Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Milton Coelho da Graça

‘No dia seguinte (15.12) ao julgamento do Prêmio Esso, um diretor de minha faculdade (e também pai de uma jornalista) me fez duas interpelações: por que eu e os companheiros da comissão de julgamento havíamos dado o prêmio de reportagem a um repórter ‘que nunca dera certo, tendo sido demitido de várias redações’, e – ainda mais – a uma matéria publicada por ‘um jornalzinho mensal que vende apenas 700 exemplares’?

Era uma festa de fim-de-ano, sem clima para discussão profissional. E imaginei que muitos teriam opiniões semelhantes. Por isso, a resposta deveria ser a mais ampla, se possível a todos os profissionais de jornalismo, como aqui no Comunique-se.

Folha, Estado e Veja contestaram os critérios de premiação do Esso ainda na fase seletiva, em que uma comissão escolheu os três finalistas de cada categoria. Eu e meus seis companheiros – Dora Kramer, Eduardo Ribeiro, Luiz Weis, Marcos de Sá Correia, Roberto Mugiatti e Moisés Rabinovitch – pegamos o rabo de foguete da indicação final dos premiados já com um debate público (a Folha fez matéria sobre essa crítica na sexta, 10/12, quatro dias antes do julgamento).

Dos prêmios Esso distribuídos, mais da metade exigiram muita argumentação e um longo processo de convencimento mútuo e formação de uma maioria. Mas umas poucas decisões foram unânimes ou por 6 a 1, com o Premio de Jornalismo e o de Reportagem entre eles. Ou seja, se algum de nós errou, errou bem acompanhado. E talvez o mais importante: nenhum de nós levantou como objeção a acidentada biografia do Renan (que ele mesmo se encarregou de descrever, sob fortes aplausos, na grande festa de premiação) e muito menos o tamanho ou importância do jornal em que a matéria foi publicada, porque essas ‘coisas’ não estavam em julgamento. Como diz a sabedoria popular, outra coisa é outra coisa.

Seria interessante que a maioria dos companheiros lesse a matéria do Renan. Ninguém poderá negar o ‘faro’, a construção da pauta, a tenacidade do repórter e a qualidade do texto. Faltam respostas, em alguns momentos o texto é demasiado, a dose de ‘mundo cão’ é exagerada? É possível. Mas, como leitor, um pedaço do mundo em que vivo mas não conheço foi sendo revelado e dissecado, com distanciamento, precisão e frieza de uma autópsia, enquanto minha emoção aumentava a cada parágrafo.

Eu gostaria de um dia ter escrito essa reportagem. E você, leitor-companheiro?’



Renan Antunes de Oliveira

‘A tragédia de Felipe Klein’, Reportagem vencedora do Prêmio Esso 2004 copyright Já in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 20/12/04

‘Ele tinha tudo para ser feliz. Juventude, saúde, talento, dinheiro, o amor de belas garotas. Mas Felipe construiu para si um mundo dark e animal. Tatuou demônios no peito – e foi vencido por eles.

Na noite do sábado 17 de abril, um corpo de aparência incomum foi levado pela polícia ao necrotério da Avenida Ipiranga. Tinha duas protuberâncias esquisitas na testa. O médico-legista abriu o couro cabeludo, abaixou a pele até o nariz e se deparou com algo muito raro: dois chifres implantados na carne, feitos de teflon. Cada um era quase do tamanho de uma barra de chocolate Prestígio.

O cadáver estava todinho tatuado. Trazia argolas de metal nos genitais, mamilos, lábios, nariz e nas orelhas – e estas tinham orifícios da largura de um dedo.

De entre os chifres saíam três pinos metálicos pontiagudos. A língua fora alterada: cortada ao meio e já cicatrizada, parecia a de um lagarto.

É claro que Felipe Augusto Klein, morto aos 20 anos, nem sempre teve uma aparência assim.

Nasceu uma criança saudável. Era o caçula dos cinco filhos do casal Lili e Odacir – o pai é um político influente, quatro vezes deputado federal, ministro de FHC e atual secretário estadual da Agricultura.

