‘O considerado Herberto Meirelles do Carmo escutou na Rádio CBN, via Globo Online, o competente secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, Marcelo Itagiba, asseverar, a propósito das chacinas em Queimados e Nova Iguaçu:
Foi um crime cometido por bestas que não são humanas!
Janistraquis ponderou a frase de Sua Excelência, este cujo nome faz a marginalidade tremer de pavor na paisagem carioca, e comentou, inflado de admiração e respeito:
‘Considerado, pode-se dizer que Itagiba partiu pra ignorância!!!’
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Fé
Deu na coluna do incréu Ancelmo Gois:
Fora do ar
Tem alguma coisa fora de foco na Rede Vida.
Sábado à noite, quando todas as outras emissoras falavam do Papa João Paulo II, o canal ligado à Igreja Católica transmitia Guaratinguetá x São Bento pelo Campeonato Paulista.
Janistraquis, que comunga todos os dias, perdoa o colunista, porém esclarece o grande público:
‘Ancelmo Gois não conhece os milagres de que é capaz o futebol do interiorzão paulista; ora, João Paulo II nunca deu nada à Rede Vida; já São Bento…
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Infância
A considerada Vanira Kunc avisa aos amigos e admiradores de Audálio Dantas que o mestre vai lançar um livro infanto-juvenil intitulado A infância de Graciliano Ramos (‘filhote’ da exposição O Chão de Graciliano), neste domingo, dia 10 de abril, no Sesc Pompéia, São Paulo.
O lançamento é também uma comemoração aos 60 anos desta obra indispensável e obrigatória que é Infância.
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Do além
A agência Reuters distribuiu pelo mundo afora:
BBC pede entrevista com Bob Marley 24 anos após sua morte
LONDRES – A British Broadcasting Corporation (BBC) admitiu nesta sexta-feira estar constrangida por ter enviado um e-mail solicitando entrevista com o cantor de reggae Bob Marley, morto há 24 anos. O engano estava num e-mail enviado à Fundação Bob Marley.
‘Evidentemente, estamos muito constrangidos pelo fato de não termos nos dado conta de que a carta enviada à Fundação Bob Marley não reconheceu que Bob Marley não está mais entre nós,’ disse um comunicado da BBC.
A considerada Thais de Menezes, que nos enviou a obra-prima, imagina que a BBC queria mesmo era uma entrevista psicografada e depois se arrependeu…
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Pecado
A considerada Lúcia Martini leu esta legenda sob foto do papa morto na primeira página do Correio Popular, de Campinas:
Corpo do papa é velado no Vaticano antes de ser transferido, hoje, para a Basílica de São Pedro: dois milhãos de fiéis são esperados.
Lúcia recomenda ao autor de tamanho pecado:
Seria bom fazer umas revisãos de vez em quando…
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Obrigatório
O considerado Camilo Viana, diretor de nossa sucursal em Belo Horizonte, extraiu esta da coluna Giro Internacional, do Estado de Minas:
O ator Tom Sizemore foi condenado em Nova York a 17 meses de prisão por violência doméstica contra uma ex-namorada, Heidi Fleiss, e mais 4 meses de trabalhos em um centro de reabilitação por não ter consumido drogas no período em que estava em liberdade condicional.
Camilo não encontrou palavras para expressar seu espanto, porém Janistraquis, que já viu muita coisa esquisita neste mundo, arriscou:
‘Considerado, se o consumo de drogas já é considerado obrigatório, avalie o que não vem por aí no terreno da veadagem; afinal, veados são maioria…
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Giulio, o grande
O considerado Giulio Sanmartini, o mais brasileiro dos italianos, enviou de Belluno, onde vive, esta notinha publicada na Folha de S. Paulo:
Papa João Paulo 2º pode entrar na lista dos santos
DENIS BARNETT
da France Presse, na Cidade do Vaticano
João Paulo 2º, que criou mais santos que todos seus predecessores reunidos, poderá rapidamente se juntar à lista dos canonizados. Já no dia seguinte à sua morte ele foi apelidado de ‘João Paulo 2º, o Grande’, como a igreja chama os papas canonizados.
