‘Bando de corja, costumava dizer o pai de um grande amigo meu, para qualificar quem, na opinião dele, não obrasse a favor do bem. Trata-se de um superlativo absolutíssimo. De quando em quando, transita-me entre o fígado e a alma a definição do velho.
Meu assunto é a patota. Bando de corja? Não exageremos, mas é turmeta brava, embora miúda. Bando de corja é idéia a seu modo grandiosa, cabe em uma tragédia de Shakespeare, se me permitem, que o pai do grande amigo tinha tal dimensão. Também a seu modo.
No espaço infindo do tempo, de hábito a patota causa pequenos estragos. No entanto, semeia o mal com efeitos daninhos no curto prazo e, às vezes, conseqüências, igualmente daninhas, no longo. Sobretudo se a patota é composta por intelectuais, digamos assim, que se movem no âmbito do poder e gozam da proteção da mídia. Quando não a integram.
Nem sempre, na patota, todos sabem das confusões que podem provocar. Muitos ignoram as responsabilidades do seu papel. Outros sabem à perfeição, e nem por isso agem conforme esse gênero de injunções. Éticas, antes de mais nada.
A técnica desse gênero de patotas, distintas do grupo de confrades que organizam saraus dançantes e torneios internos de futebol, é simples: você fala bem de mim, eu falo bem de você, e, na platéia, precipita-se a certeza de que somos bons, bons demais, talvez gênios.
Ocorre-me o exemplo do Prêmio Esso de Jornalismo. Um clássico. A tigrada do júri não hesita: agora premio você na foto, você premia a mim na reportagem. O jogo é de cartas marcadas, sem detrimento do clangor da repercussão e da euforia dos jornais e jornalistas laureados. Só falta soltar fogos.
Há jornalistas que escrevem livros, se forem da patota o sucesso é garantido, independentemente da qualidade da obra. A qualidade do livro de um jornalista, Mario Sergio Conti, ex-diretor da revista Veja, Notícias do Planalto, publicado há quatro anos, é, no mínimo, discutível. É desses poderosos cartapácios que detonam o criado-mudo. Êxito retumbante, a despeito dos baixíssimos índices de leitura do País. Com exceção de raras vozes dissonantes, loas em prosa e verso, no vídeo, áudio e papel impresso.
Notícias do Planalto decreta que Fernando Collor foi flor de estufa dos jardineiros-jornalistas. Conti era figurão da Veja quando a semanal da Abril criou o mote ‘caçador de marajás’, e deveria saber das coisas. É, porém, do conhecimento até do mundo mineral que o ex-presidente foi o escolhido in extremis dos patrões da mídia. Em 1989, agarrariam em fio desencapado para evitar a vitória do Sapo Barbudo.
Em lugar da jardinagem, inúmeros jornalistas nativos dedicam-se à sabujice. Os patrões agradecem. Fico com pena de Marcel Proust e James Joyce, e tantos mais que pensaram a vida e o mundo de forma penetrante, e não contaram com o eco da patota. Suas obras tiveram de esperar para ser entendidas.
Com direito a exposição privilegiada, tropeço nas livrarias no quarto volume da obra de Elio Gaspari, jornalista importante (não confundir com Mario Sergio Conti), A Ditadura Encurralada. Não entro no mérito da qualidade do próprio, deixo a missão a Antonio Luiz M. C. Costa, cuja crítica está nas páginas 56 e 57 desta edição.
Não discuto, igualmente, a situação especial de que Gaspari gozou ao ter acesso, se não me engano por cerca de duas décadas, aos arquivos do general Golbery do Couto e Silva.
Gaspari, como o acima assinado, foi um dos raros jornalistas que não se furtaram a contatos freqüentes com o Merlin do Planalto, a arrostar os riscos de ser acusado de zelar pelos interesses da ditadura. Arrostar era um dos verbos preferidos de Golbery.
A meu respeito, um dos mais renomados profissionais verde-amarelos escreveu na Folha de S.Paulo, lá pelos fins da década de 70 ou comecinho dos 80, alentado artigo para desenvolver a tese acima. Creio que, se pecado houver, não esteja no fato de dispor dos arquivos de uma figura singular, de certa forma paradoxal, no papel de ideólogo do golpe e da abertura. Tampouco creio que Gaspari tenha pretendido tarefa de historiador, não o imagino capaz de tal topete.
