo curso universitário nem sabendo falar várias línguas, não tinha competência para governar? Cansando dessa tecla, que não surtia resultado, passou-se a ironizar e criticar os discursos de Lula e seus improvisos. Não tendo isso dado resultado, passou-se a falar o populismo presidencial, isto é, a forma arcaica do governo. Como isso também não deu resultado, passou-se a falar num país à beira da crise, alguns chegando a dizer que estávamos numa situação parecida com a de março de 1964 e, portanto, às vésperas de um golpe de Estado! Como o golpe não veio (ele veio agora, sob a forma de um golpe branco), passou-se a falar em crise do governo (as divergências entre Palocci e Dirceu) e em crise do PT (as divergências entre as tendências).


Penso que um dos pontos altos dessa seqüência foi um artigo de um jornalista que dizia que, na arma do policial que matou o brasileiro em Londres, estava a impressão digital de Lula, pois não criando empregos, forçara a emigração! Além de delirante, a afirmação ocultava: a) que aquele brasileiro estava na Inglaterra há cinco anos (emigrou durante o governo FHC); b) estavam publicados os dados de crescimento do emprego no Brasil nos últimos dois anos. Eu poderia prosseguir, mas creio ser suficiente o que mencionei para que se perceba que estamos caminhando sobre um terreno completamente minado.


3. As duas primeiras observações me conduzem a uma terceira, que julgo a mais importante. Vocês sabem que, entre os princípios que norteiam a vida democrática, o direito à informação é um dos mais fundamentais. De fato, na medida em que a democracia afirma a igualdade política dos cidadãos, afirma por isso mesmo que todos são igualmente competentes em política. Ora, essa competência cidadã depende da qualidade da informação cuja ausência nos torna politicamente incompetentes. Assim, esse direito democrático é inseparável da vida republicana, ou seja, da existência do espaço público das opiniões. Em termos democráticos e republicanos, a esfera da opinião pública institui o campo público das discussões, dos debates, da produção e recepção das informações pelos cidadãos. E um direito, como vocês sabem, é sempre universal, distinguindo-se do interesse, pois este é sempre particular. Ora, qual o problema? Na sociedade capitalista, os meios de comunicação são empresas privadas e, portanto, pertencem ao espaço privado dos interesses de mercado; por conseguinte, não são propícios à esfera pública das opiniões, colocando para os cidadãos, em geral, e para os intelectuais, em particular, uma verdadeira aporia, pois operam como meio de acesso à esfera pública, mas esse meio é regido por imperativos privados. Em outras palavras, estamos diante de um campo público de direitos regido por campos de interesses privados. E estes sempre ganham a parada.


Apesar de tudo o que lhes disse acima, fiz, como os demais (no mundo inteiro, aliás), uso dos meios de comunicação, consciente dos limites e dos problemas envolvidos neles e por eles. Exatamente por isso, hoje, vocês perguntam por que não os usei para discutir a difícil conjuntura brasileira. Tenho quatro motivos principais para isso. O primeiro, é de ordem estritamente pessoal. Os que fizeram meu curso no semestre passado sabem que mal pude ministrá-lo em decorrência do gravíssimo problema de saúde de minha mãe. Aos 91 anos, minha mãe, no dia 24 de fevereiro, teve um derrame cerebral hemorrágico, permaneceu em coma durante dois meses e, ao retornar à consciência, estava afásica, hemiplégica, com problemas renais e pulmonares. De fevereiro ao início de junho, permaneci no hospital, fazendo-lhe companhia durante 24 horas. Cancelei todos os meus compromissos nacionais e internacionais, não participei das atividades do ano Brasil-França, não compareci às reuniões do Conselho Nacional de Educação, não participei das reuniões mensais do grupo de discussão política e não prestei atenção no que se passava no país. Assim, na fase inicial da crise política, eu não tinha a menor condição, nem o desejo, de me manifestar publicamente.


