‘A praça de São Pedro é o pior lugar para perceber a cor da fumaça que sai da Capela Sistina, do lado direito da Basílica. O céu está cinza como a fumaça que sai da pequena chaminé. A multidão, porém, não tem dúvidas. A fumaça é clara e o papa vem aí. Na televisão italiana, hiperexcitados apresentadores não arriscam palpite, já que os sinos da basílica, que deveriam anunciar também a eleição do pontífice, não tocaram junto com a saída da fumaça. O repicar só começou quatorze minutos depois da fumaça.
Os romanos não esperaram. Nunca vi nada parecido. Em questão de minutos, centenas de milhares de pessoas saíram às pressas de prédios, lojas, escritórios, ônibus e metrôs e ocuparam a praça mais bela do mundo, circundada pelas quatro fileiras de colunas criadas por Gianlorenzo Bernini. Pela aparência, a maioria da multidão era formada por romanos, apesar do grande numero de turistas. Havia padres, frades e feiras em bom número. Havia famílias com crianças. E, sem dúvida, os adolescentes e jovens ultrapassam os de meia-idade e mais velhos. E todos (afora os que estão lá profissionalmente) são católicos.
O ambiente é de festa comportada, de alegre expectativa. O cardeal Medina Estevez aparece no balcão da fachada desenhada por Bramante. Impossível distinguir o seu rosto sem o auxílio dos quatro telões colocados diante da igreja. Grande gritaria, que decuplica quando ele pronuncia a fórmula tradicional: habemus Papam! O cardeal fala devagar, buscando uma dicção solene. Quando fala em latim o prenome do cardeal eleito, ‘Iosefum’, a massa reage aos gritos, como se a colunata tivesse sido ocupada por um monstruoso congresso de latinistas. Antes mesmo do nome Ratzinger ser pronunciado as pessoas souberam que o cardeal alemão era o novo papa.
Quando Bento XVI ia começar a falar, a banda dos carabinieri entrou na colunata rufando tambores. A multidão pediu silêncio aos berros. Foi o único senão na coreografia do anúncio, e durou menos de vinte segundos porque a banda parou de tocar subitamente. Mais antiga instituição do ocidente, a Igreja é mestra em comunicação. Ela fez do catolicismo uma religião de imagens: imagens sonoras, pictóricas, coreográficas, verbais, musicais. Seu centro teatral é o Vaticano. Ali se expressa o sumo de uma propaganda da fé que já dura dois milênios. O consorcio da RAI, a rede estatal italiana, com a TV do Vaticano esteve à altura da tarefa. Aproveitou cada minuto da agonia, da morte e do enterro de João Paulo II para divulgar a mensagem católica. Aproveitou também o conclave, a eleição e o anúncio de Bento XVI para mostrar que o papado assenhorou-se e domina a linguagem televisiva.
Acho que a multidão aplaudiria qualquer papa que parecesse no balcão da basílica. Só porque a barca de Pedro voltou a ter um condutor, a família cristã voltou a ter um pai. Mas tenho certeza que, se fosse um papa italiano, o júbilo seria inexcedível.
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Ao vivo, o que vale é a experiência subjetiva. Cheguei a Roma na véspera da abertura do conclave. A Alitalia fez o favor de perder a minha mala. Meu quarto no hotel fica no subsolo, é frio, mal iluminado e, jóia da coroa, não tem telefone. No mapa, o hotel parece estar ao lado da Casa de Santa Marta, onde os 115 cardeais se hospedaram durante o conclave. Ilusão: meu albergue fica no alto de um monte. Mais de um quilômetro de pirambeira até chegar ao maldito albergue. Chove em Roma. Um carro passa correndo e espirra água suja na minha única calça. Não há uma farmácia aberta nas imediações, onde possa comprar uma escova de dentes.
Na manhã da missa de abertura do conclave, é preciso fazer várias coisas ao mesmo tempo: digerir a homilia de Ratzinger, transferir o celular francês – emprestado – para o sistema italiano, brigar com a Alitalia, tirar a credencial junto à imprensa da Santa Sé, fazer entrevistas na rua, entrar ao vivo na rádio, conversar com os chefes na televisão (trabalho na Bandeirantes), escrever, gravar e mandar as matérias para São Paulo.
