Folha de S.Paulo, 1/5 Lucas Ferraz Morre aos 99 o escritor argentino Ernesto Sabato Morreu na madrugada de ontem, aos 99 anos, o escritor argentino Ernesto Sabato, um dos nomes mais populares da literatura do país. ‘Há 15 dias ele teve uma bronquite que o debilitou muito, ele estava sofrendo há algum tempo. Mas ainda tinha momentos ótimos, principalmente quando escutava música’, disse Elvira González Fraga, companheira do escritor, que vivia na cidade de Santos Lugares, nos arredores de Buenos Aires. Nascido em Rojas, o escritor e ensaísta teve seu nome marcado na história política do país por seu trabalho na área de direitos humanos. A pedido do então presidente Raúl Alfonsín, ele presidiu entre 1983 e 1984 a Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), a primeira investigação sobre a última e brutal ditadura militar (1976-83). Esse trabalho, conhecido como ‘relatório Sabato’, resultou no livro ‘Nunca Mais’ (1984), que narra o modus operandi da repressão e levanta a morte e desaparecimento de 30 mil pessoas. A investigação abriu caminho para o julgamento de militares que cometeram crimes no período. Logo após esse trabalho, ainda em 1984, Ernesto Sabato recebeu o Miguel de Cervantes, um dos maiores prêmios literários da língua espanhola. Ele foi o segundo escritor argentino a receber o título, depois de outro grande, Jorge Luis Borges. Dentre os livros mais célebres, estão ‘Sobre Heróis e Tumbas’ (1961), os livros ‘O Túnel’ (1948) e ‘Abbadon, o Exterminador’ (1974). Apesar do sucesso literário -sua obra marcou principalmente a geração dos anos 60 e 70-, Sabato não se considerava um escritor de ofício. ‘Nunca me considerei um escritor profissional, dos que publicam um romance por ano’, disse numa antiga entrevista. Era formado em física, profissão que abandonou ainda nos anos 40. Os últimos trabalhos do autor argentino, que também pintava, incluem memórias e crônicas sobre a velhice. Por causa da idade, segundo o filho Mario, autor de um documentário sobre o pai, Sabato já não saia de casa, falava muito pouco e vivia sob cuidado de enfermeiras. Hoje, o escritor seria homenageado na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires por seu centenário, em 24 de junho. Folha de S.Paulo, 1/5 Damián Tabarovsky Sem muitos méritos, autor foi campeão moral da Argentina Houve um tempo em que Ernesto Sabato pensou que podia competir com Jorge Luis Borges (1899-1986). Então apareceu um livro seu com um anúncio publicitário que dizia: ‘Sabato, o rival de Borges’. Logo perguntaram a Borges o que pensava do assunto, e, irônico, ele respondeu: ‘Que curioso! Jamais diria que Sabato era um rival para mim’. Esse gesto de desdém de Borges põe Sabato em seu justo lugar, mas não explica o mistério. É que esse enigma de Sabato é parte do grande enigma da Argentina -o país do inexplicável. Todo intelectual argentino, cada vez que viaja ao exterior, encontra-se diante da terrível situação de ter de responder a uma pergunta como esta: ‘Pode me explicar o que é o peronismo?’. Impossível. Para nós, é muito simples compreender o peronismo, mas impossível explicar. Noutro extremo, algo semelhante ocorre com Sabato. Como é possível que um escritor sem grandes méritos se converteu numa referência da literatura argentina? Como é possível que com uma trajetória política um tanto duvidosa tenha se tornado o campeão moral da nação? Impossível expressá-lo. O sucesso de Sabato há de ser explicado pelo viés do mal-entendido, do inefável. Escritor de certa influência existencialista (‘O Túnel’ é seu melhor livro), adquiriu rapidamente uma pose estereotipada de alma desgarrada, de consciência atravessada pelos demônios. DOIS DEMÔNIOS Volta aqui o paradoxo: Sabato, que sempre se imaginou como um escritor escuro e maldito, ocupou publicamente o lugar do politicamente correto, da sensatez. Foi o homem aplaudido pelos meios mais poderosos, pela classe política mais trivial. O senso comum foi seu horizonte de pertencimento. Depois de certo flerte com o ditador Jorge Rafael Videla, rapidamente se recompôs como o intelectual da transição democrática. Presidiu a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas, que investigou os crimes da ditadura, e é seu o célebre prólogo de ‘Nunca Mais’, o livro oficial sobre aqueles crimes. Prólogo esse que expressa como ninguém a ideologia conservadora daquele retorno à democracia: nele se igualam ética, política e juridicamente o terrorismo de Estado com as ações cometidas pelas organizações revolucionárias dos anos 70. É o que se conhece como ‘teoria dos dois demônios’. Novo paradoxo: Sabato era o homem que acreditava nos demônios, que os invoca, mas desta vez o faz em nome da moderação. Ele foi o escritor que encarnou a consciência moral de um país, obturando as perguntas mais críticas, enclausurando os debates políticos mais agudos. DAMIÁN TABAROVSKY , 44, é escritor e jornalista, autor dos livros ‘La Expectativa’ (2006), ‘Las Hernias’ (2004), entre outros.