Golbery ainda merece análise muito mais profunda, não digo para relevar-lhe os deslizes, mas para situá-lo com justeza. Sinto-o, o verbo é este, como personagem solitária, na concepção do plano e na beneditina urdidura da sua realização. Quanto a Ernesto Geisel, sinto, o verbo ainda é este, o tosco prepotente e irritadiço, o milico autoritário dotado exclusivamente de certezas. Não o conheci pessoalmente, sei por depoimento gravado por João Figueiredo em 1989 e divulgado depois de sua morte, que me detestava. Muita honra para os meus modestos alcances.
Está claro que Geisel trafegava pela névoa tão logo Golbery, por uma razão ou outra, saía de cena. Por exemplo, o discurso dito da pá de cal, ao qual Antonio Luiz M. C. Costa se refere, foi pronunciado à revelia do chefe da Casa Civil. Golbery queria a demissão do general Ednardo d’Ávila Mello do Comando do II Exército imediatamente em seguida ao assassinato de Vlado Herzog, assim como pretendia a demissão do general Gentil Marcondes do Comando do I Exército após as bombas do Riocentro. Contemporizou, no primeiro caso, em nome daquelas que considerava razões de Estado. Não cedeu no segundo, e deixou o governo.
Gaspari conheceu Geisel e esteve com ele muitas vezes. Poderia, quem sabe, traçar, algum dia, um retrato de pincel flamengo do quarto general-presidente da ditadura fardada. Por enquanto, o trabalho do jornalista não chega a tanto.
Não se exija demais. Lamento, apenas, que Gaspari se preste a referendar, contra a evidência, a tese do golpe anticaos e antibaderna. Por esse caminho justificam-se Hitler e Mussolini. Sem contar que a Itália pós-Primeira Guerra Mundial e a Alemanha do começo do anos 30 viviam situações bem mais inquietas do que o Brasil de 1964.
Até hoje pagamos por aquele atentado contra a lei e a civilidade, desferido com pleno êxito em poucas horas e absoluta tranqüilidade, sem derramar uma única, escassa gota de sangue. O Brasil do caos e da baderna, segundo Gaspari e os golpistas, era país atrasado e extraordinariamente promissor. O Brasil de hoje é apenas muito atrasado. Com a bênção dos Estados Unidos, o Grande Irmão do Norte que, segundo Gaspari, teve no golpe atuação relativamente secundária.
Cada cabeça uma sentença, com todo direito. A patota cuida, contudo, de amplificar o som de certas sentenças. E a patota celebra o livro de Gaspari como se fosse mais um canto da Divina Comédia. O editor agradece, a elite nativa mais ainda.’
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
‘O relato oficial dos anos Geisel’, copyright CartaCapital. 21/7/04
‘A Ditadura Encurralada, de Elio Gaspari, explora a contradição entre o suposto desejo do general Geisel de um acordo com a oposição para uma ditadura mais civilizada (em troca de uma reforma partidária e do esquecimento das torturas e assassinatos já cometidos) e sua cooperação continuada com a extrema-direita.
Geisel nem sequer investigou as ameaças feitas a ele próprio e à sua equipe em panfletos anônimos, muito menos o atentado contra o bispo de Nova Iguaçu. Ou mesmo a bomba no quintal de Roberto Marinho, em setembro de 1976. O SNI limitou-se a explicar-lhe: ‘Admite-se que a causa principal seja a presença de comunistas em diversos setores das empresas que dirige’.
Satisfez caprichos da ‘linha dura’, humilhou a família enlutada de João Goulart, cassou não só vários deputados como também a vitória da oposição ao reescrever a Constituição com o Pacote de Abril e demitiu o ministro Severo Gomes por chamar de fascistóide um prócer da extrema-direita civil que o acusou de pertencer à ‘esquerda festiva’. Expôs-se ao ridículo com a absurda proibição da transmissão da comemoração dos 200 anos do Balé Bolshoi. Aprofundava a dependência, na prática, deixando a dívida externa inchar-se sem controle, mas reagia com veleidades nacionalistas se o governo Carter condenava as violações de direitos humanos e o projeto nuclear de seu regime.
O próprio assassinato de Herzog parece um resultado da conivência de Geisel, até a véspera, com a tortura e execução de presos e do discurso conhecido como o ‘da pá de cal’ (agosto de 1975), no qual reduziu a distensão a um programa econômico, reafirmou a existência do perigo comunista e negou a intenção de abrir mão dos seus poderes ditatoriais.