O dia é cheio e parece não ter fim. Para as entradas ao vivo, a diferença de cinco horas de fuso é atroz. Devo entrar ao vivo à meia-noite e meia. Mas primeiro preciso encontrar e me entender com uma pessoa de nome Çuma Kaya. Depois de algumas dezenas de telefonemas, acho a pessoa, que é homem, e pensa que fala inglês. Ele me diz que está ao lado de uma grande construção, com vários caminhões na frente. Falta uma hora para entrar no ar e essa é a única pista que tenho. Estou perdido.
Bom, a grande construção era o Castelo de Sant’Angelo, e os caminhões eram, oras, caminhões de transmissão de TV. Moleza, pensei. Cheguei lá e havia uns quarenta caminhões… Enfim, para encurtar uma história chata, milagrosamente consegui encontrar Çuma e, um minuto antes que Carlos Nascimento me fizesse perguntas, estava a postos, à beira do Tibre. Çuma (pronuncia-se Tchuma) e seu companheiro (cujo som do nome é algo como ‘Apo’) são boas praças. Turcos, eles já estiveram em dezenas de guerras e conflitos, sempre fazendo transmissões de TV. Ofereceram-me chá em copo de plástico, elogiaram as mulheres italianas, mas mais as brasileiras, e reagiram com bom humor quando perguntei se, seguindo os passos de seu compatriota Ali Agca, eles pretendiam encher o próximo papo de azeitonas.
Na manhã seguinte, a recepcionista de meu infame hotel me recebe com um enorme sorriso: ‘Signor Conti, suo bagaglio é arrivato! Grazie a Dio!’ Entro na freqüência e também agradeço a Deus. Volto depois, de banho tomado e roupa trocada, e pergunto a ele se minha aparência melhorou. ‘Molto, moltissimo, Signor Conti!’
De madrugada, depois de outra gravação ao vivo, sou recebido pelo proprietário e pela garçonete como um antiquíssimo cliente na trattoria onde jantei só uma vez, na noite anterior. Sim, no fundo é comercio, eles cultivam profissionalmente a freguesia em potencial. Mas o dono me ofereceu um copo de vinho, explicando que era para comemorar a escolha do papa. E a garçonete esperou o patrão se afastar para comentar que Ratzinger é um dogmático que não sabe o que se passa com a juventude católica.
Como resistir à simpatia dos italianos?
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Atravessei a ponte de Sant’Angelo, onde estão as estátuas de Bernini. Vi ao longe a cúpula da basílica, construída por Michelangelo. A praça de São Pedro, Roma e o Vaticano estavam desertos. A lua e eu testemunhávamos a sua beleza.
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Encontro D. Eugenio Salles, o ex-cardeal arcepispo do Rio de Janeiro. Encontro providencial, dentro da basílica de São Pedro. Ele diz:
‘Meu filho, estou muito feliz. Conheço o novo papa há muitos anos. Ele esteve lá comigo, no Sumaré, onde deu aulas de teologia e filosofia. Ratzinger é um homem afável, gentil, até tímido. Você viu ele ontem no balcão da igreja, seus gestos contidos, sua hesitação. Ele não tem a potência, a forca de João Paulo II. Estive praticamente todo o tempo junto de Ratzinger na semana passada, quando ele dirigiu as reuniões dos cardeais. Estou feliz porque ele representa a continuidade. Ele é um bispo elegante, um pouco retraído. Mas isso não tem nada a ver com sua personalidade interior. Ele é forte nas suas idéias, tem coragem de defendê-las. É disso que a Igreja precisa’.
D. Eugenio concorda que é um erro chamar, ou acusar, Bento XVI de conservador. ‘Ele é um católico, defende com clareza e convicção a doutrina da Igreja. Nada mais que isso.’
Especulamos os motivos que levaram Ratzinger a escolher o nome de Bento XVI, e não João Paulo III.
‘Não sei, ainda não encontrei com o papa depois da eleição, quero perguntar a ele’, diz o cardeal. ‘Mas o que sei é que o Bento anterior, o XV, enfrentou tempos difíceis, a Primeira Guerra Mundial. Talvez o novo papa esteja nos avisando que se espelhará na firmeza de Bento XV para enfrentar esses tempos de agora’.
D. Eugenio diz que, ao escolher o nome, Ratzinger voltou à tradição. ‘Quem inovou foi João Paulo I, que escolheu o nome duplo para homenagear seus antecessores imediatos, João XXIII e Paulo VI. E João Paulo II continuou a homenagem’.