O segundo motivo foi, e é, a consciência da desinformação. Vendo algumas sessões das CPIs e noticiários de televisão, ouvindo as rádios e lendo jornais, dava-me conta do bombardeio de notícias desencontradas, que não permitiam formar um quadro de referência mínimo para emitir algum juízo. Além disso, pouco a pouco, tornava-se claro não só que as notícias eram desencontradas, mas que também eram apresentadas como surpresas diárias: o que se imaginava saber na véspera era desmentido no dia seguinte. Mas não só isso. Era também possível observar, sobretudo no caso dos jornais e televisões, que as manchetes ou ‘chamadas’ não correspondiam exatamente ao conteúdo da notícia, fazendo com que se desconfiasse de ambos. A desinformação (como disse alguém outro dia: ‘da missa, não sabemos a metade’), não permitindo análise e reflexão, pode levar a opiniões levianas, num momento que não é leve e sim grave.


Além disso, a notícia já é apresentada como opinião, em lugar de permitir a formação de uma opinião. Por isso mesmo, a forma da notícia tornou-se assustadora, pois indícios e suspeitas são apresentados como evidências, e, antes que haja provas, os suspeitos são julgados culpados e condenados. Esse procedimento fere dois princípios afirmados em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, quais sejam, todo cidadão é considerado inocente até prova em contrário e ninguém poderá ser condenado por suas idéias, mas somente por seus atos. Ora, vocês conhecem o texto de Hegel [filósofo alemão, 1770-1831], na ‘Fenomenologia do Espírito’, sobre o Terror (em 1793), isto é, a transformação sumária do suspeito em culpado e sua condenação à morte sem direito de defesa, morte efetuada sob a forma do espetáculo público. Essa perspectiva, como vocês também sabem, é também desenvolvida por Arendt [Hannah Arendt, filósofa alemã, naturalizada norte-americana, 1906-1975] e Lefort [Claude Lefort, filósofo francês] a respeito dos totalitarismos e seus tribunais, e para isso ambos enfatizam, na Declaração de 1789, o princípio referente à não criminalização das idéias, assinalando que nos regimes totalitários a opinião dissidente é tratada como crime.


Assim, na presente circunstância brasileira, a impressão geral deixada pela mídia é da mescla de espetáculo e terror, tornando mais difícil do que já era manifestar idéias e opiniões nela e por meio dela.


Meu terceiro motivo será compreendido por vocês quando lerem os artigos de jornal que inseri no final desta carta. Um artigo foi escrito antes da posse de Lula [‘Desconfiança saudável’, na Folha, em 8.dez.2002], alertando para o risco de uma ‘transição’, isto é, um acordo com o PSDB. Os outros dois foram escritos em 2004, quando do ‘caso Waldomiro’ [ambos na Folha: ‘A disputa simbólica’, em 18.fev.2004, e ‘Em prol da reforma política’, em 11.mar.2004]. Ambos insistem na necessidade urgente da reforma política. Os fatos atuais (ou o que aparece como fato) não modificam em nada o que escrevi há quase um ano, pelo contrário, reforçam o que havia dito e por isso não vi razão para voltar a escrever, pois eu escreveria algo ridículo, do tipo: ‘Como já escrevi no dia tal em tal lugar…’. Ou seja, se meu segundo motivo me leva a considerar que não há a menor condição para opinar no varejo sobre cada fato ou notícia, o meu terceiro motivo é que, no que toca ao problema de fundo, já me manifestei publicamente.


Resta o quarto motivo. Aqui, há duas ordens diferentes de fatos que penso ser necessário apresentar. A primeira, se refere ao ciclo ‘O Silêncio dos Intelectuais’; a segunda, à atitude da mídia. Há 20 anos, Adauto Novais organiza anualmente ciclos internacionais de conferências e debates sobre temas atuais. Sempre com um ano de antecedência, Adauto se reúne com alguns amigos para discutir e decidir o tema do ciclo. Participo desse grupo de discussão. Em abril de 2004, quando nos reunimos para decidir o ciclo de 2005, alguns membros do grupo (entre os quais, eu) preparavam-se para um colóquio, na França, cujo tema era ‘Fim da Política?’, outros iam participar de um seminário, nos Estados Unidos, sobre o enclausuramento dos intelectuais nas universidades e centros de pesquisa, e outros iniciavam os preparativos para a comemoração do centenário de Sartre, símbolo do engajamento político dos intelectuais.