Como diz Gaspari, a extrema-direita o entendeu como sinal para prosseguir na caça aos ‘terroristas’ que a esta altura não passavam, quando muito, de inofensivos doadores e coletores de fundos para partidos clandestinos ou distribuidores de seus jornais. E, mais do que isso, para enquadrar políticos e empresários que, oposicionistas ou governistas, ameaçassem a continuação indefinida do regime de terror ou incomodassem seus aliados na elite civil.
Em outubro de 1975, com as organizações guerrilheiras já destruídas e o próprio PCB já desmantelado, a repressão foi redobrada. Em São Paulo, 80 pessoas foram presas – incluindo uma prima do general Ednardo D’Avila Melo, comandante do II Exército, torturada com o seu apoio. Na frente das vítimas, os algozes bazofiavam: não viam a hora de pendurar ‘aquele comunista de Brasília, o Golbery’. Geisel, enquanto isso, garantia aos jornais: ‘Há muitos anos o Brasil não tem tanta liberdade… a principal abertura que está faltando é a oposição abrir a janela e olhar para fora’.
Paulo Egydio Martins, o governador nomeado pela ditadura e da confiança de Geisel, era malquisto por Ednardo e acusado pelo aparelho repressivo de proteger funcionários comunistas. Prender e torturar o diretor de jornalismo da TV Cultura, escolhido por seu governo com aval do SNI – um quadro da elite, ainda que comunista –, era um teste decisivo da extensão do poder paralelo.
O pessoal do DOI dizia aos presos acreditar que o PCB era dirigido por um triunvirato clandestino: ‘Pode ser um cardeal (leia-se Arns)… um governador de Estado (Egydio)… um general (Golbery)’. Mas, desta vez, o ‘porão’ perdeu a aposta. A amplitude e organização do repúdio ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog mostrou uma sociedade disposta a resistir e obrigou Geisel a reafirmar sua autoridade sobre o aparelho repressivo.
O ‘suicídio’, pouco depois, do operário Manoel Fiel Filho, que meses antes teria sido absorvido como rotina, teve de ser tratado como insubordinação. E a tranqüilidade com que a maioria dos comandantes militares recebeu a demissão sumária do general Ednardo, seguida pela do chefe do Centro de Informações do Exército, mostrou que a ‘linha dura’ não era tão forte quanto imaginava.
Até Armando Falcão admitiu para Heitor Ferreira, em fevereiro de 1976, que a demissão do ministro do Exército Sylvio Frota era ‘inevitável e necessária’. Mas o ministro continuou a condenar a ‘distenção’ (na grafia dos panfletos da extrema-direita) e se movimentar como candidato. Desde 1975, segundo Gaspari, Frota oferecia – caso fosse para a Presidência – ao empresário Armando Daudt d’Oliveira o Gabinete Civil, a Nascimento Brito (dono do Jornal do Brasil) as Relações Exteriores e a Delfim Netto o governo de São Paulo.
Ainda em agosto de 1977, Golbery duvidava da disposição de Geisel de afastar Frota. Que, dois meses depois, foi finalmente demitido. Não porque só então houvesse se enfraquecido – ao contrário, foi o último momento antes que a formalização do compromisso de lideranças civis e militares com sua candidatura já declarada lhe desse cacife para reagir ao afastamento.
Foi covardia do ditador, como pensava Golbery ao escrever que Geisel não era um homem como o do poema Se (de Rudyard Kipling)? Ou o bicho-papão era indispensável para Petrônio Portella amedrontar a oposição e os jornalistas com o ‘camburão do Frota’? Foi a vitória de uma complexa estratégia de Geisel? Ou retroativamente se dá a suas ações um sentido que, na ocasião, não tinham?
De qualquer forma, o resultado final foi a derrota de uma tentativa de dar uma moldura institucional e definitiva ao regime – um fracasso menos evidente e imediato, mas análogo ao do patético general português António de Spínola, outro ‘reformador’ derrotado por uma evolução do cenário nacional e internacional que tampouco previu ou compreendeu.
O outro lado também parece ter sido julgado e interpretado segundo interesses retroativos. Para Gaspari, a resistência ao golpismo nos anos 60 era bagunça e anarquia, tanto quanto a agitação de Portugal após a Revolução dos Cravos. Mas ‘na Praça da Sé, naquela tarde de 31 de outubro de 1975, a oposição brasileira passou a encarnar a ordem e a decência’. Só as encarnou a partir do momento em que seu respaldo foi útil a Geisel e Golbery?