Caminhamos pela basílica magnífica. Contemplamos o baldaquino, a cátedra de São Pedro, encimada pelo Espírito Santo, passamos ao lado da estátua de Longinus, todas obras-primas do gênio barroco.
D. Eugenio diz que, sempre que vem a Roma, passa sempre pela basílica. Não apenas para admirar a sua arquitetura e suas estátuas. ‘Gosto de passar pelos túmulos dos papas que me marcaram, que marcaram a minha vida religiosa: Pio XII, João XXIII, Paulo VI, agora João Paulo II’.
Estamos no lado esquerdo do altar principal. Sugiro a D. Eugenio que não deixe de parar na frente do túmulo de Alexandre VII, que aponto com o dedo. Sugiro que preste atenção e note que, na tumba de Alexandre Ghigi, amigo de Bernini, o papa está acima de Vênus, de Marte e de Aurora. Que está mesmo acima do anjo da morte, que triunfa sobre as dificuldades pagãs.
‘Quando o triunfo é demais, meu filho, a gente desconfia’, me diz o cardeal, que se despede e se afasta.’
Carlos Heitor Cony
‘Pio 9º e João Paulo 2º, o drama de dois papas’, copyright Folha de S.Paulo, 22/4/05
‘Escrevo esta crônica antecipadamente. Quando sair publicada, talvez já se conheça o nome do novo papa -assunto obrigatório dos últimos e próximos dias. Lendo a diversidade de matérias na mídia, a nacional e a internacional, pesquei um detalhe sem importância. Apesar de agnóstico, sempre conservei pela igreja a gratidão pelo que me ensinou e o respeito que ainda me causa.
O detalhe é de fato irrelevante. Li que o pontificado de João Paulo 2º foi o terceiro mais longo da história, vindo depois do de Pedro e o de Pio 11. Quanto a Pedro, não deixa de ser uma gentileza considerá-lo papa. Na realidade, foi mais do que isso, tendo recebido, segundo os evangelhos, a missão de chefiar a igreja nascente, missão que lhe foi conferida pelo fundador do cristianismo.
O próprio nome, ‘papa’, que significa ‘pai’ em algumas línguas, já foi explicado como sigla de ‘Petrus Apostolus, Princeps Apostolorum’ -Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos. Seu principal título foi mesmo o de apóstolo, o mais próximo a seu chefe, o mais veemente e, em termos humanos, o mais surpreendente.
Quanto a Pio 11, o engano deve-se à numeração, tradicionalmente feita em algarismos romanos. O erro está no ‘Pio XI’, quando o certo é ‘Pio IX’. O primeiro governou a igreja de 1922 a 1939, um pontificado de 17 anos.
Pio 9º, sim, foi papa durante 32 anos, de 1846 a 1878, num período dos mais movimentados do século 19. Giovanni Maria Mastai Ferretti, em que pesem diferenças de tempo, estilo e personalidade, aproxima-se de Karol Wojtyla num ponto: o da perseverança na linha dura, em termos de dogma e moral, embora no resto seja o oposto do papa recentemente falecido. Não foi popular nem querido, como João Paulo 2º. Chegou a ser odiado.
Enfrentou uma época em que o racionalismo e o culto da ciência e da modernidade repudiavam qualquer tipo de dogmatismo. No plano político, que, no caso dele, acabou sendo o plano pessoal, teve pela frente a unificação italiana, quando Garibaldi e Cavour, um com as armas, outro com os acordos internacionais, o reduziram à situação de prisioneiro, condição que ele transmitiria a seus sucessores, até justamente Pio 11, quando o Estado italiano reconheceu a soberania do Vaticano pelo Tratado de Latrão, de 1929, assinado com Mussolini -que, aliás, detestava o papa de plantão.
Se foi dramática a luta contra o espírito da sua época (a Alemanha também se unificava e 1870 foi um ano marcado pela guerra franco-prussiana), Pio 9º teve a contestação de católicos que dele exigiam aberturas na moral e no dogma, tal como aconteceu agora, com João Paulo 2º. Produziu dois documentos que foram considerados peças medievais: a encíclica ‘Quanta cura’ e o realmente medieval ‘Syllabus’, com a condenação de tudo o que o progresso da época colocara na mente de seus contemporâneos: naturalismo, racionalismo, socialismo, comunismo e, sobretudo, liberalismo. Afirmou ser impossível a reconciliação do papado com a sociedade moderna -evidente que a sociedade de seu tempo. Cada artigo do ‘Syllabus’ terminava com o terrível bordão: ‘Anathema sit’.
