Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mario Sergio Conti

‘Wojtila pegou na biblioteca do Vaticano uma revista de estudos marxistas e a levou para o conclave que o elegeu. Carregava-o debaixo do braço para lá e para cá. A atitude provocou sorrisos entre seus colegas cardeais. Um deles lhe perguntou, brincando: ‘Não é sacrilégio ler essa revista aqui?’ O polonês respondeu com outra brincadeira: ‘Tenho a consciência tranqüila’, disse, sorrindo.

O direito canônico interdita as candidaturas formais antes e durante o conclave. Mas as conversas a dois, as articulações de grupos e as discussões informais correm soltas. Donde parece razoável concluir que, mesmo não estando explicitamente em campanha, o manusear da revista marxista era usado por Wojtila como um esclarecimento acerca do que pensava. Era uma tomada de posição. Como se ele dissesse: venho de um país comunista, estudei o assunto, sei como combatê-lo.

Depois de cinco dias de escrutínios, o conclave estava bloqueado. Nenhum candidato obtinha a maioria. O austríaco Franz König, o espanhol Narciso Arnau e o belga Maximilien de Furstenberg arrastam suas fichas para Wojtila, que parece indeciso. Ele só topa a candidatura depois de falar, em lágrimas (foi uma das raríssimas vezes que foi visto chorando), com seu superior hierárquico, o primaz da Polônia. Os dois tinham uma relação fria e respeitosa. Stefan Wyszynski lhe diz: ‘Se você for escolhido, terá de aceitar. Pela Polônia’.

Em 16 de outubro de 1978, Wojtila aceitou sentar no trono de São Pedro. Pela Polônia. Contra o comunismo.

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Quase dois anos depois, em novembro de 1980, Ronald Reagan é eleito presidente dos Estados Unidos. O papa e o presidente tinham em comum o anticomunismo. Compartilhavam também uma noção clara do papel que os meios de comunicação desempenham, numa sociedade de massas, nos campos da política e da religião. Reagan e Wojtila eram ex-atores que, no poder, colocaram em prática todos os truques do metiê. Reagan estava mais atualizado: fizera carreira no cinema, na televisão, na publicidade, em sindicatos e lobbies. João Paulo II era mais versátil na capacidade de expressão. Além de ator, era dramaturgo e poeta, teólogo e tribuno de púlpito, falava italiano e arranhava outros idiomas.

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Momentos depois de ser eleito, João Paulo II dirigiu-se à multidão na Praça de São Pedro, para a sua primeira benção urbi et orbi. Falou em italiano. Inseguro, perguntou: ‘Vocês me compreendem bem? Não sei se poderei me exprimir na sua língua… na nossa língua italiana. Se eu errar, me corrijam’. Si mi sbaglio, mi corrigerete. ‘Corrigerete’ é um latinismo, um erro menor. O ator estava no seu elemento, seduzindo o público italiano. Nos meses e anos seguintes, esse estilo de comunicação percorreria o mundo, em turnês colossais. Surgia o papa pop, o papa superastro, o papa-para-multidões.

Dias depois da benção da cidade e do mundo, na missa solene de inauguração, João Paulo II fez a sua célebre exortação: ‘Não tenham medo!’ Ela talvez reste como divisa do seu pontificado. O Non abbiate paura é interpretado como um apelo ao enfrentamento com o comunismo. O que o papa disse foi o seguinte:

‘Não tenham medo de acolher o Cristo e aceitar o seu poder. Não tenham medo! Abram todas as grandes portas ao Cristo. Ao seu poder salvador, abram as fronteiras dos Estados, os sistemas econômicos e políticos, os vastos campos da cultura, da civilização, da cultura e do desenvolvimento. Não tenham medo!’

O trecho é ambíguo. Ele parece se dirigir tanto ao rebanho como aos infiéis. Num caso, o pastor estaria apelando os fiéis a abrir as portas dos poderes constituídos. Noutro, o apelo seria aos incréus, visando a sua conversão ao catolicismo. E afinal, medo de quem, de quê? A construção negativa é igualmente intrigante. Ela faz com que sobressaia o medo, e não o seu contrário, a coragem.