Nesse ambiente, acabamos propondo que o ciclo discutisse a figura contemporânea do intelectual e Adauto propôs como título ‘O Silêncio dos Intelectuais’. Uma vez feitos os convites nacionais e internacionais aos conferencistas, recebidas as ementas e organizada a infra-estrutura, Adauto fez o que sempre faz: com muitos meses de antecedência, conversou com jornalistas, passou-lhes as ementas, explicou o sentido e a finalidade do ciclo.


Ou seja, no início de 2005, a imprensa tinha conhecimento do ciclo e de seu título. E eis que, de repente, não mais que de repente, durante a crise política, alguns falaram do ‘Silêncio dos Intelectuais’, referindo-se aos intelectuais petistas! Curiosa escolha de título para uma matéria jornalística… [‘O silêncio dos inocentes’, reportagem da Folha em 19.jun.2005] Veio assim, sem mais nem menos, por pura inspiração. Mais curiosa ainda foi essa escolha, se se considerar que, ao longo de 2005, praticamente todos os intelectuais petistas (talvez com exceção de Antonio Candido e de mim) se manifestaram em artigos, entrevistas, programas de rádio e de televisão!!! Onde o silêncio? Como eu lhes disse, notícias são produzidas sem ou contra os fatos. E com as notícias vieram as versões e opiniões, os julgamentos sumários e as desqualificações públicas, culminando no tratamento dado ao ciclo, quando este se iniciou.


A mídia decidiu que o ciclo se referia aos intelectuais petistas, apesar de saber que fora pensado em 2004, de ler as ementas, de haver participantes que não são petistas, para nem falar dos conferencistas estrangeiros. O ciclo virou espetáculo.


Uma revista afirmou que, entre os patrocinadores (Minc, Petrobras e Sesc), estavam faltando os Correios. Uma outra afirmou que os participantes eram intelectuais do tipo ‘porquinho prático’ (não explicou o que isso queria dizer). Um jornal colocou a notícia da primeira conferência (a minha) no caderno de política, sob a rubrica ‘Escândalo do Mensalão’, com direito a foto etc.


A segunda ordem de fatos está diretamente relacionada comigo. Quando publiquei o artigo sobre o ‘caso Waldomiro’, um jornalista escreveu uma coluna na qual me dirigiu todo tipo de impropérios e usou expressões e adjetivos com que me desqualificava como pessoa, mulher, escritora, professora e intelectual engajada.


Não respondi. Apenas escrevi o segundo artigo, sobre a reforma política, e dei por encerrada minha intervenção pública por meio da imprensa. A partir de então, além de não publicar artigos em jornais, decidi não dar entrevistas a jornais, rádios e televisões (dei entrevistas quando tomei posse no Conselho Nacional de Educação porque julgo que, numa República, alguém indicado para um posto público precisa prestar contas do que faz, mesmo que os meios disponíveis para isso não sejam os que escolheríamos). A seguir, veio a doença de minha mãe e, depois, a crise política como espetáculo.


No entanto, paradoxalmente, não fiquei fora da mídia: houve, por parte de jornais, revistas, rádios e televisões, solicitações diárias de entrevistas e de artigos; a matéria jornalística ‘O silêncio dos Intelectuais’, não tendo obtido entrevista minha, citava trechos de meus antigos artigos de jornal; matérias jornalísticas sobre o PT e sobre os intelectuais petistas traziam, via de regra, uma foto minha, mesmo que nada houvesse sobre mim na notícia.