Gaspari contrasta da mesma forma artificial os estudantes da era de Costa e Silva com os de Geisel (‘em 1968 os estudantes eram a desordem… em 1977 a desordem era a polícia’). Sugere que viam o marxismo como ‘caretice’, diz que, entre eles, os socialistas eram uma ‘minoria barulhenta’ e, arbitrariamente, os relaciona aos pontos de vista da falecida poeta Ana C. e do nouveau philosophe André Glucksmann.
Claro que o PCB estava marginalizado no meio estudantil e o coronel Erasmo Dias delirava ao ver o dedo de Moscou por trás de cada passeata. Mas todas as correntes relevantes do movimento estudantil eram marxistas-leninistas – incluindo as predominantes na USP, Refazendo (a eclética Ação Popular), Liberdade e Luta (a trotskista OSI) e Caminhando (o stalinista PCdoB). Não representavam a ‘maioria silenciosa’ dos universitários, mas esta nunca fez movimento algum.
Bem antes de 1977, os estudantes haviam deixado de acreditar na guerrilha: o fracasso da luta armada era evidente. Na década seguinte, dada a evolução dos acontecimentos, muitos esqueceram a militância e seguiram uma carreira burguesa, ou até se integraram à elite dirigente, exatamente como se deu com as gerações anteriores. Exceto a dos presos de Ibiúna, que não teve alternativa: estavam marcados, optassem ou não, pelo caminho dos fuzis. Mas os ideais de Aldo Rebelo, Aloizio Mercadante, Arnaldo Jardim, Vera Paiva, Marcelo Barbieri, Josimar Melo, Mario Sergio Conti e Marcus Sokol em 1977 não eram tão diferentes dos de José Dirceu, Dilma Rousseff, Fernando Gabeira, Vladimir Palmeira e José Genoino em 1968.
A atuação do autor como jornalista nesses anos e sua proximidade de tantos de seus personagens claramente dificultam o distanciamento necessário a uma interpretação mais isenta dos fatos. Agora que já teve a oportunidade de contar sua versão da ‘abertura’ de Geisel, esperemos que abra, por sua vez, esses arquivos, cuja privatização não se justifica, a uma interpretação mais plural e profunda de historiadores capazes de aceitar o desafio de recontar essa história.’
MARIGHELLA
‘O furo que escancarou a ditadura’, copyright Revista Imprensa, 15/07/04
‘
Para escrever a biografia do guerrilheiro Carlos Marighella, ícone da resistência armada nos anos de chumbo, o jornalista Mário Magalhães mergulhou nos arquivos da Ditadura, esmiuçou 6 mil páginas de documentos e encontrou as provas definitivas de que o regime militar torturou e assassinou. O livro será lançado apenas no segundo semestre do ano que vem, mas Magalhães optou por entregar as provas para a família e abriu mão de capitalizar para si o maior furo de sua carreira.Hematoma intenso situado no tecido sub-cutâneo e muscular, fratura completa da oitava, nona e décima costela, escoriações de forma circular, equimoses.
Conclusão: falecimento em consequência de traumatismo crânio-encefálico com instrumento contundente. Essa é a conclusão do laudo do IML de Virgílio Gomes da Silva, codinome Jonas, o primeiro militante da oposição armada ao regime militar assassinado pela Ditadura.
Desde 29 de setembro de 1969 Virgílio era considerado oficialmente ‘desaparecido’ político. Mas, como disse para IMPRENSA Vlademir Gomes da Silva, filho mais velho do guerrilheiro: ‘Não existem desaparecidos políticos, e sim assassinados’.
O responsável pela revelação mais contundente até hoje sobre os crimes do regime militar foi o jornalista Mário Magalhães. Repórter especial da Folha de S.Paulo por 12 anos, Mário trocou a estabilidade do emprego e o bom salário para se dedicar a elaboração de um projeto antigo: escrever a biografia de Carlos Marighella, ex-líder da Ação Libertadora Nacional e ícone da resistência armada ao regime. ‘Conciliar o dia a dia da redação com a biografia seria impossível. Decidi me desligar do jornal para cuidar só do livro. Por enquanto estou vivendo com o FGTS’, conta o jornalista.