Giulio, que não é Sanmartini à toa, esclarece:
Denis Barnett confundiu vaga-lume com lanterna. Somente três papas receberam o título de Magno (ou Grande): Leão I, papa de 29/9/440 a 10/11/461; Gregório I, papa de 3/9/590 e 12/3/604 e Nicolau I, papa de 24/4/858 a 13/11/867. Por acaso, todos os três santos, mas nos seus dois mil anos de história a igreja canonizou quase 80 papas. Portanto…
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Desabafo
Diretor de nossa sucursal no DF, de cujo banheiro (subindo-se no vaso), pôde-se enxergar a formação do séquito que iria ao velório do papa, o considerado Roldão Simas Filho redigiu este, digamos, desabafo, diante do noticiário econômico de toda a imprensa:
A alta mundial do barril de petróleo não pode ter repercussão nos preços dos derivados no Brasil sob pena de desencadear severa inflação no país. Entretanto, apesar da nossa elevada produção nos dar uma posição tranqüila, a imprensa diz que a estabilização dos preços internos vai depender da paciência (sic) dos acionistas da Petrobrás.
Ora bolas! A oscilação das cotações é a base do mercado acionário. Se os dividendos das ações da Petrobrás se reduzirem, cabe aos acionistas trocarem de posição, vendendo essas ações. Muito simples. Não há porque nos colocarmos como reféns dos acionistas.
Mestre Roldão está coberto de razão e conhece profundamente o assunto. É químico aposentado e trabalhou anos e anos na própria Petrobras.
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Louco intento
Para comemorar o sucesso do seu primeiro romance, Sabor de Mar (Editora Revan), José Inácio Werneck, conhecido comentarista da ESPN Internacional, estará no Rio de Janeiro em junho. Ele não participará de uma sessão de autógrafos igual às que fazem os demais escritores; na manhã do dia 25, acompanhado de alguns amigos, vai encarar o mar de Ipanema, na altura do Castelinho, e tentar chegar ao Clube Marimbás, no Posto Seis, ‘bracejando ao largo do Arpoador, Praia do Diabo e Forte de Copacabana’, conforme escreveu em sua coluna da Gazeta Esportiva.
Trata-se, como o próprio Zé Inácio diz, de um ‘louco intento’. Ele, porém, tirará de letra; afinal, vive a plena juventude de seus 67 anos de idade.
Convém esclarecer que Sabor de Mar não é um ‘romance esportivo’; aborda o atraso cultural do interior brasileiro nos anos 50, a repressão sexual em todo o país, e recorda algumas canções que marcaram época, como Sapore di Sale, de Gino Paoli. O autor revive a política nacional na época da ditadura militar, descreve um assassinato em Londres e ainda a tortura da doença de Alzheimer, além de discutir o direito ou não de dispormos de nossas vidas. O esporte fica por conta da Maratona do Rio de 1980, que teve como vencedor o americano Greg Meyer.
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Nota dez
O considerado vate Ruy Alberto Paneiro extraiu do blog português Diário Ateísta (http://www.ateismo.net/diario/ ) este instigante texto de Carlos Esperança, que revela ‘o lado feio, pavoroso, de João Paulo II; um lado que poucos vêem’, no dizer do colaborador. Ao abrigar o artigo sob a rubrica ‘Nota Dez’ o colunista não faz profissão de fé ateísta(?); apenas e democraticamente divulga ‘o outro lado’:
JP2 – um papa obsoleto no antro do Vaticano
A morte de JP2 relembra a dor e sofrimento que atingiu a URSS quando o pai da Pátria, José Stalin, exalou o último suspiro e recorda o histerismo demente que rodeou a morte do ayatola Khomeini em todo o mundo árabe, particularmente no Irão. Em comparação, a morte de Salazar foi chorada de forma contida, mas os déspotas produzem emoções mais fortes do que os democratas (…)
(Leia a íntegra no Blogstraquis)
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Errei, sim!