Finalmente, quando se iniciou o ciclo sobre o silêncio dos intelectuais, um jornal estampou minha foto, colocou em maiúsculas NÃO FALO (resposta que dei a um jornalista que queria uma entrevista quando da reunião dos intelectuais petistas com Tarso Genro, em São Paulo) e o colunista concluía a matéria dizendo que o silêncio dos intelectuais petistas era, na verdade, o silêncio de Marilena Chaui, o qual seria rompido com a conferência [‘Ciclo expõe mal-estar e silêncio da academia’, reportagem da Folha em 21/08/2005].


Resultado: jornais e revistas, com fotos minhas, não deram uma linha sequer sobre a conferência, mas pinçaram trechos dos debates, sem mencionar as perguntas nem dar por inteiro as respostas e seu contexto, transformando em discurso meu um discurso que não proferi tal como apresentado.


E entrevistaram tucanos (até as vestais da República, Álvaro Dias e Artur Virgílio!!!), pedindo opinião sobre o que decidiram dizer que eu disse! E os entrevistados opinaram!!! Num jornal do Rio de Janeiro e num de São Paulo, FHC disse uma pérola, declarando que por não entender de Espinosa, não fala nem escreve sobre ele e que eu, como não entendo de política, não deveria falar sobre o assunto. Como vocês podem notar, o princípio democrático, segundo o qual todos os cidadãos são politicamente competentes, foi jogado no lixo.


Qual é o sentido disso? Deixo de lado o fato de ser mulher, intelectual e petista (embora isso conte muitíssimo), para considerar apenas o núcleo da relação estabelecida comigo. A mídia está enviando a seguinte mensagem: ‘Somos onipotentes e fazemos seu silêncio falar. Portanto, fale de uma vez!’ É uma ordem, uma imposição do mais forte ao mais fraco. Não é uma relação de poder e sim de força.


Vocês sabem que a diferença entre a ordem humana, a ordem física e a ordem biológica (para usar expressões de Merleau-Ponty [filósofo francês, 1908-1961]) decorre do fato de que as duas últimas são ordens de presença enquanto a primeira opera com a ausência. As leis físicas se referem às relações atuais entre coisas; as normas biológicas se referem ao comportamento adaptativo com que o organismo se relaciona com o que lhe é presente; mas a ordem humana é a do simbólico, ou seja, da capacidade para relacionar-se com o ausente.


É o mundo do trabalho, da história e da linguagem. Somos humanos porque o trabalho nega a imediateza da coisa natural, porque a consciência da temporalidade nos abre para o que não é mais (o passado) e para o que ainda não é (o futuro), e porque a linguagem, potência para presentificar o ausente, ergue-se contra nossa violência animal e o uso da força, inaugurando a relação com o outro como intersubjetividade.


Num belíssimo ensaio sobre ‘A Experiência Limite’, Blanchot [Maurice Blanchot, escritor e crítico francês, 1907-2003] marca o lugar preciso em que emerge a violência na tortura de um ser humano. A violência não está apenas nos suplícios físicos e psíquicos a que é submetido o torturado; muito mais profundamente ela se encontra no fato horrendo de que o torturador quer forçar o torturado a lhe dar o dom mais precioso de sua condição humana: uma palavra verdadeira.


NÃO FALO.


Vocês já leram La Boétie [Étienne de la Boétie, filósofo francês, 1530-1563, amigo do filósofo Michel de Montaigne]. Sabem que a servidão voluntária é o desejo de servir os superiores para ser servido pelos inferiores. É uma teia de relações de força, que percorrem verticalmente a sociedade sob a forma do mando e da obediência. Mas vocês se lembram também do que diz La Boétie da luta contra a servidão voluntária: não é preciso tirar coisa alguma do dominador; basta não lhe dar o que ele pede. NÃO FALO.


A liberdade não é uma escolha entre vários possíveis, mas a fortaleza do ânimo para não ser determinado por forças externas e a potência interior para determinar-se a si mesmo. A liberdade, recusa da heteronomia, é autonomia. Falarei quando minha liberdade determinar que é chegada a hora a vez de falar.’’