Um autor, Zizola, definiu seu pontificado como apocalíptico, ‘incapaz de discernir no Manifesto de Marx, de 1848, publicado dois anos após sua eleição, nada além da anarquia e desagregação intelectual, mantendo-se cético em relação à igualdade econômica e social’.
Convocou o Concílio Vaticano 1º e, de tudo isso, emergiria o dogma da infalibilidade papal em matéria de dogma e moral. Para o jargão de nossa época, poderia ser classificado como um dinossauro. Aproximá-lo de João Paulo 2º mereceria também um anátema. Mas a aproximação existe. Nos anos conturbados de seu pontificado, Mastai Ferretti teria de lançar uma âncora que amarrasse o que se chamava de ‘nau de Pedro’ no mar da história, que se agitava com idéias e ideais que formavam um tsunami devastador. A seu modo, e de forma bem mais suave, João Paulo 2º fez o mesmo, lançando a mesma âncora num ponto preciso da história, esperando que o tsunami passasse, deixando estragos, é certo, mas não levando a nau para o abismo da história.
Sua luta não foi dramática como a de Pio 9º. Ele preservou o dogma e a moral que constituíam a sua herança espiritual, as cláusulas pétreas de seu compromisso com a instituição 2.000 vezes secular que aceitou dirigir. Mas se abriu no campo social com um estilo assombroso, a que não faltaram os exageros da comunicação de massa.
Seu sucessor encontrará a igreja imobilizada no campo dogmático e moral, amarrada pela âncora de ferro que João Paulo 2º lançou ao mar de seu tempo. Sua missão principal, como a de seu antecessor do século 19, foi a de evitar o naufrágio. E isso ele conseguiu, de forma até brilhante. O novo papa assumirá o comando da nau de Pedro um pouco avariada. Providenciados os reparos, ele tentará conduzir o barco pelo mar da história.’
Daniel J. Wakin
‘Como o cardeal Ratzinger foi eleito papa’, copyright O Estado de S.Paulo / The New York Times, 22/4/05
‘Joseph Ratzinger da Alemanha tornou-se o papa Bento XVI de maneira rápida, sendo eleito em escassas quatro votações em menos de 24 horas de conclave.
A forma como as coisas aconteceram começaram a vir à tona na quarta-feira, uma vez que os cardeais que o escolheram deixaram a reunião secreta e não estavam mais impedidos por uma ordem de tornar públicos seus comentários, uma condição imposta pelo próprio Ratzinger uma semana antes do conclave.
Exatamente de que forma Bento XVI chegou a ser eleito é naturalmente um segredo, dado os rígidos juramentos para manter os trâmites em sigilo, como exigido pelo papa João Paulo II. Os cardeais que falaram com os jornalistas depois disso ativeram-se ao juramento.
Contudo, foi o comportamento de Ratzinger nas semanas que antecederam ao conclave que ajudaram a selar sua eleição, disseram vários cardeais na quarta-feira.
Seu profundo conhecimento da burocracia do Vaticano, habilidade lingüística e destreza intelectual também tiveram um papel importante, disseram os cardeais em entrevistas e coletivas de imprensa. A opinião geral era de que Ratzinger era um importante puxador de votos, mas alguns analistas e prelados do Vaticano achavam que sua chance de ser eleito era apenas modesta. Citaram sua idade, 78 anos, e sua reputação de ser divisor. A maioria achava que ele passaria seus votos para um colega conservador.
Mas os cardeais desmentiram essas expectativas.
O cardeal Cormac Murphy-O´ Connor, arcebispo de Westminster, disse que não ‘ficou totalmente surpreso‘ com o resultado. ‘Creio que todo mundo sabia que, entre aqueles que poderiam se tornar papa, o antes cardeal Ratzinger era um candidato muito forte, não obstante sua idade ou outras coisas‘, disse ele.
Ao escolher Ratzinger, os cardeais foram claramente atraídos pela defesa que ele faz da doutrina católica romana em face ao que chamou de ‘ditadura do relativismo‘ ou ventos mutantes da crença numa sociedade secular, durante a missa de abertura do conclave, na segunda-feira. A eleição dele também indica que eles acreditam que fortalecer os fundamentos da fé é uma prioridade principal, apesar da extensa discussão entre os cardeais sobre as necessidades de Igreja na América Latina e em outros lugares fora da Europa.