Fotos de Felipe no álbum da família mostram a criança típica da classe privilegiada: um menino de cachinhos loiros, olhos azuis, bochechudo, limpo, bem vestido – e, às vezes, sorridente.

Foi na adolescência que ele começou a se mutilar com tatuagens, cirurgias e implantes. Pouco antes de morrer preparava-se para botar nas costas uma pele de lagarto e rasgar sulcos no rosto, para pintar neles uma máscara dos maoris, nativos da Nova Zelândia.

Em sua curta vida Felipe radicalizou em ‘body modification’, a expressão inglesa dos adeptos de mudanças corporais. Nos últimos três anos, todo mês gravou alguma figura nova no corpo, ou se aplicou algum piercing. Para combater as dores provocadas por agulhas e bisturis ele se automedicava.

As dores físicas eram fichinha se comparadas ao espírito atormentado de Felipe. A mãe, as duas últimas namoradas e os dois amigos mais próximos o descreveram como um jovem patologicamente sensível a tudo que o rodeava – e em especial, ao alcoolismo do pai.

‘Eu não sou desse mundo’ era sua frase predileta. Felipe disse que se sentia assim para dona Lili, para Helena, seu grande amor, para Karen, sua última namorada, para Cristiano e Xande, dois tatuadores tão amigos que cada um segurou uma alça do caixão, e para Virgínia, uma amiga que foi ao enterro chorar com a família.

Não dá para saber quando foi que ele começou a se sentir desse jeito. A mãe contou que ‘cedo’ a família percebeu nele ‘alguma coisa diferente’. Por isso, ‘desde pequeno recebeu tratamento psicológico’. Nos dois últimos anos esteve ‘sob o controle de um psiquiatra’.

Os médicos diagnosticaram um mal que surge na adolescência. O ‘transtorno afetivo bipolar’, ou ‘psicose maníaco-depressiva’. Felipe vivia na gangorra entre depressão e euforia, quase sempre no lado da baixa. Era tratado com um coquetel de antidepressivos.

Na literatura médica, a origem do mal é incerta. Pode ser genética, ou despertada por um trauma. O certo é que ‘ele nunca foi uma criança feliz’, afirmou a mãe. Ela não sabe explicar como, entre seus cinco filhos, apenas Felipe teve a sina. ‘O mundo dele era seu quarto e seus bichos, não gostava de jogar futebol, nem de sair’.

Felipe passou a infância em Brasília, onde seu divertimento era colecionar gnomos, seres imaginários de uma lenda nórdica. Na adolescência, já em Porto Alegre, onde terminou o secundário no Colégio Sevigné, aumentaram seus sintomas depressivos.

Por alguns meses fez parte da tribo urbana dos góticos, jovens que se vestem de negro, assumem um ar deprê e desprezam o resto da sociedade – mas se afastou deles porque o pessoal o considerava excessivamente… gótico.

Quando saiu dessa tribo de humanos, ele se voltou mais ainda para seus bichos. Passava dias trancado no confortável quarto que ocupava no amplo apê da família, no edifício El Greco, onde morava com a mãe, uma tia e mais de 20 animais.

No seu minizôo tinha gatos com pedigree, cobras importadas, filhotes de jacaré, tartarugas e lagartos. ‘Ele gostava mais de animais do que de gente’, contou Helena, citando outra frase ouvida dele. Tal paixão o levou a estudar Veterinária na Ulbra, mas logo se desinteressou.

Paixão permanente só por tattoos. A primeira ele fez aos 11, levado pela mãe. Era um sol, na coxa direita. Na adolescência evoluiu de tatuagens inocentes para figuras demoníacas e implantes radicais – já então contrariando os pais.

Pesquisando na internet, Felipe virou autoridade em body modification. Quando começou a fazer experiências no próprio corpo ele apareceu na RBS TV, demonstrando as técnicas. Vaidoso, cortejou cineastas para tentar exibir seu visual em filmes. Já na fase da modification total suas imagens acabaram exibidas ao grande público, mas no Ratinho, numa comparação grotesca com um porco.