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Duas abordagens petistas — tópico de Alberto Dines no OI no Rádio [rolar a página]



Merval Pereira


‘O governo reage’, copyright O Globo, 21/09/05


‘A nota que o presidente interino do PT, ex-ministro Tarso Genro, divulgou na segunda-feira com críticas ao que classifica de ‘festival denuncista’ da mídia e ‘covardia’ das CPIs faz parte de uma reação combinada com o governo depois de diversas reuniões do novo ‘núcleo duro’ do Palácio do Planalto, que identificou nas CPIs uma manobra de setores minoritários da oposição para tentar derrotar o governo antes das eleições de 2006.


O chamado gabinete de crise, formado pelos ministros Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência; Márcio Thomaz Bastos, da Justiça, e Dilma Rousseff, da Casa Civil, considera a CPI dos Bingos, onde ontem depôs o doleiro Toninho da Barcelona, a mais fora de controle do que seria parâmetros políticos normais, e há quem no governo já pense até em recorrer ao Supremo Tribunal Federal para impedir que as CPIs assumam investigações paralelas, em vez de se aterem aos chamados ‘fatos determinados’.


É na CPI dos Bingos, onde a oposição tem a maioria, que os depoimentos polêmicos são realizados, depois que muitas vezes são barrados pela situação nas demais CPIs. Foi o caso do doleiro, que só depôs graças a uma artimanha do senador pefelista Antonio Carlos Magalhães, que pediu a convocação de um senhor Antônio Oliveira Claramunt, que os governistas não identificaram como sendo o doleiro.


O governo cobra também da oposição uma postura cuidadosa em relação à economia do país, alegando que as acusações ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e a seu irmão, e a convocação de doleiros para depor no Congresso, pode inquietar os investidores internacionais, que se sentiriam inseguros com a politização dessas questões.


Também a convocação do irmão do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, que acusou membros do PT de atuarem ilegalmente na arrecadação de financiamentos de campanhas eleitorais irritou o governo, que alega que a investigação do assassinato do ex-prefeito nada tem a ver com a investigação sobre os bingos, e deveria estar restrita ao Ministério Público de São Paulo. A convocação de Gilberto Carvalho, chefe-de-gabinete do presidente, acusado de ser o recolhedor do dinheiro do PT no interior paulista, foi tida como uma provocação pelo Palácio do Planalto.


Outra possibilidade que deixa o governo em estado de alerta é a convocação do juiz Rocha Mattos, outro preso condenado que se oferece para depor no Congresso com acusações ao PT no episódio de Santo André. A tentativa de ligar o assassinato do ex-prefeito a um esquema nacional de corrupção, que teria sido montado pelo PT, é vista pelo governo como um sinal de que há setores oposicionistas que ainda não desistiram de relacionar o Palácio do Planalto a atos criminosos, com o objetivo de obter o impedimento do presidente Lula.


Nas análises dos governistas, a bancada do PT está agindo desde o início da crise política com exagerado defensivismo, devido a um sentimento de culpa que impede uma atuação política mais definida. O depoimento do ex-ministro Luiz Gushiken na CPI dos Correios é tido como exemplar desse ponto de vista, pois ele rebateu todas as denúncias sobre supostas influências nos fundos de pensão, e ainda teve condições de defender o governo com vigor.


O fato é que o Palácio do Planalto está identificando sinais positivos em pesquisas de opinião pública que, se não mostram uma recuperação do prestígio do presidente Lula, indicam que o eleitorado já estaria detectando sinais de politização excessiva das CPIs, e cansando das inúmeras denúncias que são feitas sem conclusão.


Alguns emissários do governo já estão em campo conversando com líderes oposicionistas que consideram ‘mais equilibrados’, para tentar circunscrever as apurações das CPIs a fatos concretos. Nessas conversas, o recado tem sido sempre o mesmo: o governo admite que o PT tem que pagar pelos desvios de conduta que cometeu, mas não é aceitável que se queira interromper um governo legitimamente eleito com acusações infundadas.


A insistência com que a oposição tenta levar até o presidente Lula as acusações de corrupção faz com que o Palácio do Planalto retorne à tese do golpismo, que foi sua primeira reação quando estourou a crise política, e também o PT retomou esse tema na nota que divulgou na segunda-feira.