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Entre a inauguração de João Paulo II e a posse de Reagan três fatos de grande importância histórica se sucederam. Em abril de 1979, à frente de um processo revolucionário, o aiatolá Khomeini proclama a República Islâmica no Irã. Em dezembro do mesmo ano, a União Soviética invade o Afeganistão. Em agosto de 1980, uma poderosa onda de greves se estende por toda a Polônia.

A proclamação da República Islâmica e a subseqüente invasão da embaixada americana em Teerã são o sinal da emergência da jihad, da guerra contra os cruzados católicos, os judeus e o ‘Grande Satã’, os Estados Unidos. A invasão do Afeganistão tem um duplo significado. A longa luta, a derrota e a humilhante retirada soviética, dez anos depois, aceleram a crise final do stalinismo. E a resistência afegã serve de berço para toda uma geração de combatentes – foi na guerra contra os soviéticos que se formaram Osama Bin Laden e a Al Qaeda. Esses acontecimentos, que moldam o presente, são acompanhados tangencialmente pelo pontífice.

Em contrapartida, a crise polonesa é acompanhada com enorme interesse. Contrariando seus hábitos, João Paulo II passa a assisitir aos noticiários da televisão e a ler jornais para saber o que se passa no seu país natal. Sua posição é de, por meios diplomáticos, pressionar a burocracia stalinista a não reprimir as greves, que começam com reivindicações sindicais e logo adquirem caráter político e levam à formação do sindicato Solidariedade, o primeiro independente da ditadura stalinista. Publicamente, ele faz exortações para todos os lados. O recado final é uma espécie de ‘calma, gente!’

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Há uma outra intervenção, clandestina. A partir das greves, e progressivamente, se formará a Santa Aliança entre o Vaticano e o governo Reagan. O presidente americano não era católico. Sua religiosidade não era das mais profundas. Mas ele entendeu imediatamente que a crise polonesa era uma oportunidade de golpear o sistema soviético. E entendeu também que o papa polonês poderia ajudá-lo enormemente.

Reagan se aproximou de João Paulo II por meio de Willian Casey, o chefe da CIA. Papa-hóstia de ir à missa todo dia, Casey virou amigo do papa. Passaram a trocar informações. Ele até mostrou a Wojtila fotos de satélite mostrando concentração de tropas soviéticas na fronteira polonesa.

Uma facção da direção do Solidariedade, encabeçada pelo operário (desempregado) Lech Walesa tinha laços estreitos com a Igreja. Dezenas de milhões de dólares do governo americano foram entregues ao Solidariedade graças à intermediação do Vaticano.

Fácil dizer que o Solidariedade foi manipulado pela CIA. Fácil e errado. O Sindicato expressava a aspiração operária à independência do Estado e da burocracia stalinista. Almejou e disputou o poder polítco por meio dos métodos tradicionais dos trabalhadores: as greves, as manifestações, a agitação. Mas sua direção, expressando a vontade do papa, que era cacifado pelo dólares americanos, parou nas reivindicações democráticas.

Walesa tomou o poder. Seu governo foi desastroso. Ao tentar se reeleger, foi derrotado, esmagado nas urnas. Ao papa, pouco importava. O demônio comunista havia sido exorcizado.

Acabara o combate político de João Paulo II. O restante do seu pontificado foi eminentemente evangelizador e teológico. E, por isso mesmo, só interessa aos católicos.’



Juan Arias

‘O papa que eu conheci’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 2/04/05

‘Conheci o futuro papa polonês Karol Wojtila há 43 anos, quando ele ainda era bispo de Cracóvia e um dos integrantes mais jovens do Concílio Vaticano II, inaugurado por João XXIII, para surpresa do mundo, em 12 de outubro de 1962. Ele foi um dos poucos bispos do bloco comunista que teve permissão de Moscou para assistir ao Concílio junto com outros 2.500 bispos vindos de todos os continentes a Roma.

Wojtila era um bispo jovem e atlético. No fins de semana costumava esquiar em Terminillo, perto de Roma, ou se banhar em uma praia de Ostia reservada ao clero. Foi obrigado a fazer muito esporte quando jovem, após ter diagnosticada uma mononucleose. Tomou gosto.