Seu visual o transformou numa celebridade na web. No pequeno círculo dos tatuadores ele chegou a jurado de competições internacionais.

Quem o conhecia sabia que era determinado e não temia a dor. Ele mesmo se aplicava alguns piercings, aquelas argolas metálicas que usava no corpo, cuja fixação é um pequeno suplício.

Quando botava na cabeça que faria alguma modification ia em frente. Foi dele próprio a idéia dos chifres. ‘Eu tentei dissuadi-lo dizendo que um dia ele se arrependeria e que então seria doloroso retirá-los, mas ele não ouvia ninguém’, lembrou dona Lili.

Com a decisão tomada, ele estudou os passos da operação em livros de Medicina. Depois, orientou o tatuador que fez a cirurgia.

Nos últimos meses Felipe alimentou a bizarra fantasia de se transformar num animal como aqueles que amava – a idéia era virar um lagarto, aplicando sob a pele das costas bolinhas de silicone que lhe dariam um aspecto enrugado. A língua já estava pronta, dividida numa operação feita por um dentista de Taquara.

No final de março Felipe anunciou a meta de implantar a máscara maori e virar lagarto, coisas que o deixariam irreconhecível. Ninguém duvidou da possibilidade. Mas era tarde. Ninguém pôde mais fazer coisa alguma por ele, exceto assistir sua dolorosa renúncia à humanidade.

Polícia não consegue depoimento do pai

A primeira pessoa a ver Felipe morto foi Tadeu, porteiro do edifício Palácio, onde morava Odacir Klein. Ele contou que estava no saguão quando ouviu ‘um grito e um baque’. Caminhou até o muro que dá para o edifício Santa Maria e viu o corpo do rapaz estatelado no depósito de lixo do prédio vizinho.

Eram 18h56min do sábado 17 de abril. Tadeu chamou a polícia.

Quase três meses depois, a polícia ainda não tinha concluído o inquérito para apurar se Felipe se atirou, ou caiu, ou foi jogado do apto 903, o quarto e sala do pai no nono andar do Palácio, no 888 da Duque de Caxias.

Só pai e filho estavam no apartamento na hora da morte – e o pai não deu depoimento. Alguns jornais divulgaram que alguém vira Felipe no parapeito momentos antes da queda. Tal testemunha confirmaria suicídio, mas ela nunca existiu.

Quem esteve muito próximo da cena, mas também nada viu, foi Lucas, um estudante que mora no oitavo andar do prédio vizinho, quase janela com janela com o apê onde estava Felipe. Ele apenas ouviu o mesmo grito e baque escutados pelo porteiro.

Por determinação superior, a investigação da morte de Felipe não foi para a delegacia do bairro, como sempre acontece com cidadãos comuns, mas sim para a especializada em homicídios.

O delegado Márcio Zachello, encarregado do inquérito, disse que ‘a investigação contempla todas as possibilidades’, mas trabalha mais com a hipótese de suicídio. Ele promete concluir a apuração ‘em breve’. Três são as principais evidências de suicídio. A primeira é que o corpo de Felipe foi encontrado a 11 metros de distância do prédio do Palácio, sinalizando que ele teria tomado impulso.

A segunda foi a constatação de que o pai estava quase inconsciente na hora da tragédia, bêbado demais para qualquer ação violenta. Examinado pelo Departamento Médico-Legal, ele tinha 26 decigramas de álcool por litro de sangue, numa escala onde seis é o limite legal da embriaguês.

A terceira é o depoimento da namorada, a estudante Karen, 20 anos. Ela disse às autoridades que os dois tinham um pacto de suicídio. Karen desistiu da idéia quando eles discordaram sobre formas indolores de morrer – Felipe gostava de se flagelar.

Ainda faltam duas peças para a conclusão do inquérito. O laudo da perícia feita no local pelo Instituto de Criminalística e o depoimento do pai. Ele já disse a familiares e amigos que não se lembra de nada do ocorrido naquela noite.