‘ZÉ DO ERRAMOS – Deu no Erramos da Folha: ‘Diferentemente do que foi publicado à pág. 1-14 (Brasil) da edição de 19/3, a Segunda Guerra Mundial começou em 1939, os EUA entraram na guerra em 1941, a Guerra dos Seis Dias foi em 1967, o Presidente Richard Nixon (EUA) renunciou em 1974, Margaret Thatcher assumiu o poder no Reino Unido em 1979, o Muro de Berlim caiu em 1989 e o Iraque invadiu o Kuait em 1990’. Em estado pré-cataléptico, Janistraquis balbuciou: ‘Considerado, isso é tão incrível, fantástico e extraordinário que a Folha deveria contratar Zé do Caixão para editar o Erramos!’ (maio de 1996)’
LÍNGUA PORTUGUESA
‘Falabilizando’, copyright O Globo, 5/04/05
‘É sempre agradável encontrar aliados em nossas guerras de amor. No caso presente, pelas palavras. Amor e respeito pelas veteranas e honestas palavras do português falado no Brasil.
Não se trata de paixão cega ou surda: todo idioma que se preza não hesita em adotar palavras que o enriqueçam, venham de onde vierem. O que seria de nós, por exemplo, sem bares ou motéis? Temos de ter a humildade de incorporar até mesmo termos não aportuguesados. Ou vamos trocar o mouse por um ratinho ou camundongo?
Mas ter a mente e o coração abertos para adoções não exige que se abra mão da inteligência. Esta nos impede, por exemplo, de aceitar ‘planta’ (do inglês ‘plant’) com o sentido de instalação industrial. Porque é desnecessário e pernóstico – e o bom idioma preserva sua força e sua herança importando apenas o indispensável.
Por amor ao bom português qualquer bom brasileiro apreciará a pérola que vai abaixo, de Ricardo Freire. Colhi-a na internet, mas saiu numa revista há quase dois anos.
‘Não, por favor, nem tente me disponibilizar alguma coisa, que eu não quero. Não aceito nada que pessoas, empresas ou organizações me disponibilizem. É questão de princípios. Se você me oferecer, me der, me vender, me emprestar, talvez eu venha a topar. Até mesmo se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em disponibilizar, nada feito.
‘Caso você esteja contando comigo para operacionalizar algo, vou dizendo desde já: pode tirar seu cavalinho da chuva. Eu não operacionalizo nada para ninguém. Tampouco compactuo com quem operacionaliza. Se você quiser, eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação. Se você pedir com jeitinho, eu até implemento. Mas, operacionalizar, jamais. (…)
‘Por falar nisso, é bom que você saiba que eu parei de utilizar. Assim, sem mais nem menos. Eu sei, é uma atitude um tanto quanto radical da minha parte, mas eu não utilizo mais nada. Tenho consciência de que a cada dia que passa mais e mais pessoas estão utilizando, mas eu parei. Não utilizo mais. Agora só uso. E recomendo. Se você soubesse como é muito mais elegante, também deixaria de utilizar e passaria a usar.
‘Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em ‘ilizar’. Se nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente em ‘ar’. Todos os dias os maus tradutores de livros de marketing e administração disponibilizam mais e mais termos infelizes, que imediatamente são operacionalizados pela mídia, reinicializando palavras que já existiam e eram perfeitamente claras e eufônicas.
‘É triste demorar tanto tempo para a gente se dar conta de que ‘desincompatibilizar’ sempre foi um palavrão. Precisamos reparabilizar nessas palavras que o pessoal inventabiliza só para complicabilizar. Caso contrário, daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações: ‘Você não vai me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quisibiliser.’ Problema seu. Inclua-me fora dessa.’’
ENTREVISTA / CAMILLE PAGLIA
‘Persona livre’, copyright Folha de S. Paulo, 10/04/05
‘‘Camille está doente e não vai poder fazer a entrevista amanhã.’ Para quem tinha ido aos EUA só para isso, o recado não podia ser pior. Ou podia, sim, porque a tentativa de adiar o encontro por 24 horas também se viu frustrada. Às vésperas de uma maratona de lançamento do seu novo livro, ‘Break, Blow, Burn’ [Quebrar, Estourar, Queimar, ed. Pantheon Books, 272 págs., US$ 20 (R$ 53), ainda sem previsão de lançamento no Brasil], incluindo 14 palestras em 11 cidades, pelos quatro cantos do país, Camille Paglia estava de cama, com febre, com tosse e sem condição de receber ninguém.