Os primeiros seis meses de trabalho longe do corre-corre do fechamento e da redação foram dedicados a uma imersão total em arquivos brasileiros e do exterior. Foi nessa quarentena documental que Mário Magalhães encontrou o primeiro laudo de autópsia, a primeira identificação digital e a primeira foto de um ‘desaparecido’ político morto nos porões da ditadura. Estes três documentos, a que IMPRENSA teve acesso, representam um marco na história brasileira. Oficializou-se o que antes eram apenas fortes indícios. Nem Elio Gaspari, autor do clássico ‘A ditadura escancarada’ foi tão longe. ‘A partir de Virgílio Gomes da Silva alterou-se no léxico do idioma o significado da palavra desaparecido. Deixou de designar algo que se perde de vista para qualificar os cidadãos assassinados em guarnições ou valhacoutos militares cujos cadáveres sumiam’, disse Gaspari, em entrevista para a Folha de S.Paulo.
O trabalho de garimpagem de arquivos foi dividido por Magalhães em três eixos: Marighela, PCB e ALN. ‘Como os arquivos não informatizados eu tinha como referência palavras chaves. Dessa forma ia recebendo material da repressão de gente próxima ao Virgílio. Foi assim que cheguei aos laudos e a foto’. Em entrevista exclusiva para IMPRENSA, Mário Magalhães conta porque abriu mão de segurar os arquivos até o lançamento do livro, fala sobre a investigação que escancarou a ditadura e denuncia fraudes nos arquivos de desaparecidos políticos que estava em poder da Policia Federal:
Entrevista exclusiva:
‘Todos os arquivos da policia política referente aos ´desaparecidos´ foram manipulados pela Polícia Federal’
Imprensa – Você lançará a biografia de Carlos Marighella só em meados do ano que vem. As fotos, o laudo e as impressões digitais do Virgílio são informações exclusivas, um furo que você não fez questão de capitalizar, nem de segurar até o lançamento. Porque optou por esse caminho?
Mário Magalhães – Esse material vai ajudar a família a encontrar o corpo do Virgílio e a dar a ele um enterro digno. Eu torço para isso. Muita gente me pergunta porque não guardei para o livro? Foi porque achei que não podia retardar a oportunidade de dona Hilda (viúva) e dos filhos de tomarem as providências legais para encontrar o corpo. Essa não era a opção mais óbvia, mais fiz o que achei certo.
Imprensa – Feita a apresentação oficial dos documentos para a imprensa, foram poucos os veículos que deram crédito ao seu trabalho investigativo. A Globo, no Jornal Nacional, por exemplo, se referiu a você como ‘um jornalista’, sem citar o nome. Isso te deixou chateado?
Mário – Não, de forma alguma. Se eu quisesse crédito, teriam me dado. Eu preferi dar autonomia para a família fazer o que quiser com o material.
Imprensa – Você tinha um bom emprego, como repórter especial da Folha de S.Paulo, ganhava bem e estava com a vida estabilizada. Como foi essa decisão de deixar a redação para se dedicar exclusivamente ao livro?
Mário – Pedi demissão em julho do ano passado para mergulhar nesse projeto. Eu fui repórter especial da Folha por 12 anos, era feliz lá, gostava muito do meu trabalho e ganhava bem. Mas era impossível me dedicar a biografia e tocar, ao mesmo tempo, o dia a dia da redação. Estou vivendo atualmente do meu FGTS.
Imprensa – Porque esse documentos demoraram tanto tempo para vir á tona? E qual a responsabilidade da Policia Federal?
Mário – Até 1982, durante o governo Figueiredo, ainda durante a Ditadura, os arquivos ficavam sob guarda estadual. Mas naquele ano a oposição do MDB venceu as eleições estaduais em redutos importantes: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Esse fato iria aumentar a pressão para os governos estaduais tivesse acesso aos arquivos do DOPS. A saída encontrada pelo presidente foi puxar esses arquivos para alçada federal. Esses arquivos ficaram sob a guarda da Polícia Federal por 9 anos. Nesse tempo, a PF deu um banho nos documentos, limpou tudo que comprometia. Em 1991, o presidente Collor decidiu que os arquivos deveriam voltar para os estados. Só que o material chegou limpo. O caso do Virgílio foi uma ‘mosca’ que eles comeram, uma barriga. Como ele foi preso logo no começo da repressão, ainda não existia um procedimento padrão para casos de morte sob tortura. O Virgílio inaugurou a era dos ‘desaparecidos’.