Durante o Concílio, o bispo Wojtila se caracterizou por uma grande atividade nos trabalhos das comissões de estudo. Em muitas ocasiões esteve contra a maioria progressista que ganhou o Concílio e abriu um diálogo com o mundo laico. Era intransigente sobretudo com o mundo do ateísmo. Defendia a tese de que não era verdade que a culpa do ateísmo e do comunismo era da Igreja, por haver se distanciado da classe trabalhadora, como defendiam alguns padres do Concílio. Sustentava que era necessário ‘lutar’ contra o ateísmo e não ‘dialogar’ com ele.

Ninguém havia imaginado até então que aquele bispo louro, robusto, esportista, vindo do outro lado da Cortina de Ferro, seria um dia o primeiro papa polonês após 400 anos de tradição de papas italianos. Na tarde do dia 16 de outubro de 1978 eu me encontrava na praça São Pedro esperando a ‘fumaça branca’, juntamente com centenas de jornalistas, quando foi anunciado pelo então cardeal Pericle Felicique que o papa que iria substituir João Paulo I, morto misteriosamente após somente 33 dias de pontificado, não era italiano e que se chamava Karol Wojtila. Ouvimos mal a pronúncia de seu nome e inicialmente nos pareceu que poderia ser um papa africano.

O novo papa, que havia escolhido o nome de João Paulo II para unir os dois últimos pontificados, o de Paulo VI e o de João Paulo I, logo apareceu como um papa inovador, ao menos pelos gestos externos. Ao contrário do passado, quando os novos papas, recém-eleitos no segredo do Conclave, se apresentavam no balcão central da basílica de São Pedro apenas para dar sua primeira benção, sem pronunciar uma só palavra, o novo pontífice, ex-ator de teatro, quis falar. E o fez em italiano, enternecendo os romanos presentes.

Os gestos de novidade do novo papa se multiplicaram. Logo se viu que ele seria o papa dos meios de comunicação. Surpreendendo a todos, anunciou em poucos dias a primeira entrevista coletiva dentro do Vaticano, algo inédito na história da Igreja. Recordo ainda aquela imagem de torre de Babel, com os jornalistas de meio mundo fazendo perguntas em todas as línguas, com dúzias de câmeras de televisão subindo nas cadeiras e milhares de microfones em seu rosto.

Conheci cinco papas mas, as meias, só vi as do papa Wojtila. Os outros sentavam-se no trono quase imóveis, como estátuas. João Paulo II, não. Movia as pernas em público e as cruzava. Uma vez, em um país tropical, em uma de suas inumeráveis viagens, vimos que debaixo da batina usava calças curtas por causa do calor. Foi o primeiro papa que aceitava durante suas viagens que nós, jornalistas que o acompanhávamos no avião, fizéssemos perguntas e até discutíssemos com ele. A Paulo VI, por exemplo, que também acompanhei como enviado especial, não podíamos perguntar nada. Durante a viagem, ele se aproximava de cada um de nós, nos dizia algo ao ouvido e nos dava um pequeno presente: uma gravata, uma moeda do Vaticano etc. A mim, uma vez, agradeceu-me por ter querido acompanhá-lo a uma longa viagem a Hong Kong apesar de minha mãe estar doente. Paulo VI era um papa mais intimista. João Paulo II era de massas.

O papa Wojtila era muito natural com os jornalistas e conhecia todas as línguas. Eu, que o acompanhei em mais de 60 viagens internacionais, entre elas ao Brasil, posso garantir que as multidões de todos os países, tanto cristãos como não cristãos, enlouqueciam ao vê-lo. As mães queriam dar-lhe seus filhos para que os benzesse. Uma vez, em Chestochowa, uma mulher conseguiu pôr seu bebê nos braços do papa durante a missa. A criança começou a chorar e seus gritos eram amplificados. Na confusão, a mãe não conseguiu chegar para socorrer o filho, que foi passando de mão e mão entre os bispos e cardeais que celebravam a missa com o papa, cada vez chorando mais, até que encontraram sua mãe.