Mas foi também sua celebração digna da missa fúnebre do papa João Paulo II, em 8 de abril, sua mão orientadora nas reuniões diárias dos cardeais durante o período entre um papa e outro e a missa pré-conclave que ajudaram a convencer os cardeais. Ele cumpriu esses papéis como deão do Colégio dos Cardeais. ‘Quando se tem em mente a forma como o cardeal Ratzinger celebrou a missa fúnebre e também a maneira como liderou o Colégio dos Cardeais quando fizeram suas reuniões‘, disse o cardeal Wilfrid Fox Napier, da África do Sul, ‘creio que ele mostrou grande qualidade de liderança, o que obviamente deve ter influenciado a opinião das pessoas sobre ele‘.
No pontificado de João Paulo II, Ratzinger foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé durante quase 25 anos, servindo como guardião da ortodoxia. Ele tinha ampla autoridade para punir teólogos errantes e decidir sobre muitos aspectos da vida da Igreja.
Napier disse que muitos dos 115 cardeais com direito a voto estavam bem a par da reputação de Ratzinger como um corretor de erros linha dura ou talvez até tenham visto isso mais de perto.
Mas, nas últimas semanas, tiveram oportunidade de conhecer seu lado ‘gentilmente humilde‘, assim como sua disposição para trabalhar com outros cardeais de forma colegiada. ‘Provavelmente, muitos de nós não conhecia essa faceta do cardeal Ratzinger‘, disse ele. ‘O cargo que ele exercia antes não dava muito espaço para este outro lado do seu caráter‘.
O cardeal Rosalio Castillo Lara, da Venezuela, também concordou que a atuação de Ratzinger depois da morte de João Paulo II foi de importância crucial. ‘Ele fez tudo muito bem, com grande serenidade, muito tato e também muita humildade‘, disse Castillo, ao diário La Stampa, de Turim. A proficiência de Bento XVI em inglês, francês, italiano e a experiência na Cúria também ajudaram. O fato de ele ser um entre os apenas três cardeais eleitores escolhidos pelo papa Paulo VI (o papa João Paulo II escolheu os restantes durante sua longa gestão) deu-lhe ‘grande crédito perante o mundo‘, disse Castillo.
Comentários dos cardeais antes do conclave e comentários de seus assessores, análises de historiadores do papado e informações dos astutos especialistas da imprensa no Vaticano, os vaticanistas, podem dar indícios sobre o que aconteceu dentro da Capela Sistina.
A maioria concorda que Ratzinger já entrou no conclave contando com grande apoio, talvez com 30 a 50 votos dos dois terços necessários, ou seja 77 votos.
Na primeira votação na segunda-feira à noite, deve ter ficado claro que sua posição era suficientemente forte para que ele fosse uma candidatura viável. Com os votos sendo lidos em voz alta durante a apuração, o avanço da candidatura de Ratzinger deve ter se tornado evidente. As duas votações da manhã de terça-feira aumentaram sua liderança e ele foi eleito na quarta votação.’
O Estado de S.Paulo
‘Para jornais, conservador e previsível’, copyright O Estado de S.Paulo , 21/4/05
‘Com o anúncio da escolha do sucessor de João Paulo II e a foto da primeira aparição pública de Bento XVI, os principais jornais do mundo trouxeram em suas edições de ontem questionamentos e análises sobre a escolha de um homem classificado como conservador para ser o novo líder da Igreja Católica. Nos encartes e páginas especiais publicados, além da biografia e de imagens do novo papa, apareceram dúvidas sobre a validade de suas posições, sua relação com os países de Terceiro Mundo e sua falta de diálogo com outras religiões.
Enquanto a maioria dos jornais da Alemanha, seu país natal, tratou com orgulho e nacionalismo a notícia, jornais importantes de outros países procuraram um maior distanciamento. O Bild, jornal popular que tem a maior circulação da Alemanha, colocou em sua manchete a frase ‘Somos papa. Nosso Joseph Ratzinger é o papa Bento XVI‘, tratando o fato, em seis páginas especiais, com forte caráter nacionalista.
O mesmo fez o jornal da cidade de Marktl, onde Joseph Ratzinger nasceu. Para o Alt-Neuottinger Anzeiger, trata-se de ‘um bávaro na cadeira de Pedro‘. Em uma das reportagens, o jornal destacou a importância que a região passará a ter. ‘A partir de agora, nos transformamos em um lugar de peregrinação.‘ Nos Estados Unidos, o New York Times enfatizou a relação entre João Paulo II e Bento XVI, dizendo que não se deve acreditar em grandes transformações. ‘Não há motivo para esperar mudança no que se refere ao controle da natalidade, ao celibato e ao homossexualismo‘, publicou em editorial.
