A história do Toque de Midas deveria ter um título mais dramático e realista: “A Maldição de Midas”. Ao atender ao pedido do rei da Frígia um sátiro, amigo do pândego Dionísio, quase o desgraçou.
Ao ganhar o dom de converter em ouro tudo o que tocava, Midas ficou impossibilitado de comer, beber, conviver com gente – tudo se transformava instantaneamente no precioso e duro metal. Para não morrer de fome, sede e desespero, Midas obteve nova graça – com a água pura de uma especialíssima fonte poderia reverter ao estado natural tudo o que transformara em ouro. Feliz da vida acabou como seguidor do Pã, deus dos bosques.
Reverenciado com tantos e merecidos adjetivos, o falecido Steve Jobs ainda não foi aquinhoado com a alcunha de Midas. Deveria: todos os produtos, modelos, sistemas, programas e aplicativos que lançou no mercado fizeram tanto sucesso em prazos tão curtos que ele acabou convertido no ícone da obsolescência.
O mago do consumismo e dos modismos tocava num produto e ele se transformava em febre mundial. Numa recessão econômica do porte desta que vivemos desde 2008, os dotes criativos de Jobs têm algo de apocalíptico. Quantos modelos do iPhone podem ser lançados por ano? E se forem radicalmente revolucionários como exige o mercado, não poderão ameaçar os produtos afins da marca da maçã?
Quixote digital
Convém lembrar que a versão 4S do smartphone da Apple (lançada poucos dias antes da morte de Jobs) foi mal recebida pelos especialistas e investidores. A onda não foi maior porque Midas/Jobs desapareceu de cena antes que a bola de neve crescesse demais. Alguns concorrentes, porém, já têm na gaveta o protótipo equivalente à versão 5.
Um mercado tenso, inelástico e mal-humorado comportará esta autofagia? Não está na hora de pedir ao sátiro, amigo de Deonísio, para trazer um caminhão daquela água pura e sossegar os modismos delirantes?
Quando os gadgets digitais deixarem de ser mensageiros da felicidade e o ato de conectar-se na rede tornar-se tão natural quanto o de ligar a luz será preciso inventar um Steve Jobs versão 2 – mais amigável e acessível do que a sua empresa. Menos infalível do que aqueles que apostam cegamente na destruição criativa.
A implacável doença tornou-o mais conhecido – ao mesmo tempo, irreconhecível. Mais velho e mais sábio. Algumas semanas depois de sua morte, ao invés de descansar em paz, o Quixote digital terá que enfrentar desafio maior do que os anteriores: vender mais exemplares da versão digital da apressada (auto)biografia do que da versão em papel. Se falhar pela segunda vez, Midas será definitivamente afastado do cargo de ícone do capitalismo.
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