Imprensa – Em 1994, o cineasta Bruno Barreto lançou o filme ‘O que é isso companheiro?’, baseado em livro homônimo de Fernando Gabeira sobre o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, do qual Virgílio foi um dos idealizadores. A família de Gomes da Silva processou os produtores por macularem a imagem dele. Qual sua opinião sobre o filme?
Mário – Esse filme é uma fraude histórica. O torturador é retratado como se fosse mais humano que o próprio Virgílio…
Imprensa – O que você sentiu quando viu a foto?
Mário – Fiquei emocionado. Ele foi morto á poucas semanas de partir para o campo, para se engajar na guerrilha rural. Virgílio e os sobreviventes da ALN diziam que as cidades eram ‘cemitérios de guerrilheiros’.’
FLIP
‘O bolo da Flip’, copyright Folha de S. Paulo, 17/07/04
‘Nem todos ficaram contentes com a Festa. Apagadas as últimas velas da segunda edição da Flip, Sérgio Machado, dono do gigante Grupo Editorial Record, distribuiu uma carta a amigos propondo mudanças drásticas na divisão do bolo.
O editor diz que o festival de Parati foi sucesso ‘incontestável’, mas ‘repete’ o que disse uma revista, segundo a qual a Flip ‘é um evento percebido como sendo da Cia. das Letras e que recebeu apoio de dinheiro público, que, talvez, estaria melhor empregado na Bienal’.
Machado estabelece uma série de relações entre a Cia. das Letras e o Unibanco, entre esse e a Biblioteca Nacional (patrocinadores da Flip), e diz: ‘Se o evento é democrático e aberto como alegam seus organizadores, aproveito para sugerir três providências: Nenhuma editora terá mais que 10% dos autores em cada edição da festa. A comissão organizadora será transparente e haverá um rodízio de seus membros a cada ano, devendo fazer parte dela pelo menos um membro indicado pelo Snel. Todas as despesas com os autores convidados correrão por conta do evento’. Termina com um ‘foi um sucesso o Festival Bloomsbury/Cia das Letras’ e com a ‘hipótese’ de que a fórmula da Bienal (‘o ‘budget’ de Parati é quase o mesmo do da Bienal, com a diferença que a Bienal recebe de 200 a 300 mil visitantes de todas as camadas sociais’) possa estar ‘superada’.
FLIPADOS
Cinco mais vendidos da Livraria da Vila instalada na Flip: ‘Nação Crioula’, ‘O Dia em que Zumbi Tomou o Rio’ e ‘Vendedor de Passado’ (os três do enfant terrible do evento, o angolano José Eduardo Agualusa, publicados pela Gryphus), ‘Noite do Oráculo’, de Paul Auster, e ‘Budapeste’, de Chico Buarque (ambos da Companhia das Letras).
DÉJÀ VU
Maior prêmio de ficção do país, o Portugal Telecom de Literatura Brasileira deve anunciar na segunda os 30 livros mais votados por seu júri inicial. Dalton Trevisan e Bernardo Carvalho, ganhadores da 1ª edição, no ano passado, estão entre eles. João Gilberto Noll e Luzilá Gonçalves, finalistas em 2003, também. Os dez concorrentes ‘para valer’ aos R$ 150 mil saem em 10 de agosto.
ESQUINDÔ LELÊ
Capa do ‘The Times Literary Supplement’, prestigiado caderno cultural do jornal inglês ‘The Times’, que vai às bancas de Londres hoje: uma mulata de biquíni branco e a frase ‘Brazil Now’. Trata-se de resenha do livro ‘A Death in Brazil’, do australiano Peter Robb.
PRIMAVERA A CAVALO
Foram fechados data e local da próxima edição carioca da Primavera do Livro, evento de editoras da Libre. Será de 16 a 19 de setembro no Jóquei Clube. A edição de São Paulo do evento anual ainda é mistério.
AUTO-ANÁLISE
A Câmara Brasileira do Livro finaliza o projeto de uma revista mensal sobre o mercado editorial no país. ‘Panorama Editorial’, prevista para setembro, terá 5.000 exemplares.
TREM DE POUSO
Herói de boa parte da intelectualidade francesa, Jacques Derrida, 74, está com bilhete marcado para o Brasil. Ele virá em agosto, para o Colóquio Internacional Derrida, organizado no Rio pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Vai fazer a conferência ‘O Perdão, a Verdade, a Reconciliação: Qual Gênero?’.’