Além disso, o jornal questionou as opiniões de Ratzinger sobre ‘temas de políticas públicas‘, como os formulados no ano passado contra a integração da Turquia, país de maioria muçulmana, à União Européia. ‘Seria extremamente perturbador se o papa se transformasse em uma desnecessária barreira aos esforços para reconciliar o mundo islâmico com o Ocidente.‘ O Washington Post adotou uma posição um pouco diferente, pondo Ratzinger como um homem leal às posições da Igreja. O jornal abordou os recentes problemas da Igreja Católica nos EUA, principalmente em relação aos casos de abuso sexual de crianças. ‘Esperamos que o novo papa ponha em prática uma política de tolerância zero contra o abuso de crianças por padres (…) que analise os possíveis benefícios das novas tecnologias médicas, sem rechaçá-las imediatamente.‘ O jornal italiano Corriere della Sera publicou um histórico do novo papa, enfatizando seus ‘nãos‘ ditos ao longo da vida. ‘Suas posições são sempre fiéis. O motivo é porque talvez o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não tenha tido começos fáceis e tenha exigido muito de si mesmo.
A importância do não para ele talvez tenha vindo da relação com o pai, um professor com dificuldades econômicas.‘ O jornal também tratou da formação intelectual do novo papa, lembrando inclusive de seu aluno brasileiro Leonardo Boff. ‘Anos depois, o professor romperia clamorosamente com o aluno, derrubando a
´The New York Times´ questionou opiniões de Ratzinger sobre ´políticas públicas´
Teologia da Libertação.‘ Os nãos de Ratzinger são inumeráveis até hoje, conforme o jornal. ‘Não ao sacerdócio da mulheres, não ao matrimônio dos padres, não à homossexualidade.‘ Ratzinger responde: ‘Eu não sou o grande inquisidor nem me sinto uma Cassandra.‘ Segundo o jornal, ele ama argumentar e defender os seus nãos sempre em nome daquela que para ele é a verdade.
Segundo o La Repubblica, ‘Bento XVI já era um papa anunciado, porque Joseph Ratzinger era o único cardeal que entrou no conclave com votos já prontos em seu nome‘.
O jornal italiano também citou Leonardo Boff: ‘Ratzinger tem uma angústia: não são só os desafios da direita e da esquerda que preocupam aquele que se confrontou com Leonardo Boff e Marcel Lefebvre. É a cultura dominante do moderno.‘ Na análise do La Repubblica, ‘no segundo papa estrangeiro da modernidade, já podemos observar um tom diferente. Ele se mostrou aos fiéis, mas não se deu à multidão. Poucas palavras e nenhuma retórica popular para cativar os fiéis‘.
Os jornais ingleses enfatizaram o passado de Ratzinger à frente da Congregação da Doutrina para a Fé, chamando-o de ‘Rottweiler de Deus‘ e ‘cardeal panzer‘. A imprensa francesa destacou a suposta intransigência de Ratzinger, mas Le Figaro atribuiu a pouca duração do conclave à ‘ausência de divisão‘ em uma ‘Igreja unida, que buscou a continuação‘.
Os jornais espanhóis também destacam a atitude conservadora que Ratzinger manteve até agora.
El País, o jornal de maior tiragem na Espanha, afirma que o novo papa ‘talvez tente restaurar parcialmente o velho rito latino e o canto gregoriano‘, mas ‘é preciso lhe dar tempo‘, pois se transformar em prelado ‘é um desafio capaz de transformar qualquer um‘.
El Mundo questiona se ele ‘possui um adequado conhecimento das pessoas e de seus problemas cotidianos‘ e La Razón afirma que chega ao papado ‘mais um intelectual do que um pastor, com a titânica tarefa de encaminhar a Igreja Católica no Terceiro Milênio‘ Já na América Latina, o diário argentino Página/12, sob o título ‘Que Deus os perdoe‘, qualifica Bento XVI de ‘cabeça da ala ultraconservadora da Igreja‘ e afirma: ‘É como se Donald Rumsfeld (secretário de Defesa) tivesse sido eleito presidente dos Estados Unidos.‘ ?’