Ao contrário do gigantesco, majestoso, arrojado tratado estético-literário-feminista ‘Personas Sexuais’ (Cia. das Letras), que catapultou a desconhecida professora da modesta Universidade das Artes, na Filadélfia (onde dá aula até hoje), para a fama mundial; e diferente, também, das duas coletâneas subseqüentes de ensaios, ‘Sexo, Arte e Cultura Americana’ (Cia. das Letras) e ‘Vampes & Vadias’ (Francisco Alves), que confirmaram sua posição muito especial de crítica da cultura popular norte-americana, o novo livro tem forma mais simples e escopo bem definido: são 43 pequenos ensaios sobre 43 poemas de língua inglesa, começando no século 16, com um soneto de Shakespeare, e terminando na década de 1970, com a letra de uma canção de Joni Mitchell, ‘Woodstock’.
É um livro ‘para o público em geral’, escrito numa prosa elétrica, que não facilita nada, a despeito de sua transparência quase clássica, inteiramente livre de jargão. Ao mesmo tempo, é o mais pessoal da personalíssima autora: ‘43 Retratos de Camille’ ou ‘O Sentido da Vida’, iluminações fulgurantes sobre mais ou menos tudo, por poemas selecionados de autores como John Donne (de quem vem o título do livro), William Blake, Walt Whitman e Emily Dickinson, para ficar nos antigos, e chegando a contemporâneos pouco conhecidos fora dos EUA, como o artista, editor e curador de arte Ralph Pomeroy e a poeta feminista negra Wanda Coleman.
Depois da viagem, fazer a entrevista de São Paulo parecia o cúmulo da frustração, mas um minuto de conversa com ela é o bastante para qualquer um se animar. Sentada no carro, nalgum lugar da histórica cidade dos patriarcas dos EUA, falando por telefone celular, Camille Paglia não deixa um segundo vazio e não gasta nem meio minuto sem uma frase memorável. Sempre muito simpática e muito rápida, dando-se ao direito e ao prazer da indignação contra os males do mundo em geral e do contexto americano em particular, dando-se também ao direito e às euforias da palavra e da arte, ela nunca soa menos do que tudo de si e faz brilhar, para ela mesma e para o resto de nós, o que pode ser a vida da mente, nestes tempos sombrios.
Onde encomendar
‘Break, Blow, Burn’ pode ser encomendado, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/ 11/ 3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/ 2533-2237) ou no site www.amazon.com
1 – Anos 60 e drogas
Folha – Podemos começar, quem sabe, com sua leitura da canção de Joni Mitchell, ‘Woodstock’. Ela parece fechar as coisas de um modo crucial, como se o livro inteiro ganhasse outro sentido. Não seria legítimo dizer que você, nesse ponto, está reagindo às ‘esperanças frustradas e energias tragicamente perdidas’ da geração que viveu a juventude na década de 1960 -derrocada que, para você, já se anuncia nessa canção?
Camille Paglia – Jogar o foco nesse capítulo me parece muito justo, pois foi um texto que escrevi com o coração. Minha geração me parecia tão talentosa, dotada de tamanhas promessas, parecíamos estar fazendo nada menos que uma revolução cultural. E tudo aquilo deu em desastre. Um desastre que se deve, em primeira instância, aos efeitos das drogas.
Veja bem: foram os indivíduos mais avançados, mais aventurosos, mais prontos a romper com os limites tradicionais, foram eles os que mais consumiram drogas, acreditando ingenuamente num atalho para o paraíso. O resultado foi esse desastre, que levou embora um número incomensurável de pessoas. E um resultado disso, então, foi que as figuras mais convencionais, mais conformistas, acabaram tomando conta das universidades. Tomaram conta e têm a audácia, agora, de dizer que são herdeiros dos anos 60, o que é uma calúnia.
Folha – Você se sente representando os ideais da geração?
Paglia – Tenho um sentimento muito forte, um sentido elegíaco dessa geração que agora se vê caricaturada, reduzida a um período exótico do passado, quando se usavam roupas coloridas e cabelo comprido, quando se tocava violão na calçada e dançava pelado no parque. Um outro lado dessa mesma imagem são os protestos contra a guerra, como se fossem tudo o que de mais radical nossa geração foi capaz de fazer.