Filho cuidava de Odacir

Era Felipe quem cuidava do pai quando este bebia demais. ‘Meu filho se preocupava com o que pudesse acontecer com Odacir’, contou dona Lili. ‘Ele sempre tentava protegê-lo’.

O drama do alcoolismo foi vivido em segredo pela família durante anos, até ser exposto em rede nacional de TV, em 1996. Odacir, então ministro dos Transportes, voltava de uma festa com o filho mais velho, Fabrício, quando este atropelou e matou um operário, em Brasília. Os dois fugiram sem prestar socorro à vítima, mas alguém anotou a placa do carro e eles foram descobertos. O ministro estava embriagado. Com a repercussão do caso ele renunciou ao cargo.

No últimos anos Odacir fez vários tratamentos, alternando períodos ruins com outros de sobriedade. No ano passado, se separou da mulher e foi viver na mesma rua, a um quarteirão. Quando estava em dia ruim, assessores levavam documentos oficiais para que ele os assinasse em casa.

Última hora

Passava das 5 da tarde daquele sábado quando Felipe saiu do apê da mãe, atravessou a Praça da Matriz e caminhou até o do pai. Àquela hora a família sabia que Odacir estava alcoolizado – e o filho cumpriria pela última vez a tarefa de cuidar dele.

‘Quando meu filho saiu eu fiquei rezando o terço libertário. Pedi a Jesus para proteger e libertar os dois’, disse dona Lili – ela não derramou uma lágrima sequer durante 40 minutos de entrevista, numa manhã de junho.

Felipe chegou no edifício do pai e o esperou no saguão. Odacir apareceu pouco antes da seis, cambaleando. Caiu no portão. O zelador Gérson e o porteiro Tadeu tiveram que carregá-lo.

Os dois levaram Odacir para o elevador. Na curta viagem, Gérson notou que ele se contorceu de dor, provocada por um forte beliscão que Felipe lhe aplicara nas costas.

‘Eu disse para ele parar de judiar do doutor Odacir’, contou Gérson. Felipe rebateu: ‘Ele só nos faz passar vergonha’. A frase do rapaz com o rosto desfigurado soou estranha para o zelador: ‘Vinda de quem vinha, parecia piada, mas notei que ele estava muito nervoso e fiquei quieto’.

No apê, Felipe ordenou que os dois atirassem o pai no chão, mas Gérson não aceitou: ‘Mandei ele abrir a bicama da sala e o deixamos ali’.

O que aconteceu depois não teve testemunhas. Vizinhos ouviram pai e filho discutindo, gritos abafados por portas fechadas. Às 18h56, a queda.

A polícia chegou logo depois. Odacir aparece sem camisa nas fotos do inquérito, descabelado. Num relatório do SAMU os paramédicos atestaram que ele estava ‘com hálito etílico, fala arrastada e movimentos desorientados’, mas sem ferimentos, exceto pequenos arranhões.

Uma parente passou pela rua, viu o rebuliço, ouviu o zum zum zum e correu para a casa de dona Lili – ainda sem saber quem tinha morrido. ‘Eu pensei que tinha sido o Odacir’, disse depois dona Lili. ‘Quando entrei na sala e o vi de pé, entendi que era Felipe’.

Ela ainda teve coragem para ir à janela e olhar para baixo. O filho estava de bruços, com as pernas quebradas, os pés torcidos para fora e os braços abertos em cruz.

Serenidade

Dona Lili disse que já temia que o filho se matasse e mostrou dois sinais: ‘Uma semana antes ele me deu uns óculos que eu gostava e distribuiu os bichos’. Tutankamon, o gato persa preferido, e Corn Snake, uma cobra americana, foram para o amigo Xande, tatuador em Camaquã. A mãe disse que agora se sente serena porque ‘ele sempre teve tudo o que queria, toda a ajuda que precisava. Não adiantou. Acho que ele estava muito avançado para nós, noutra dimensão’.

Ela buscou apoio num grupo de pessoas que também perderam parentes: ‘Com eles a gente pode falar, explicar e entender tudo’.