Luis Fernando Veríssimo
‘Banquete’, copyright O Globo, 15/07/04
‘O calçamento com pedras irregulares das velhas ruas de Paraty obriga você a caminhar olhando o chão, escolhendo a pedra para pisar. Durante a Festa Literária Internacional da cidade que terminou no domingo, a Flip, você podia muito bem cruzar com alguém famoso na rua e só ver seus sapatos, e depois tentar adivinhar quem era: ‘Acho que passei por um dos ingleses…’
Lá estavam alguns dos melhores ingleses atuais nos seus sapatos. Como o Martin Amis, que não conseguiu unanimidade: alguns o acharam insuportável, outros se decepcionaram porque esperavam que ele fosse mais insuportável ainda. E outros gostaram dele e da mulher que o levou para morar no Uruguai, porque ela é uruguaia, não há outra explicação plausível.
Amis acabou fazendo o gesto mais simpático da Festa, para os nativos. Na rodada final, em que vários autores leram trechos dos seus livros de estimação (Miltom Hatoum leu Graciliano, o francês Pierre Michon um poema que não identificou, pressupondo que todos soubessem que era do Vitor Hugo, Paul Auster um Beckett de safra esquecida) leu o começo do ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’ e tudo lhe foi perdoado. Ian McEwan (talvez o melhor deles) foi o inglês mais articulado.
Não cheguei a notar que tipo de sapato usava o irlandês Colm Tóibin mas seu estilo combinava com sandálias. Ele fez um dos depoimentos memoráveis da Flip, sobre ‘Ulisses’ de Joyce. O Troféu Dupla Insólita foi para Pierre Michon apresentando-se junto com o pernambucano Raimundo Carrero, este divertidíssimo, concorrendo com Tóibin ao título de grande figura da semana.
Paul Auster e sua longa e loira mulher são simpáticos. Moram no Brooklyn. Quando ele soube que eu estava em Nova York quando mataram o John Lennon e depois quando derrubaram as torres, me pediu para não voltar mais a Nova York. Uma surpresa: o outro americano, Jeffrey Eugenides, autor de ‘The virgin suicides’. O cara é bom, lendo o que escreveu e falando. Mora na Alemanha, por outra razão inescrutável.
Não vi a apresentação de nenhuma das mulheres mais elogiadas (coincidência, não preconceito), a portuguesa Lidia Jorge e a espanhola Rosa Montero, e a de uma mesa aplaudida de pé, a do Ferréz e do José de Souza Martins, mediada pelo Zuenir, mas confirmo o sucesso de outra grande estrela do evento, o angolano José Eduardo Agualusa, que conseguiu brilhar ao lado do Caetano.
Mas de emocionar mesmo foram os brasileiros Davi Arrigucci Jr. e José Miguel Wisnik, ambos falando sobre o homenageado da festa, Guimarães Rosa. Os pratos mais finos de um banquete intelectual inesquecível. E ainda houve a Ligia Fagundes Telles radiante e o Ziraldo pronto para mais algumas vidas. E, claro, o Chico Buarque.’
Arthur Dapieve
‘Os cães de Paraty’, copyright O Globo, 16/07/04
‘Não, caro Agamenon, não consegui me matar pulando de cima do ego do Paul Auster. Mesmo porque passei por egos bem mais frondosos no último fim de semana, inclusive o de Martin Amis, cuja estatura física é tão baixa quanto a minha auto-estima depois de, por cinco dias de Flip, ser lembrado de quantos bons livros ainda não li.
No entanto, diante da generosa cobertura jornalística dada à 2 Festa Literária Internacional de Paraty, sobra pouco para falar. Como pelas beiradas. Falo, então, dos cães da cidade, tão seus sinônimos quanto a cachaça, o casario colonial e, desde o ano passado, os livros e os bibliófilos. Um lugar cheio de cachorros não poderia ser antipático.
Os melhores amigos do homem se beneficiam do fato de o preservado centro histórico de Paraty ser protegido por correntes e ter o acesso restrito aos carros de serviço. Até policiais, bombeiros, médicos e lixeiros, porém, estão sujeitos à velocidade máxima imposta pelas pedras ossudas e escorregadias que servem de calçamento à Dona Geralda, à Samuel Costa e demais ruas. Suspeito, aliás, que a única forma de nivelá-las seja ficar torto de tanta pinga. Só assim andar fica fácil, embora não menos perigoso.