O fato é que havia uma grande revolução artística em curso. A integração de poesia, artes visuais, música, cinema etc. na criação de um novo tipo de performance artística. Tudo isso se movendo na direção de uma verdadeira Renascença norte-americana -algo que nos anos 70 já tinha se rebaixado ao simbolismo cru da cultura das discotecas. Um cultismo, um artificialismo fácil (embora eu também adore música de discoteca). Uma grande perda da visão mística, das percepções cósmicas da geração anterior.
As drogas tiveram esse efeito terrível. E logo veio a Aids, que destruiu uma geração inteira de homossexuais talentosíssimos.
2 – Sexualidade e cultura
Folha – A dimensão propriamente artística de que você fala parece pouco lembrada, hoje, quando se comenta o legado dos anos 60.
Paglia – Uma dimensão gigantesca desse legado foi esquecida, que foi precisamente a dimensão cultural. De um lado, a ambição de fundir todas as artes. De outro, uma visão abrangente da natureza -que desapareceu por completo do ambiente universitário, graças ao pós-estruturalismo. O predomínio do pós-estruturalismo constitui uma verdadeira ofensa aos princípios vitais. Uma incapacidade de perceber a potência e fertilidade da natureza e de como ela se vincula à nossa biologia, nossa sexualidade.
Nas universidades, hoje, o que se ensina é que ao nascer somos tábula rasa e que a sociedade vem inscrever suas opressões sobre nós, em termos de gênero sexual, por exemplo. De minha parte, acredito na androginia (e já escrevi muito sobre o tema), acredito que os grandes artistas são, em certo sentido, andróginos.
Mas, pelo amor de Deus!, o masculino e o feminino existem. E há, entre eles, uma eletricidade incrível. Mas, nas universidades, todo mundo agora é eunuco.
Folha – Lawrence Summers está tendo sua dose de problemas por conta disso, em Harvard [diretor administrativo da universidade, Summers declarou numa reunião do conselho que a menor ocorrência de mulheres nas ciências exatas talvez tenha causa biológica; desde então, vem sendo alvo de protestos e processos].
Paglia – Ele não se preparou muito bem, infelizmente, para o tamanho da questão que levantou. Bastou quase dizer que homens e mulheres talvez tenham aptidões diferentes de nascença para que houvesse uma grita geral, de um lado a outro do país. Uma professora do MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] que estava na famigerada reunião nem esperou o final da frase! Saiu correndo da sala e ligou para o [jornal] ‘Boston Globe’. Esse é o grau de censura ao pensamento que se vive hoje em dia, neste país.
Folha – O elogio da natureza está por toda parte no que escreve. Mas você também é uma observadora e defensora das criações da cultura.
Paglia – Justamente o que vocês, brasileiros, entenderam tão bem no meu trabalho: a glorificação da natureza, sim, mas ao mesmo tempo um interesse profundo pelo artifício, pela vestimenta, pela ‘persona’ [o papel assumido por cada um] -pelo Carnaval, se você quiser. É isso o que eu vejo no meu trabalho. E são elementos muito presentes na cultura brasileira, não são? A magnitude das forças naturais e a magnitude do artifício. É preciso ver os dois lados simultaneamente.
3 – Poesia e romance
Folha – O que você diria que alguém de 17, 18 anos deveria estar lendo agora para ter uma noção do seu próprio tempo?
Paglia – Poesia. O pós-estruturalismo privilegiou o romance. É no romance que as técnicas da desconstrução funcionam melhor. Com a poesia, não. E, para mim, o poema -o curto, em especial- faz muito mais parte da nossa época. O poema curto equivale a uma canção, que se escuta inteira no rádio, ou a uma pintura, que se pode ver isolada. Já um romance pode exigir duas ou três semanas de leitura, com um esforço especial de atenção para a linearidade das idéias. E esse tempo e essa atenção são cada vez menos disponíveis, mesmo para os jovens.
Eu adoro os romances do século 19, mas não tenho entusiasmo pelo romance anglo-americano contemporâneo. Os últimos romances que li a sério foram [três grandes obras do modernismo europeu] ‘Rumo ao Farol’, de Virginia Woolf, ‘A Montanha Mágica’, de Thomas Mann, e ‘Ulisses’, de James Joyce, romances em que se percebe uma espécie de fusão entre poesia e prosa. Já o romance anglo-americano atual… O que é essa ficção, comparada à vitalidade que se vê por todos os lados, no cinema, na TV, até na internet ou em videogames?