Dona Lili e o resto da família decidiram armar uma barreira de silêncio. Todos temem que o incidente possa prejudicar a candidatura do irmão Fabrício à Câmara de Vereadores.

Recuperado do choque, Odacir retomou o trabalho, até viajou para a China na comitiva do governador. A tragédia uniu outra vez Lili e Odacir – ele voltou para casa, nunca mais pisou ao apê onde Felipe morreu.

Rebeldia no enterro

Felipe fez parte de um grupo gótico freqüentador do estúdio Tattoo Company, da rua Duque. A musa do pessoal era a pintora Sílvia Motosi, uma Frida Kahlo dos pampas, cujos trabalhos estão expostos este mês na Usina do Gasômetro – amiga de Felipe, tatuada no mesmo estúdio e pelo mesmo tatuador, ela se matou em 2002, do mesmo jeito: saltando da janela do apê da família.

Quando menino Felipe era como um mascote da turma, composta por gente bem mais velha. Na adolescência era cliente compulsivo. Finalmente, quando já estava todo tatuado, virou garoto-propaganda da casa. O pessoal de lá elogiava muito seu visual – ele se sentia estimulado e ia cada vez mais fundo.

Um tatuador do estúdio era seu confidente. Quando não estava se tatuando, Felipe aparecia com amigos para quem oferecia os serviços do estúdio. Por algum tempo a mesma turma se reuniu no atelier da arquiteta Roberta, uma notável na tribo, para discussões sobre body modification, universo gótico e a arte da tatuagem, considerada por eles ‘tão efêmera quanto a vida’.

Ainda adolescente ele serviu de modelo num calendário gótico. Na última página Felipe exibe o corpo com a palavra ‘alone’ (sozinho), enquanto abraça a arquiteta – ela hoje tem 32 anos, vive na Áustria.

Uma série de fotos feitas pela produtora de moda Marion Velasco, com a participação de modelo Priscila Burman, é emblemática do visual chocante de Felipe mesmo antes do implante de chifres.

Seu corpo estava coberto por tatuagens aparentemente sem sentido. A mais dramática era uma face demoníaca no peito. Exibia cemitérios, dragões, flores, máscaras, frases completas – uma delas, em alemão, dizia ‘solidão para sempre’.

Para quem se sentia sozinho em vida, Felipe teve um enterro superconcorrido. Com a presença do governador Germano Rigotto, do senador Pedro Simon e até de adversários políticos do pai, como o ex-governador Alceu Collares, a cerimônia acabou atraindo centenas de pessoas e muitos jornalistas – foi tudo, menos discreta.

Os amigos do lado gótico dele não gostaram de ver tantos políticos no velório. Virgínia contou que um grupo de tatuadores, ela junto, ‘se posicionou entre o caixão e os políticos durante alguns minutos, tenho certeza que Felipe gostaria do que fizemos para protegê-lo’.

As diferenças entre família e tatuadores apareceram também no convite para enterro, com dois textos. Um falando que o menino foi acolhido por Jesus e Maria. O outro dizendo que ‘no mundo de Felipe não pode haver maldade’. Houve um pequeno momento de constrangimento entre as duas turmas, episódio relatado por Virginia. A irmã dele, Fernanda, estava fazendo um agradecimento público aos tatuadores, dizendo ‘vocês eram sua verdadeira família’, quando foi brecada pela mãe: ‘Não filha, ele nos amava, nós é que éramos sua família’ – dona Lili falou com a autoridade de quem mais o conhecia.

Felipe levou consigo algumas de suas bizarrices. No dedo anular direito, um anel em forma de esqueleto. No pescoço, uma corrente com seu inseparável bisturi. Virgínia meteu um broche no caixão, em sinal de amizade eterna. Karen, a última namorada, botou uma vaquinha nas mãos dele, certa de que seu amor só estaria feliz na companhia de algum animal.

Felipe foi enterrado no cemitério São Miguel e Almas. Virgínia reclamou da aparência prosaica do túmulo, queria ‘alguma coisa medieval’, que ela julgava seria mais ao gosto gótico do morto.