Os interlocutores do presidente garantem que ele não pretende voltar a tensionar essa crise com discursos de acusações às elites golpistas, como chegou a fazer no início da crise, mais motivado, alegam, pelas acusações pessoais à sua família do que por um desejo político de confrontar-se com a oposição através dos movimentos sociais.


Mas há implícita nessas conversas, também, a mensagem de que o Palácio do Planalto tem mantido esses movimentos sociais sob controle, mas pode apelar a eles caso considere que a atuação das oposições esteja passando dos limites políticos que considera aceitáveis.


Assim como Tarso Genro disse que se enganam os que pensam que o PT está ‘adormecido’ pela crise, o governo já está se sentindo com força suficiente para reagir ao que considera ‘excessos’ dos adversários políticos. Ou reúne as forças que lhe restam para lutar contra o que classifica como ato deliberado da oposição de ligar o Palácio do Planalto a crimes, com o objetivo de conseguir o impedimento do presidente Lula.’



Roldão Arruda


‘Intelectuais alertam para manobra entre partidos ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/05


‘Foi lançado ontem em Campinas o manifesto Pela Investigação Rigorosa da Corrupção, pela Punição dos Envolvidos e pela Democracia. Assinado por 165 intelectuais de sete Estados, alerta para o risco de entendimento entre PT, PSDB e PFL para conter as investigações, blindando a economia. ‘Queremos a punição de corruptos e corruptores’, disse o cientista político Armando Boito Jr., da Unicamp, um dos articuladores do texto. ‘A investigação não pode parar toda vez que aponta para o Ministério da Fazenda ou o Planalto.’


O manifesto, segundo Boito, representa o pensamento de setores da esquerda que se sentem traídos com o governo Lula e os rumos do PT. ‘São economistas, cientistas políticos, educadores, ex-militantes e militantes do PT. Entendem a gravidade da situação, mas sabem que é necessário intervir de modo corajoso, caso contrário a esquerda vai morrer abraçada a essa banda podre do PT, sob o comando do Campo Majoritário. E se Ricardo Berzoini vencer a eleição interna, o PT não conseguirá retomar o antigo projeto. É impossível mudar o PT se continuar na mão do Campo.’


A apresentação do manifesto ocorreu num intervalo do debate A Esquerda e a Crise Política no Governo Lula, promovido pelo Centro de Estudos Marxistas. De maneira geral, os debatedores mostraram desencanto com o governo. O economista Plínio de Arruda Sampaio Jr., da Unicamp, disse que este governo é pior que o de FHC: ‘Aquele governo tinha pelo menos uma oposição firme de esquerda ao modelo neoliberal. Lula desmobilizou a esquerda. Se Fernando Henrique procurava esmagar os movimentos sociais, o de Lula trata de cooptá-los. A médio e a longo prazos o resultado é o mesmo: a neutralização do conflito social.’’



Lilian Christofoletti e Ana Paula Boni


‘Lula sabia do ‘mensalão’, afirma Gabeira’, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/05


‘O deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ) disse ontem não ter dúvidas de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tinha conhecimento da prática do ‘mensalão’ -pagamento em troca do apoio de parlamentares. Gabeira, 64, afirmou também que irá defender em plenário a cassação do ex-ministro José Dirceu (PT-SP).


‘Claro que o presidente Lula sabia [do ‘mensalão’]. Ele está escondido, agarrado no braço de Juscelino [Kubitschek], mas é claro que ele sabia’, disse o deputado, em referência a recentes declarações de Lula sobre ser vítima de conspirações semelhantes às sofridas por Juscelino.


Gabeira foi o sétimo sabatinado pela Folha neste ano. Participaram do debate a colunista da Folha e vereadora em São Paulo Soninha Francine (PT), o editor de Cotidiano, Rogério Gentile, e a diretora da Sucursal do Rio, Paula Cesarino Costa. O colunista Clóvis Rossi coordenou o evento.


