Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Miguel Reale

‘O projeto de lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) atenta, a um só tempo, contra a Constituição e as leis do País, visando a privá-lo da liberdade de imprensa, conquista e garantia essencial da democracia.

Muitas e procedentes foram as críticas suscitadas por essa infeliz proposta legislativa, mas não se atentou devidamente para uma questão básica, posta por seu artigo 1.º, que é a instituição do CFJ como ‘autarquia (sic) dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira’.

Ora, a autarquia, como explica, com a sua habitual clareza, o saudoso mestre Hely Lopes Meirelles, é ‘forma de descentralização administrativa (note-se) através da personificação de um serviço retirado da Administração centralizada. Por essa razão à autarquia só deve ser outorgado serviço público típico, e não atividades industriais ou econômicas, ainda que de interesse coletivo’.

À luz desse ensinamento, entra pelos olhos que, se era propósito fiscalizar o exercício da profissão de jornalista, criando o respectivo registro, jamais se poderia pensar numa organização autárquica, em se tratando de ‘atividade de comunicação’ que se confunde com a própria liberdade democrática.

A autarquia, ainda que especial, nunca deixa de ficar vinculada a este ou àquele órgão da Administração, em geral indicado pela lei, ao qual ela se subordina, por maior que seja a autonomia conferida.

É a razão pela qual, quando se tratou da organização da profissão dos advogados, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) foi declarada serviço público, sendo dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tendo-se o cuidado de determinar na lei instituidora, como o repetiu depois a Lei n.º 8.906, de 4 de julho de 1994, ora em vigor, que ‘a OAB não mantém com órgão da Administração Pública qualquer vínculo funcional e hierárquico’ (artigo 44, @ 1.º).

Tendo-se, como se vê, um modelo de preservação da autonomia e da liberdade, somente uma arriscada e malévola intenção explica o recurso à idéia de autarquia…

O que se pretende, em suma, de maneira ostensiva, é submeter ao Estado a atividade jornalística, atribuindo-se ao Conselho Federal de Jornalismo competência para supervisionar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista em todo o território nacional, editar o respectivo Código de Ética e Disciplina, assim como definir as condições para inscrição do profissional e suspensão e cancelamento de seu registro.

Não se poderá conceber quadro de subordinação à Administração Pública mais preciso e rigoroso de uma atividade que constitui raiz essencial do direito de comunicação.

Nada seria preciso acrescentar para demonstrar a inconstitucionalidade da proposta governamental, mas não é demais demonstrar outros pontos em que ela conflita gritantemente com a Constituição de 1988, que, além de proclamar que ‘é livre a manifestação do pensamento’, acrescenta que ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação’ (artigo 5.º, incisos IV e IX).

O legislador constituinte teve tal apreço pelo valor da comunicação social, que caracteriza a nossa era, que lhe dedicou capítulo especial (artigos 220 usque 224), no qual é declarado que ‘a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição’.

Como se tal enunciado não bastasse, adverte o @ 1.º do artigo 220 que ‘nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social’.

Como se vê, são mandamentos de nossa própria Carta Magna que vetam a forma pela qual se pretende criar o CFJ como ente autárquico munido de múltiplos instrumentos de censura e de subordinação da atividade jornalística, atingindo tanto as respectivas empresas como os que nelas exercem sua profissão.

Alegar-se-á que, à vista de conhecidos e reiterados abusos, se justifica a existência de preceitos legais que protejam o garantido pelo inciso X do artigo 5.º da Lei Maior, que considera ‘invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas’, mas não faltam formas e meios legítimos para salvaguarda dessas prerrogativas fundamentais.

Não há dúvida que deve haver um órgão, revestido de autoridade pública, com poderes para, sem delongas jurídicas, apurar a responsabilidade dos jornalistas que, sem base em provas ou em indícios plausíveis e ponderáveis, mas apenas para sua promoção individual, expõem pessoas naturais ou jurídicas à execração pública. Mais do que quaisquer outros, os informantes que operam na mídia devem saber que a necessária vigilância é condição da liberdade de comunicação, se e quando exercida com a devida responsabilidade objetiva.