A tumba acabou adornada por um singelo bibelô de gesso, com a figura de um anjo montado num escorpião. A mãe mandou gravar uma frase na lápide, citando o martírio de Jesus no Calvário: ‘Nos precedestes na luz’.

Amor no Rio de Janeiro foi raro momento de paz

Felipe conheceu o amor. Foi em outubro de 2001, numa convenção de tatuadores, em São Paulo. Aos 18 anos, branquelo e magro, 1m80 e ombros largos, ele atraiu Helena, sete anos mais velha, branquela e cheinha, 1m66. Ela só se aproximou dele dias depois, no protocolo jovem: via email.

Já em Porto Alegre, ele respondeu dizendo que também a tinha notado. Pediu uma imagem para conferir. E gostou da mulher que não fazia o tipo deprê. Carioca criada no Leblon, filha de uma professora de Literatura Francesa e formada em Publicidade, ela trabalhava numa produtora de filmes.

Superocupada, só teve tempo de vir a Porto Alegre na virada de 2002. Na noite de Ano Novo os dois ficaram. Ela jura que ‘foi um sonho’.

Helena se disse atraída ‘porque ele era muito bonito antes das modificações’, além de ser ‘mais sério do que muita gente mais velha’. Ela o achou então ‘longe de ser deprê’ e que seu figurino ‘era menos extremo’. No carnaval Felipe foi pro Rio.

Por alguns dias Helena ia trabalhar com Felipe a tiracolo. Ele ficava rolando nas locações, esperando pelo tempo livre dela. Os dois tomavam muito sorvete na lanchonete Chaika, em Ipanema. Ela engordou alguns quilinhos, ele não, ela acha que é porque ele ‘era magro de ruim’.

Helena estava apaixonada. Elogiou Felipe como ‘tudo, menos um amador’. Ela topou mudar-se para Porto Alegre. Em março de 2002, veio morar com ele, a mãe, a tia e a bicharada dele. ‘Foi um tempo legal. A gente via desenhos animados, assistia filmes sobre Medicina no Discovery. Às vezes, ele inventava coisas na cozinha, era bom em massas’, recorda a moça.

O relacionamento foi crescendo e as diferenças aparecendo. Helena: ‘Ele dizia que queria ser cada vez menos humano. Sentia ódio da raça humana. Detestava pessoas gananciosas e as que buscam notoriedade’. A ex-namorada lembra que ‘uma coisa muito dele era sofrer quando via gente fazendo coisas ruins, uns passando por cima de outros para aparecer’. Ela dizia ‘esquece isso, vamos nos divertir’, mas parece que ele ‘não era disso, levava as coisas até o fim’.

Mais Helena: ‘Eu acho que é por isso que ele se matou. Ele queria ser o menos humano, mas ao mesmo tempo encarava todos os problemas. Se você encara, como é que vai sobreviver ? O suicida é aquele que não vê uma saída. E Felipe era assim’.

Ela disse que ele demonstrava ‘grande preocupação com o pai. Quando ele sofria suas crises de alcoolismo, Felipe era o mais prestativo. Tomava a iniciativa de ajudá-lo, mas na volta se via que ele sofria. Ficava quieto num canto, muito triste’.

Num momento de depressão Felipe disse a Helena que gostaria de ser internado. ‘O psiquiatra não concordou e receitou Lexotan’, conta a ex-namorada. Depois de um ano trancada no quarto com Felipe, ela foi embora: ‘Nenhuma história de amor dura para sempre’ e ‘eu precisava trabalhar’ foram suas razões.

Nos primeiros meses separados ele foi muito ciumento. ‘Eu passei a ficar em casa, no Rio, para não desagradá-lo. Mas depois ele entendeu e me disse para desencanar, não queria nada ruim assim no nosso relacionamento’.

Felipe também seguiu adiante. No início, queixou-se para Cristiano da separação. Depois arrumou outra namorada, mas reclamava que ela ‘pegava no pé por picuinhas’. Não queria ficar sozinho e seu lema passou a ser ‘antes mal acompanhado do que só’. Nunca escondeu sua paixão e a falta que Helena lhe fazia.