Questionado sobre um eventual impeachment de Lula, Gabeira afirmou que só em três ou quatro meses, após a conclusão de todas as investigações, haverá base legal para discutir isso no Congresso.


Quanto a Dirceu e aos demais deputados citados no escândalo, ele defendeu a cassação. ‘Nenhum Parlamento pode aceitar que um dirigente político organize um processo de compra de deputados e de transferência de deputados. Assim, acho que foi um crime contra a democracia.’


Ao defender a cassação de Dirceu, o deputado foi aplaudido pela platéia. ‘Acredito que ele [Dirceu] se perdeu pelo caminho. E, pelos dados que eu tenho, votarei pela sua cassação.’


O deputado falou dos ‘momentos trágicos’ que teria presenciado antes de se desfiliar do PT, em outubro de 2003. ‘Eu vi a ocupação partidária. Não denunciei à época porque isso não era muito claro. Foi horrível. Tiraram muita gente competente para colocar gente menos competente. Começaram a desviar dinheiro para campanhas do PT. Foi horrível.’


Um dos momentos trágicos citados foi a substituição da antiga direção do Inca (Instituto Nacional do Câncer) por um aliado. No início da gestão de Lula, em 2003, entrou Jamil Haddad (PSB) para dirigir o hospital -cargo que ocupou por apenas quatro meses.


‘É verdade que ele [Haddad] foi médico, mas câncer ele só conhece o do horóscopo’, ironizou Gabeira. Depois do relato, o deputado concluiu dizendo que do PT não se salva nada.


‘Mas não se salva nada? Nada salva?’, perguntou a vereadora petista. ‘Então, responda você, o que é que se salva?’, perguntou ele. ‘Perguntei primeiro’, contestou Soninha. ‘Existe um trabalho que avançou em relação ao governo Fernando Henrique, o combate ao trabalho escravo. Acho que isso melhorou’, disse Gabeira.


O deputado disse que dificilmente disputaria algum cargo no Executivo (‘não ganharia nem de um poste’). Questionado por uma pessoa da platéia sobre a possibilidade de votar nos tucanos José Serra ou Geraldo Alckmin para a Presidência, disse que, com certeza, não votaria em Lula.IMPRENSA E CRISE


Ao criticar o papel da imprensa diante da crise, Gabeira disse que as notícias precisariam ser melhor sistematizadas, com um formato mais pedagógico para o leitor. Além disso, lamentou que a imprensa ‘tenha se desinteressado completamente do Parlamento’, apenas cobrindo com amplitude as eleições para o Executivo.


Ainda sobre a crise, Gabeira -que disse ter ouvido sobre o ‘mensalão’ quando Miro Teixeira saiu do governo, em 2004- também defendeu a cassação de todos os deputados envolvidos.


Ele citou especificamente e de forma repetida Dirceu. Os dois se conheceram no período do regime militar. O deputado disse que Dirceu foi um grande nome da esquerda estudantil. ‘Acredito que ele [Dirceu] se perdeu pelo caminho. E, pelos dados que tenho, votarei por sua cassação.’


Diante das denúncias que vieram à tona na atual crise, Gabeira disse que hoje há um sentimento de desolação moral na sociedade e no Congresso. ‘Nenhum Parlamento pode aceitar que um dirigente político organize um processo de compra de deputados e de transferência de deputados. Dessa maneira, acho que foi um crime contra a democracia.’


Com a possível renúncia de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara, Gabeira disse esperar do próximo presidente um nível ético superior ao do pepista. ‘Não tenho candidato [a presidente da Casa]. Ele deve ser alguém que não desperte na oposição medo por criar dificuldades nas investigações nem que desperte medo no governo por uma abertura de processo de impeachment’, disse o deputado, que ressaltou que essas são suas condições para um candidato merecer seu voto.’