4 – Internet e fim da leitura
Folha – Seu livro, então, tem alguma coisa dessa intenção pedagógica, de ensinar a juventude a ler poesia?
Paglia – O que estou tentando, neste livro, é chamar a atenção para a linguagem. Na era do computador, as pessoas escrevem e-mails rápidos e lêem tudo de modo muito apressado. Ninguém mais se senta para ler. Simplesmente sentar-se e concentrar-se numa página impressa é uma atividade que está desaparecendo rapidamente. E eu me preocupo bastante com o desenvolvimento intelectual da nova geração.
Minha geração, os cinqüentões de hoje, de certo modo teve o melhor dos mundos. Aprendemos a ler à moda antiga, com todo o rigor de uma educação conservadora, e aprendemos a consultar obras de referência, na biblioteca. Aprendemos a diferenciar boas e más fontes, ao fazer uma pesquisa. Mas a mocidade cada vez tem menos tempo para livros, porque há tantas outras formas de consulta… E confiam demais na internet -são muito inocentes em relação à internet.
Folha – Quem te viu, quem te vê! Não era você quem dizia [em 1995] que ‘a internet é uma forma de guerrilha contra o politicamente correto’?
Paglia – Sempre fui grande defensora da internet. Comecei a escrever para o site ‘Salon’ em 1995, no primeiríssimo dia. E continuei escrevendo por seis anos, até que tive de parar para escrever este livro (que me levou cinco anos de trabalho). Nem por isso deixo de dizer para os meus alunos: não se pode confiar na internet. A não ser que sua fonte tenha o endosso de uma boa universidade, uma boa biblioteca ou algo do gênero. E eles ficam espantados, porque confiam, implicitamente, em qualquer coisa que se lê na rede.
Não têm idéia da quantidade de lixo circulando. Também não sabem lidar com obras de referência e muitos deles nunca entraram numa biblioteca.
A internet é maravilhosa como instrumento; mas muito incompleta como fonte confiável de trabalho. E internet vicia. Cria dependência. Não dá para saber que efeito terá sobre nossos hábitos, mentais e outros; está muito cedo para isso. Mas dá para ver a enorme perda dessa falta de contexto geral. Vejo isso agudamente no caso das maiores e melhores obras de arte do passado. E é por isso que estou ansiosa para acompanhar os serviços relativos à eleição do novo papa, em Roma.
Folha – A eleição do papa?
Paglia – Sim, porque será uma educação e tanto para o público norte-americano o fato de poder ver a arquitetura e a escultura romanas e as obras de arte do Vaticano. Será um curso rápido de introdução à arte para milhões de pessoas. Verão coisas que jamais tiveram chance de imaginar. Os EUA são um país muito isolado, voltado para si mesmo. O Canadá já é outra coisa, mas nós, aqui, estamos absurdamente isolados do resto do mundo, nesse ambiente midiático avassalador.
5 – Canção, rock, rap
Folha – Já que você falou em mídia, podemos voltar um pouco para a música popular? O tipo de relação entre poesia e música que você comenta será fácil de aceitar para um leitor brasileiro, porque temos uma tradição muito rica nesse aspecto. E também o papel que as canções tiveram na cena cultural norte-americana dos anos 60 e 70, análogo ao que tiveram por aqui. Mas você diria que elas continuam a ter esse papel na cultura de massa atual?
Paglia – Ah, não. O vínculo com a tradição secular das baladas, por exemplo, parece ter escapado da geração mais nova. Minha geração tinha esse elo com a tradição medieval irlandesa e escocesa das baladas, que chegou aos EUA no século 17, em regiões hoje associadas ao estilo ‘country’, como Kentucky e Tennessee. E toda aquela disciplina da escrita, as lindas simetrias dessa tradição se fizeram presentes na música ‘folk’, que também tinha um componente político forte, contra as guerras, contra a bomba atômica.
Tínhamos isso de um lado e, de outro, o blues, que veio nutrir o rock. O rock inglês trouxe isso de volta para nós, adolescentes da década de 50. Mas foi tudo varrido do mapa pelo hip hop e pelo rap.