Depois da morte, Helena foi chamada pela família – ela não o vira durante a fase final de modificações corporais. Um carro oficial foi esperá-la no aeroporto e o enterro atrasado para sua chegada.

Virgínia disse que a viu no caixão, serena, repetindo baixinho para o morto, com ternura: ‘Me desculpe. Se eu não tivesse ido embora você ainda estaria vivo’.

Agora é tarde, Felipe Augusto foi na frente. Nos precedeu na luz.’



VIOLÊNCIA NA MÍDIA
Janio de Freitas

‘Provocações sem violência’, copyright Folha de S. Paulo, 23/12/04

‘O IBGE está a fim de criar caso. Primeiro veio com a afirmação de que a obesidade é maior problema do que a fome, o que obrigou Lula a uma interpretação psicofamélica, elaborada a partir da convicção de que o IBGE saiu por aí indagando quem se sente empanturrado ou de barriga vazia. A conclusão presidencial de que o índice de obesidade se deve ‘à vergonha de dizer que sente fome’ contribuiu, além do que dá à ciência, para bloquear o surgimento de um Gordura Zero, que ameaçaria a sucessão diária dos churrascos, jantares e outros comes-e-bebes que já obrigaram Lula a fazer 39 ternos de cinturas sempre ampliadas -o que até já levou a desconfianças de que o Fome Zero lançado por Lula é, sobretudo, um pretexto.

Pois vem agora o IBGE com uma provocação a toda a mídia. Afirmar que o território mais violento, demonstrado pelo índice de homens mortos por violência no total de óbitos, é o Distrito Federal, implica um ataque muito desagradável aos jornalistas. E a muitos especialistas em violência, com suas interessantes e multiplicáveis bolsas para pesquisa. Como afirmar que o Rio de Janeiro não lidera o índice de mortes violentas, se o Rio é dado como tal em toda a mídia, todos os dias?

É claro que o primeiro da lista não pode ser o DF, que jamais aparece na mídia. Afirmá-lo é acusar a mídia de omissão, ou mesmo de inveracidade cotidiana e, quem sabe, deliberada. Onde foi parar o Rio de Janeiro? Em décimo? A audácia do IBGE vai longe: situa o Rio em décimo pior e põe em sétimo o São Paulo que, demonstra a mídia, convive em tão silenciosa compreensão com a violência que línguas perversas lhe atribuem. Em particular, os seus seqüestros, que, segundo o carioca e invejoso Globo, ‘no ano passado [foram] 202 no Estado [de São Paulo] e neste ano, apenas nos nove primeiros meses, já foram registrados 140’. Talvez por associação espiritual com o IBGE, ultimamente ‘O Globo’ está dando para publicar soluções de seqüestros em São Paulo, das quais a mais recente é a libertação (paga) do terceiro neto seqüestrado de um banqueiro bem conhecido.

Já houvesse o Conselho Nacional de Jornalismo, desejado pela Presidência para orientar os jornalistas, por certo o IBGE e a mídia não se perderiam em nesses obesos noticiários sobre fome e violência.

Especialidade

Por falar em assunto tão pitoresco como a violência, carta de Paulo Sérgio Pinheiro – modestamente apresentado como ‘pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP’, mas também com atividades internacionais no mesmo campo – comentou, no ‘Painel do Leitor’ da Folha, a tão afirmada quanto negada ‘autorização de traficantes’ para a visita de dois ministros a uma favela no Rio. Conclui a carta: ‘Teria sido bem melhor o Estado federal não se curvar aos criminosos e reconquistar logo do tráfico aquele território do terror’.

De sua larga experiência, em particular da sua pouco notada passagem pelo Ministério da Justiça no governo passado, o ilustre especialista certamente extraiu a fórmula que permite ‘reconquistar logo’ o território dominado pelo tráfico. Esqueceu-se de expô-la, no entanto. Os brasileiros aguardamos, leigos e ansiosos.’