 


O Estado de S. Paulo


‘‘Refundando’ a verdade’, Editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/05


‘No que parece uma concessão dos setores ditos moderados do PT, reunidos no Campo Majoritário, às correntes de esquerda que obtiveram na eleição interna de domingo votos suficientes para levar a segundo turno a disputa pela presidência da agremiação, a executiva nacional, dominada pelos majoritários (que já não são tantos), aprovou uma resolução com ataques virulentos a todos quantos se recusam a chamar pelo eufemismo ‘erros’ ou ‘desvios’ os ilícitos comprovados do petismo, principalmente mas não exclusivamente no governo Lula. Fazendo lembrar a ‘quase lógica’ dos improvisos do presidente, o texto afirma que a crise política ‘alcançou um estágio cujo intuito é criminalizar o PT’. E este ‘não pode assistir a esta formidável chantagem pública (seja lá o que isso queira dizer) contra a sua própria existência’.


Os agentes desse processo de ‘massificação totalitária da opinião’ são as oposições e o ‘golpismo midiático’ (que ‘criminalizam’ o ‘mensalão’ que o PT pretendia institucionalizar). Já no primeiro dos 13 pontos do texto que pretende refundar a verdade e cujo principal redator terá sido o presidente interino Tarso Genro, fica-se sabendo que ‘nunca na história do regime democrático brasileiro um partido sofreu tamanha inquirição, duros e sistemáticos ataques de partidos oposicionistas, divulgados com a ajuda irrestrita da ampla maioria da mídia’. É o caso de replicar que nunca na história da democracia brasileira um partido recorreu tão deliberadamente à corrupção, em escala aluvional, para favorecer um governo e se manter no poder.


Queriam os petistas o quê? Que a oposição se emasculasse e a mídia se amordaçasse para que delas não se dissesse que estão mancomunadas em um projeto para destituir o presidente? Os oposicionistas, lê-se na resolução, são ‘as novas vestais da moralidade’. É natural que alguns ajam assim, procurando ocupar o lugar deixado vago pelas antigas vestais. Mas isso é uma insignificância perto de décadas da pregação ética do PT que começou a ser desmentida na prática assim que o partido conquistou governos municipais e estaduais. O divórcio entre as palavras e os fatos chegou ao paroxismo no governo Lula. Petistas honestos sabem disso. Foi um deles, Paul Singer, militante de primeira hora, quem disse que a legenda é capaz de usar métodos ‘delinqüentes’ para ganhar eleições. E não foram poucos os que já romperam com a sigla e fizeram denúncias convincentes sobre a ética petista.


‘Começamos a enfrentar nossos erros, buscar a punição dos culpados e a debater as correções políticas necessárias à superação da crise’, proclama o documento. O começo foi tentar impedir que alcançasse o número necessário de assinaturas o pedido de constituição da CPI dos Correios. Derrotados, tentaram impedir a sua instalação. Derrotados novamente, vieram com uma CPI da compra de votos para investigar o governo passado. Foi inútil: ela é a CPI do Mensalão. A terceira, a dos Bingos, surgiu por decisão judicial: se dependesse da busca petista da punição dos culpados, continuaria na gaveta em que a colocou, depois do Waldogate, o presidente do Senado, José Sarney, arrimo político de Lula. Agora, são as CPIs que não têm ‘a mínima preocupação com a busca da verdade’.


A mentira tem pernas curtas. Em matéria das citadas ‘correções políticas’, só depois de ter ficado insustentável a posição do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, dele se desgarrou o chefe do governo que passou a tê-lo na conta de protetor do seu mandato contra eventual pedido de impeachment – o que nem sequer está na ordem do dia. Diante disso, que autoridade tem o PT para cobrar da oposição que se desculpe por ter ajudado a eleger Severino? O duplipensar, como diria Orwell, é um hábito que deitou raízes fundas no partido. ‘É verdade que o PT não adotou mecanismos de controle para combater estes desvios que estavam em nosso meio’, diz o texto. Parece um mea-culpa, mas não é. Falar em desvios é camuflar a enormidade dos delitos. Além disso, se os tais mecanismos fossem adotados, o projeto petista de poder sucumbiria. O PT, em suma, que não debite a terceiros a sua ruína ética e política. De ponta a ponta, eis uma obra intransferível.’