Faz 25 anos que o rap se firmou por aqui. É a música por excelência das comunidades afro-americana e latina. E é a música dos jovens, em geral: hip hop e rap. Mas a construção das letras, ali, não tem mais nada a ver com a tradição das baladas, com aquilo que se escuta, por exemplo, numa canção como as de Joni Mitchell. Não existe mais o sentido bem definido de espaço, de construção estrófica etc.
Folha – Mas isso é o bastante para desclassificar o rap?
Paglia – O rap me parece algo importante e vital; mas não acho que tenha produzido uma única canção com a dimensão de ‘Woodstock’, capaz de falar às platéias mais diversas. O rap ainda tem de escapar dos guetos, tem de ser capaz de falar para todo mundo.
É o que estou pedindo aos poetas, também, no meu livro: parem de falar só uns com os outros. Falem com as massas do país inteiro, como Walt Whitman fazia. O pessoal do rap não se dá conta de que só está falando para um nicho. Ainda não apareceu uma única canção capaz de se comunicar com o resto de nós.
Vale comparar o rap com algum exemplo da era das canções. Digamos, ‘What’s Going On’, de Marvin Gaye. Uma canção explicitamente política, falando contra a brutalidade policial e contra o governo e que nem por isso deixa de ser uma obra de arte incrivelmente bem construída, num registro meditativo, quase de contemplação. O mundo inteiro escutou essa canção na época. E ela continua viva. Como ‘Woodstock’, que continuo ouvindo nos lugares mais diversos (nem sempre, é verdade, na versão sombria e ambivalente da própria Joni Mitchell).
Então é isso que estou dizendo ao rap: vocês criaram uma forma de arte vital. Agora falem ao mundo. Criaram um estilo, mas será que já criaram uma canção? Muitas delas são ótimas, mas será que alguma é uma grande canção?
6 – Arte sem rumo
Folha – Não é um problema só do rap.
Paglia – A poesia sofre de falta de comunicação, as artes visuais também. Está cheio de gente talentosa e produtiva por aí. Mas não capazes de produzir alguma obra específica, de qualidade tamanha, de visão tamanha que perdure pelas gerações. A turma do rap me diz que não está preocupada com isso. E eu respondo que, sendo assim, estão fracassando no seu meio, fracassando na arte.
O modelo, para mim, é a poesia grega antiga. Os fragmentos de poesia grega que chegaram até nós. Lembro de ler os gregos na faculdade e ficar muito comovida com a força daquelas vozes individuais, as vozes de poetas de 500 ou 600 anos antes de Cristo, ainda vivas depois de milênios. Sinto vontade de dizer para cada artista: faça sua arte como se fosse a única que vai sobreviver.
Folha – Um artista não pode levar essa responsabilidade o tempo todo.
Paglia – Claro que não. Tanta gente se dedica aos ‘processos’, aos esboços, às ‘notações’. É uma atitude egocêntrica, mas perfeitamente aceitável num determinado momento. ‘Não quero fazer obra-prima nenhuma.’ Tudo bem.
Mas esse tempo já se foi, pelo amor de Deus! Minha vontade agora é dizer: Acordem! Estamos no século 21 e as artes estão perdendo seu lugar, mal conseguem sobreviver no domínio da mídia. Estamos num outro ambiente, e vocês têm de brigar pela arte. O jeito de brigar é fazer coisas que durem, querer fazer coisas que durem. E que falem a todo mundo.
Precisamos repensar as coisas, começando por descartar o receituário pretensioso da vanguarda. Pelo menos aqui nos EUA, onde ainda é possível um artista como [o inglês] Damien Hirst exibir pedaços de vaca cortados num museu. Teria sido muito interessante há 70 anos, no dadaísmo. Hoje não faz sentido. É adolescente. John Cage e tantos outros já fizeram sua obra há décadas. Acordem! Vocês estão perdendo o curso das coisas. Estão pelo menos 40 anos atrasados. Já é hora de redescobrir a beleza, redescobrir o prazer, coisas que têm de voltar ao centro da arte, se se quer falar de novo ao público não-especializado. Quem não aceita isso é gente muito pequena, de imaginação pequena.
7 – Esgotamento feminino
Folha – Sem querer soar irônico, depois dessa sua frase, podemos falar um pouco de feminismo? Existe alguma autora feminista que lhe interesse hoje em especial?