Lá, portanto, cachorros não são atropelados. Existem poucas coisas mais tristes no mundo que um cachorro atropelado. Paraty é uma cidade alegre, em que pese a sua idade provecta. Está cada vez mais animada por centros culturais, bares, restaurantes e jovens. Nesta paisagem, os cães caem, ou melhor, se esparramam bem. Estão em toda parte, quase sempre vira-latas, uns vadios mesmo, outros com coleiras, todos soltos.
Já na noite de abertura da Flip, enquanto Zé Miguel Wisnik, Mônica Salmaso e Caetano Veloso cantavam o escritor Guimarães Rosa, homenageado do ano, um cachorrão tranqüilo e inteligente passeava dentro da tenda instalada na Praça da Matriz. No último dia, uma boxer de coleira zanzava dentro do restaurante Chez Regina. Em Paraty, livres de seus predadores artificiais, os automóveis, eles se acham. E são.
Cada qual à sua maneira, são lindos, bem-apessoados. Um parece filhote de fila, outro herdou de um antepassado bassê as patinhas curtas, um lembra o Vagabundo do desenho animado da Disney, outro herdou os olhos incrivelmente azuis de algum husky siberiano. São mansos. Não brigam entre si, não mordem a mão que os afaga. Contudo, a cidade tem poucos gatos para um porto cheio de casas antigas. Mansos, não bundas-moles.
Na semana retrasada, Copacabana lembrou-me James Baldwin. Na passada, Paraty lembrou-me certos cães negros, bem menos amáveis que os vira-latas multicoloridos da cidade. O autor do romance ‘Cães negros’, o inglês Ian McEwan, foi um dos autores participantes da Flip. Traduzido por Aulyde Soares Rodrigues para a Rocco em 1993, este me parece ser o mais aterrador dos aterradores livros de McEwan, hoje com 56 anos.
A ação se divide entre a Queda do Muro de Berlim, uma visita ao campo de extermínio de Majdanek, na Polônia, outra a Les Salces e St. Maurice de Navacelles, na França, tudo em 1989, e um flashback até a mesma St. Maurice de Navacelles, em 1946. Neste ano, os sogros do narrador Jeremy, os comunistas June e Edward Tremaine, estavam prestes a encerrar a sua longa lua-de-mel, esperançosos com a Libertação da Europa continental do jugo nazista, mas ainda nos days after da Segunda Guerra Mundial.
(De certa forma, hoje continuamos a vivê-los.)
Certa manhã, enquanto passeavam no sertão do ensolarado Languedoc, June se deparou com dois enormes cães negros, que, a princípio, confundiu com jumentos, tal seu tamanho. Estava só. Não notara que Edward havia se quedado 300 metros atrás, fascinado por uma procissão de lagartas. Os cães se acercaram, rosnando malignos, babando, e ela teve de se defender sozinha. Sobreviveu graças a um canivete. A experiência ficou ainda pior quando, retornando à aldeia, o prefeito lhes contou que os cães negros tinham sido utilizados pela Gestapo em torturas durante a Ocupação. Teriam até estuprado uma moça.
Assim, o que era para ser uma ode ao futuro, futuro que June já carrega no ventre, futuro que ganhará o nome de Jenny e se casará com Jeremy, termina em sombras pessimistas. McEwan constrói em torno do episódio uma discussão sobre o Bem e o Mal. Aliás, o recurso a um acontecimento que altera a ordem supostamente natural das coisas é recorrente na obra do inglês: ora cães negros ora uma criança perdida para sempre num supermercado ora uma hospedagem conturbada na casa de um estranho em Veneza.’
Em Paraty, McEwan leu um trecho de seu próximo romance, ‘Sábado’, que transcorre todo no dia 15 de fevereiro de 2003. Nele, o novíssimo Mercedes de um bem-sucedido neurocirurgião londrino cruza, a caminho da quadra de squash, com uma enorme manifestação contra a Guerra do Iraque e… Bem, no excerto de oito páginas, a merda não aconteceu, mas os ouvintes pressentem que ela está lá, rosnando, babando.
Recentemente, McEwan foi impedido de entrar nos EUA porque, por receber dinheiro para dar palestras, os funcionários da Imigração decidiram que ele precisava de um determinado tipo de visto. Depois de um pernoite em Vancouver, Canadá, ele pôde afinal prosseguir com o trabalho que faz há 30 anos. ‘Coisas bem piores acontecem com viajantes’, disse. Cada um encontra os cães negros que merece.’