As viagens foram tão importantes para João Paulo II que era como se levasse junto o Vaticano. Foi o primeiro papa a celebrar canonizações fora de São Pedro, levando consigo quase todo o governo da Cúria Romana. Gostava mais de viajar do que de permanecer em Roma. Na verdade, disseram-me alguns de seus amigos, após o frustrado atentado na praça São Pedro, em uma festa da Virgem de Fátima, o papa se sentia um mártir. Preferiria ter morrido numa viagem. Não pôde escolher sua morte e o paradoxo quis que o papa que mais havia falado ao mundo em todas as línguas, que havia cantado e gritado com os jovens em estádios em todo o planeta, no final de seu calvário tivesse que sofrer a dor de ficar mudo. O papa da palavra, como havia sido chamado, morreu sem o consolo de poder gritar sua morte ao mundo como fez Jesus na cruz.

Hoje, lembro-me de um momento especial da primeira viagem de João Paulo II a sua terra querida, a Polônia. Mais especificamente, quando desceu as escadas da câmara da morte no campo de concentração de Auschwitz. Fui o único jornalista que conseguiu descer com ele. Vi-o de joelhos a rezar em silêncio, o rosto coberto pelas mãos. Acho que chorou. Naquela viagem, ainda no avião, eu lhe perguntara se no campo de concentração que ia visitar pretendia pedir a Deus condenação ou misericórdia. ‘É uma pergunta difícil de responder, uma pergunta teológica. Mas um papa só pode pedir a Deus misericórdia, até para os piores dentre os homens.’

Juan Arias é jornalista e escritor. Foi correspondente na Itália e no Vaticano por 34 anos e é autor de dois livros sobre João Paulo II, ‘El enigma Wojtyla’ e ‘Un Diós para Wojtyla’. Atualmente, é correspondente do jornal espanhol ‘El País’ no Brasil. (Tradução de Luiz Antônio Ryff e Pedro Doria)’



Paulo Daniel Farah

‘Papa usou internet e engajou Vaticano na mídia moderna’, copyright Folha de S. Paulo, 3/04/05

‘Ideologicamente conservador, João Paulo 2º passará à história como um líder religioso que soube fazer uso dos meios de comunicação, incluindo a internet, para divulgar a mensagem da Igreja Católica e criar imagens marcantes, como o gesto de se abaixar para beijar o solo dos países que visitava.

Uma exceção ocorreu em 1989. Quando viajou à Indonésia, recusou-se a beijar o solo de Timor Leste, que já reivindicava independência (aprovada em plebiscito dez anos mais tarde). Depois, mesmo debilitado fisicamente, manteve a tradição sem o esforço físico da homenagem. Crianças passaram a trazer-lhe em uma bandeja a terra a ser abençoada.

Vaticano na rede

Lançado em 1995, o site do Vaticano (www.vatican.va) está disponível em seis idiomas, com parte do conteúdo em português. Contém biografias papais, uma agenda de celebrações e informações sobre o Museu do Vaticano.

Em junho de 1998, a Igreja Católica passou a usar a web para atingir a China, palco de perseguições a cristãos ‘não-oficiais’. A agência católica de notícias Fides (www.fides.org) fez uma versão de seu site em chinês. Foi o primeiro documento oficial elaborado pelo Vaticano nesse idioma.

Desde agosto de 1998, o Vaticano também vinha transmitindo, via internet, discursos de João Paulo 2º proferidos aos domingos, durante a tradicional oração de Angelus perante os fiéis na praça de São Pedro. Quando iniciou a transmissão on-line das cerimônias, a Santa Fé disse que a idéia era ‘aumentar a presença do Vaticano no mundo moderno da comunicação social’.

Em novembro de 1998, durante encontro com estudantes da universidade privada Luiss, em Roma, João Paulo 2º ressaltou a influência da informática. ‘O computador mudou um pouco o mundo e, obviamente, também a minha vida’, afirmou.

A importância da comunicação e de aliá-la à tecnologia disponível fez-se nítida até em detalhes aparentemente irrelevantes. Na sala de imprensa do Vaticano, por exemplo, o protetor de tela dos computadores diz: ‘We, journalists, love John Paulo II’ (Nós, jornalistas, amamos João Paulo 2º).

‘Woodstock católico’

Em suas viagens, arrebatou multidões de fiéis -e combateu o hedonismo e o materialismo.