Por outro lado, apurada a improcedência da acusação feita, as empresas de comunicação, sob pena de graves sanções, devem publicar, incontinenti, a respectiva retificação com o mesmo destaque com que veicularam a falsa notícia.

É claro que esse poder fiscalizador e corretivo pressupõe a existência de um ente instituído mediante mandamentos legais, o que legitima a criação de um Conselho Federal de Jornalismo nos moldes da OAB, com competência para promulgar o seu Código de Ética, e ter condições de efetivamente obrigar os transgressores a seu exato e pronto adimplemento. (Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP E-mail: reale@miguelreale.com.br Home pages: www.miguelreale.com.br e www.realeadvogados.com.br)’



Antonio Avellar

‘Uma tal de ANJ’, copyright Tribuna da Imprensa, 22/09/04

‘O jornalismo não é uma tarefa individual. Sua repercussão social faz de nós, os jornalistas, agentes de mudanças, retardadores ou francos inibidores de processos políticos, sociais, econômicos e culturais que afetam a populações inteiras.

(Geraldo Albarrán – jornalista mexicano da revista ‘Processo’)

A posse da nova diretoria da ANJ (14-09), entidade patronal que agrega os donos dos jornais da grande midia, virou palco para que alguns de seus dirigentes fizessem críticas inflamadas contra uma remota possibilidade de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ). Da forma como está, a profissão de jornalista é regulamentada pelo Ministério do Trabalho, o que já motivou uma série de irregularidades, onde a mais comum é o exercício ilegal da atividade profissional. A formação do CFJ acabaria com essa e outras distorções. o que se tem de corrigir são os abusos dos tribunais de exceções nele formulados, pois já existem leis demais e contingências de riscos bastante para punir jornalistas.

Por outro lado, quem é essa inservível ANJ para criticar alguma coisa? A criação de um Conselho, é claro, sem os ranços do autoritarismo, diz respeito diretamente a uma categoria de classe, que através de seminários, assembléias e outras formas de discussões com seus filiados decidem ou não pela sua fundação. Tanto é assim que existem dezenas de Conselhos das mais variadas categorias, e por que os jornalistas não podem ter o deles? Só por que ela está raivosa e não quer? Esta entidade patronal vem falando cobras e lagartos, até de maneira destemperada sobre a criação do Conselho de Jornalismo, mas se qualquer jornalista que trabalhe para uma midia de seus associados, escrevessem criticando a postura de um deles diante o voraz interesse pelo dinheiro público, seria sumariamente demitido. Então, o que é mais autoritário?

Além do mais, a furibunda ANJ parece gostar mesmo dos cofres públicos, senão vejamos: em março deste ano, seus dirigentes andaram cortejando a direção do BNDES para arrancar uma linha de crédito de R$ 700 milhões para importação de papel de imprensa. Mas antes dessa investida, precisamente em outubro de 2003, representantes daquela entidade e suas irmãs cara-metade Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), e a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), estiveram reunidos em Brasília com a diretoria do BNDES e ministros do governo Lula, ocasião em que apresentaram um ‘pacote de investimentos’ para o setor da midia.

Falou-se na época em mais de R$ 6 bilhões, e que metade dessa astronômica quantia era reivindicada por uma poderosa Rede de Televisão – qualquer semelhança tem tudo a ver – e diferente dos ‘estudos’ apresentados ao banco estatal, a volumosa soma era para saldar endividamentos externos, principalmente, e interno, por gestões administrativas mal feitas.

Se a princípio, por pequenas divergências era contra a criação do CFJ, agora convicto de que os tomadores do dinheiro público estão do mesmo lado, pulei fora, fui… estou plenamente de acordo. O que não quer dizer que oncordo com à declaração intempestiva do presidente Lula, quando outro dia, em mais um dos seus deslises, chamou os jornalistas de covardes por não aprovarem ou se esforçarem pela criação do Conselho.

Deveria, isto sim, ter reservado sua bravata para os dirigentes da tal ANJ, quando participou da posse da nova diretoria, terça-feira passada, e não massagear o ego deles, como foi o tom do seu discurso.’