Paglia – Quinze anos atrás, meu livro ‘Personas Sexuais’ causou muita controvérsia. Naquela época, o debate estava contaminado pelo pós-estruturalismo e pelas vertentes francesas do feminismo. Mas a certa altura, pouco tempo depois, eu me dei conta de que tinha vencido a batalha. Quer dizer: meu lado ganhou a guerra, pelo menos nos EUA. O feminismo pró-sexo, oprimido e silenciado desde os anos 60, subitamente se ergueu de novo -graças a Madonna. Foi ela quem criou as bases, na década de 80, para uma tal reviravolta.
Os anos 70 e 80 foram um período de feminismo reacionário, que se esforçava para suprimir qualquer voz mais individual, suprimir qualquer interesse pela beleza ou pela moda e que não cansava de castigar os homens ou de reclamar deles, vendo a história inteira da humanidade como a história da vitimização das mulheres. E lá vinha eu dizendo que a moda era expressão do desejo de beleza dos seres humanos, que a pornografia era uma forma de arte, que as mulheres não têm de pedir proteção a ninguém (nem à polícia nem ao reitor), que cada indivíduo tem direito à liberdade e que cada um se defenda por si.
Naquele momento, essas idéias ganharam ressonância; e meu lado saiu por cima. E, de lá para cá, não parece ter surgido alguém de outra vertente.
Mas o feminismo, para mim, parece ter se esgotado como movimento nos EUA. Continuo me vendo como feminista, claro; continuo defendo oportunidades iguais para todos, independentemente de gênero, ao mesmo tempo em que insisto que o feminismo tem de reconhecer as diferenças sexuais.
É preciso reconhecer que a enorme maioria das mulheres sente atração pelos homens, por exemplo, e nem quer outra coisa para si. Assim como a enorme maioria das mulheres pensa em ter filhos, como uma forma de realização pessoal.
A atitude do velho feminismo, que olhava de cima a mulher heterossexual e mãe e punha a figura da advogada de terninho num pedestal, era um modo muito venenoso de ver a existência humana. Quando se fizer uma reavaliação do movimento como um todo, seremos capazes, espero, de imaginar um feminismo mais amplo do que tem sido até aqui.
8 – EUA hoje
Folha – Última e inevitável pergunta, sobre o atual regime norte-americano. Como é, ou o que é, para você, ser norte-americana na era George W. Bush?
Paglia – Vem sendo um período de grande desilusão. Eu nasci numa família de imigrantes, meus avós e minha mãe nasceram na Itália. Por toda a minha vida me senti completamente americana e sempre me bati contra o sentimento antiamericano com que a gente se depara por toda parte, incluindo as nossas próprias universidades e a mídia. A invasão do Iraque, então, foi um choque: que uma divisão militar norte-americana fosse enviada sem consentimento de ninguém fora daqui e com tamanha indiferença pelas vidas de pessoas inocentes, foi um choque do qual ainda não me recuperei.
Talvez eu devesse deixar claro, pelo menos, que a reeleição de Bush dividiu o país e que um enorme contingente de pessoas se manifestou contra a guerra. Foi muito frustrante ver o Partido Democrata escolher um candidato tão incompetente [John Kerry] naquela campanha. Com um candidato melhor, acho que teríamos ganho a eleição.
Mas eles centraram a campanha em Boston e Cambridge [Massachusetts], com toda a arrogância e esnobismo, todo o distanciamento típico da elite da Nova Inglaterra. Gente sem o menor jeito para se comunicar com o povo norte-americano. Não sabem como chegar ao norte-americano comum, com aquela sua necessidade de sentir segurança a qualquer preço.
Bush foi reeleito porque os norte-americanos se preocupam, acima de tudo, com a segurança interna do país. E não confiam num democrata para dar conta da tarefa, já que os democratas tradicionalmente têm mais interesse em questões de direitos humanos e cidadania.
O país continua tonto com o ataque às torres do World Trade Center. A reeleição de Bush teve muito mais a ver com isso do que com um suposto endosso popular à invasão do Iraque.
Folha – Camille Paglia para presidente.
Paglia – Ah, não! Nem de brincadeira! Seria uma condenação a todas aquelas reuniões e reuniões e reuniões… Já pensou? Um pesadelo! E eu jamais trabalharia bem em grupo! Eu sou o que sou: uma observadora e comentarista dos fatos.’