As Jornadas Mundiais da Juventude receberam incentivo de João Paulo 2º a partir de 1986. Reuniu mais de 2 milhões de jovens para um ‘Woodstock católico’ em Roma, em agosto de 2000 -um dos maiores encontros realizados em Roma desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Ao final, recordou que a igreja não aprova relações pré-matrimoniais nem medidas contraceptivas, pois o sexo deve ter fim reprodutivo. Apelidados de ‘papa boys’ e ‘papa girls’ pela imprensa italiana, os jovens participaram de uma vigília no campus Tor Vergata da Universidade de Roma, normalmente usado para concertos de rock.

As audiências papais, às quartas-feiras, demonstravam de forma inequívoca a facilidade de comunicação do papa. João Paulo 2º discursava em diversos idiomas, incluindo russo, alemão e português, com uma fluência e pronúncia admiráveis para fiéis do mundo inteiro. Essa distinção era reconhecida e citada como exemplo da mensagem católica de união.

Quando diversos grupos homenageavam o papa com cantos nacionais ou hinos religiosos, durante a cerimônia, ele costumava acompanhar com o corpo -e muitas vezes com a voz.

Mas, à medida que o tempo passava (e que suas doenças, principalmente o mal de Parkinson, agravavam-se), ele recorria a seus assessores para tarefas simples, incluindo a leitura de mensagens. Ao final, muitas vezes lia apenas os discursos em italiano e polonês -e de forma quase ou completamente incompreensível, dependendo da ocasião.

O vigor físico inicial do pontificado deu lugar a uma fragilidade cada vez mais evidente, apesar de o papa ter continuado firme em seus propósitos. Nos últimos anos, seu espaço estava restrito a dois andares do palácio apostólico: o terceiro, onde ficam os apartamentos privados, e o segundo, o das salas de recepção, da biblioteca e de seu escritório oficial.

‘Lá no alto, atrás da janela mais célebre do mundo, há um prisioneiro’, dizia o vaticanista Marco Politi. ‘Um prisioneiro que sofre, que só consegue se locomover de um local a outro com um imenso esforço, apoiando-se em sua bengala, acometido por tremores parkinsonianos.’

O ‘Manual da Indulgência’ do Vaticano, de 1999, estabelece que rezar com o papa em frente à televisão (entre outras coisas, como ficar um dia sem fumar e arrepender-se em público) é uma das práticas que aliviam a punição de pecadores. A obra, editada anteriormente em 1968 e 1986 considera válidas a oração mental para surdos-mudos e as preces junto à TV e ao rádio.’



Slavoj Zizek

‘O choque entre ética e realismo’, copyright Folha de S. Paulo, 3/04/05

‘Todo bom cristão não só não se deixa ofender, mas deveria sentir nada mais do que alegria sem culpa diante de ‘The Politically Correct Guide to the Bible’ (Guia Politicamente Correto Para a Bíblia, ed. Crown), de Edward Moser.

Se esse hilariante livrinho tem algum problema, é o fato de que depende um pouco demais do procedimento padrão de iniciar cada verbete com a bem conhecida e sisuda linha da Bíblia e acrescentar ao final, como uma reviravolta, uma qualificação absolutamente contemporânea, seguindo a bem conhecida blague de Marx sobre a maneira pela qual os direitos humanos garantidos pela Revolução Francesa (1789) funcionam na vida real do mercado: ‘Liberdade, igualdade e Bentham’.

‘Ainda que eu caminhe pelo vale da sombra da morte, não temerei, pois ‘temor’ e ‘bem’ são formulações ideológicas que dependem de uma lógica binária e exclusivista.’ ‘E eles começaram uma algaravia, mas cada homem os ouvia em sua própria língua, devido aos programas de educação bilíngue.’

Essa forma de reescrever chega a um ponto alto quando Moisés reformula os dez mandamentos e faz deles ‘dez recomendações’. Basta mencionar duas delas: ‘Não respeitarás o domingo, para que possas fazer tuas compras naquele dia’ e ‘não tomarás o nome de Deus em vão, a não ser com exagero, particularmente se fores um artista da linha ‘gangsta rap’.

O problema é que aquilo que Moser evoca satiricamente e com exagero em seu trabalho está na realidade acontecendo hoje: não praticamos uma reforma semelhante nos mandamentos? Um comando é severo demais? Basta devolver a cena ao monte Sinai e reescrevê-lo. ‘Não cometerás adultério exceto se for emocionalmente sincero e servir à meta de uma profunda realização pessoal.’

Exemplar quanto a isso é ‘The Hidden Jesus’ (O Jesus Oculto, ed. Griffin), de Donald Spoto, uma visão ‘liberal’ do cristianismo, em que lemos, a propósito do divórcio, que ‘Jesus claramente denunciou o divórcio e segundas núpcias… Mas Jesus não chegou jamais a dizer que casamentos não podem ser desfeitos… Não existe em qualquer outra parte de seus ensinamentos uma situação em que uma pessoa se veja eternamente acorrentada às conseqüências do pecado. Seu tratamento das pessoas, como um todo, envolvia liberação, não legislação… É evidente que na verdade alguns casamentos simplesmente se dissolvem, que compromissos são abandonados, que promessas são violadas, amores, traídos’.

Por mais simpáticas e ‘liberais’ que sejam essas palavras, elas envolvem uma confusão fatal entre altos e baixos emocionais e um compromisso simbólico incondicional que deveria ser mantido exatamente quando deixa de ser sustentado por emoções diretas.

‘Não te divorciarás exceto quando teu casamento se dissolve ‘de verdade’, quando ele se assemelha a uma experiência emocional desagradável que te frustre em tua vida’, ou seja, exceto quando a proibição ao divórcio teria seu pleno valor (por que alguém se divorciaria quando o casamento está florescendo?)!

Emblemática quanto a isso foi a figura de João Paulo 2º. Mesmo aqueles que respeitavam a postura moral do papa usualmente acompanhavam essa admiração com a qualificação de que ele, no entanto, continuava a ser desesperadamente antiquado, quase medieval, aderindo a dogmas antigos, fora de contato com as demandas dos novos tempos: como ignorar, hoje, a contracepção, o divórcio, o aborto? Não se trata simplesmente de fatos de nossas vidas? Como pôde o papa negar o direito ao aborto até mesmo a uma freira (da maneira que efetivamente o fez no caso de freiras violentadas durante a Guerra da Bósnia)?

Não fica claro que, mesmo que sejamos a priori adversários do aborto, em um caso extremo como esse o certo seria abandonar os princípios e aceitar um compromisso?

Pode-se compreender, agora, por que o Dalai Lama é muito mais apropriado aos nossos tempos modernos e permissivos: ele nos oferece um espiritualismo vago e cheio de bons sentimentos, sem nenhuma obrigação específica. Todo mundo, até mesmo astros decadentes de Hollywood, pode seguir sua doutrina e manter um estilo de vida promíscuo e obcecado pelo dinheiro. Em contraste, o papa nos lembra que existe um preço a ser pago pela atitude ética correta, que é exatamente a sua teimosa adesão aos ‘velhos valores’, sua recusa em acatar as demandas ‘realistas’ de nossa era, mesmo que os argumentos contra ele pareçam ‘óbvios’ (como no caso das freiras violentadas), que fazem dele uma autêntica figura ética.

Mas será que o heroísmo ético exibido por João Paulo 2º é autêntico? Ou se trataria de uma forma daquilo que Alain Badiou chamou de ‘paixão do real’, o falso gesto heróico de assumir plenamente o lado sujo e obsceno do poder: ‘Alguém tem de fazer o trabalho sujo, vamos lá!’.

Em sua forma extrema, isso nos lembra da mensagem de Heinrich Himmler aos oficiais da SS (a tropa de elite da Alemanha nazista): é fácil fazer algo de nobre pelo país, até mesmo sacrificar a vida por ele. Muito mais difícil é cometer um crime em seu nome.

A Igreja Católica tem sua organização sigilosa para tarefas secretas, a infame Opus Dei, a ‘máfia branca’ da igreja, envolta em segredos para incorporar a pura lei, para além de qualquer legalidade positiva: seu papel supremo é a obediência incondicional ao papa e a determinação impiedosa de trabalhar para a igreja, com todas as demais regras (potencialmente) suspensas.

Como regra, seus membros, cuja tarefa é penetrar os principais círculos políticos e financeiros, não revelam seus vínculos para com a organização. Dessa forma, são de fato a ‘opus dei’ Äobra divinaÄ, ou seja, adotam a perversa posição de instrumentos diretos da vontade do outro.

Além disso, há um enorme número de casos de abuso sexual de crianças por padres. A incidência desse tipo de caso é tão grande, da Áustria à Itália, passando pela Irlanda e pelos EUA, que se poderia falar de uma ‘contracultura’ articulada dentro da igreja, com um conjunto de regras ocultas. E existe uma interconexão entre os dois níveis, já que a Opus Dei interfere regularmente para ocultar os escândalos dos padres.

Incidentalmente, a reação da igreja aos escândalos sexuais também demonstra a maneira pela qual a instituição percebe seu papel: a igreja insiste em que esses casos, por mais deploráveis que se revelem, são assunto interno. E, de certa maneira, a igreja está certa: abuso de crianças é seu problema interno, ou seja, um produto inerente de sua organização simbólica e institucional, e não apenas uma série de casos criminais particulares envolvendo indivíduos que por acaso são padres.

Consequentemente, a resposta a essa relutância da igreja deveria ser não só a de que estamos lidando com casos criminais Äe, se a igreja não participar plenamente das investigações, estará se tornando cúmpliceÄ, mas também a de que a igreja como tal, como instituição, deveria ser investigada, com respeito à forma pela qual ela sistematicamente cria condições para esses crimes.

Essa é também a razão por que não é possível explicar os escândalos sexuais em que padres estão envolvidos como uma manipulação dos oponentes do celibato, que desejam reforçar sua alegação de que, caso os desejos sexuais dos padres não sejam atendidos de maneira legítima, explodirão de forma patológica: permitir que os padres católicos casem não resolveria nada, não teríamos padres cuidando de seu trabalho sem molestar meninos, já que a pedofilia é gerada pela instituição católica do sacerdócio como seu obsceno suplemento secreto.

E é nisso que o papa fracassou: sob seu reinado, a Opus Dei se tornou mais forte do que nunca. João Paulo 2º canonizou o fundador da organização, mas, a despeito de seus pronunciamentos públicos, ele não confrontou plenamente as conseqüências dos escândalos de pedofilia. E é por isso que João Paulo 2º é um herói trágico, uma prova de que até mesmo uma postura radical e sincera de ética pode ser uma farsa. Slavoj Zizek é filósofo esloveno e autor, entre outros, de ‘Um Mapa da Ideologia’. Tradução de Clara Allain.’



Clóvis Rossi

‘A reabilitação da morte’, copyright Folha de S. Paulo, 2/04/05

‘É tremendamente incômodo escrever sobre a morte de alguém que ainda está vivo. Escrevo pouco antes de meia-noite em Roma (cerca de 19h em Brasília, já perto do horário de fechamento desta página). O papa João Paulo 2º ainda está vivo.

Mas, talvez pela primeira vez, reabilitou-se a morte. Nem a instituição Vaticano nem alguns dos principais cardeais ocultaram que o papa está morrendo, que a situação é sem volta. Talvez esteja morto quando este jornal chegar às bancas.

Na melhor tradição cristã, quase esquecida, as autoridades religiosas trataram a morte não como um fim, nem como uma punição, nem como motivo de tristeza, mas como a culminação de uma vida e o subseqüente encontro com Deus.

‘O papa já vê e já toca o Senhor’, chegou a dizer o cardeal Camillo Ruini, o vigário de Roma, precisamente o prelado a quem caberá anunciar a morte do papa. De certa forma, já o fez, com essa frase, tirando do anúncio o caráter de tristeza em geral associado à morte.

Para quem crê em Deus, que maior alegria pode haver do que tocá-Lo e vê-Lo?

Esse comportamento da igreja foi uma espécie de sinal verde para que as televisões italianas -e, imagino, emissoras do mundo- tratassem ontem mesmo da herança do papa antes mesmo de sua morte.

O ponto insistentemente realçado foi o de que Karol Wojtyla mudou a história, óbvia alusão ao fato de que ele teria sido instrumental na queda do comunismo.

É fato. Mas é igualmente fato que a transição do comunismo para o capitalismo passou longe de dar-se de acordo com valores básicos do cristianismo. Não há espaço para a espiritualidade ou para a solidariedade. Ao contrário. Os países comunistas eram, oficialmente, materialistas.

Os países ex-comunistas são talvez ainda mais materialistas, porque não se trata de algo imposto, mas desejado e desejado.’