Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nahima Maciel

‘Ministro Gilberto Gil espera consolidar a criação da Ancinav ainda no primeiro semestre de 2005 e anuncia para o começo do ano o projeto com as mudanças na Lei Rouanet

O ano de 2004 será lembrado no Ministério da Cultura (MinC) como aquele em que a classe cinematográfica resolveu gritar. A primeira versão do projeto de lei para a criação da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) começou a circular em agosto e foi tratada de intervencionista. Cineastas e profissionais da área se uniram para acusar o MinC de querer praticar censura com medidas que regulam, entre outras coisas, a taxação no setor. ‘É exagero, é falta de confiança na democracia e no próprio taco da sociedade’, lamenta o ministro Gilberto Gil. O ministro reconhece que se falou muito disso durante o ano. Afinal, 2004 chega ao fim e a questão ainda está pendente. Discussões com a área ocorreram até a semana passada para tentar resolver os impasses no projeto de lei, mas o fato é que somente no próximo ano a Ancinav tomará forma. O saldo positivo é que o grito do cinema despertou outras áreas. Músicos começaram a se reunir para tratar de questões urgentes, caso o ministério resolvesse criar política cultural para a música. Mas é na área social que o ministro mais comemora. As Bases de Apoio à Cultura (BACs), cujo primeiro projeto havia sido desenhado pelo arquiteto José Filgueiras Lima, o Lelé, e previa a instalação de equipamentos culturais em áreas carentes, se transformaram nos Pontos de Cultura. Como último compromisso da agenda oficial, Gil participou na terça-feira de cerimônia em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o decreto de desoneração do livro, iniciativa que deve reduzir em 10% o preço dos livros durante os próximos três anos. Agora, Gil tenta aumento no orçamento do MinC para 2005. Pretende conseguir 0,6%, ou cerca de R$ 400 milhões, R$ 100 milhões a mais que neste ano. Também para o final do próximo ano está previsto o primeiro relatório do IBGE sobre os números da cultura no país.

CORREIO BRAZILIENSE – A Ancinav foi o grande assunto de 2004, pelo menos o que teve mais repercussão…

GILBERTO GIL – Claro, porque foi o que mais atingiu de imediato os interesses dos com-página, com-tela, com-televisão. Foram mobilizados porque é uma iniciativa do governo que diz respeito a eles.

CORREIO – O senhor esperava a reação e a repercussão que teve o primeiro texto da Ancinav?

GIL – Repercussão, eu esperava. Não esperava essa reação, em muitos momentos excessiva, em alguns momentos até descortês.

CORREIO – Se sentiu traído de alguma forma?

GIL – Não. Me admiro um pouco de certas colocações, como ‘medo da democracia’. Tão falando isso. ‘Tenho medo de que os instrumentos democráticos possam permitir que amanhã ou depois algum presidente ou algum ministro interprete um dispositivo da lei’. É falta de confiança na democracia e no próprio taco da sociedade. As eleições estão aí, os três poderes funcionam, o Ministério Público funciona, as instâncias todas de controle funcionam. Acho excessiva essa coisa de ter medo de que, de repente, você possa ter autoritarismos, intervencionismos e tutelas autodesignadas. A FCC, a agência reguladora norte-americana, é muito mais rigorosa que a Ancinav que propomos. No entanto, eles acham natural porque os Estados Unidos (EUA) têm tradição de vigilância por parte da sociedade com o que ocorre no poder, o que no Brasil não tínhamos. Mas não é isso que estamos querendo preparar? Não é uma democracia aprofundada? Nos EUA, a FCC pode regular a questão de conteúdo, coisa que a Ancinav não pretende fazer. Quando é para dizer que não somos suficientemente aperfeiçoados, o modelo é os EUA, a Europa. Quando é para aperfeiçoar nossos mecanismos, o modelo não pode ser o norte-americano, o europeu? Tem de ser um modelo próprio? Isso desvia demasiadamente a questão do centro onde deve estar focada.

CORREIO – O audiovisual é uma das poucas atividades da cultura cuja produção tem peso econômico razoável. A criação da Ancinav aponta para mudança de regras no mercado?

GIL – Vivemos num mundo onde o paradigma é de mercado regulado. Onde não é economia de mercado hoje? Cuba, acho que é o único. Até a China é! As agências reguladoras proliferam no mundo inteiro. A agência reguladora da Espanha acabou agora de taxar em 6% a televisão para criar um fundo de fomento à produção audiovisual. Aqui, não propomos nem taxar a televisão, e sim a propaganda que vai à televisão, em 4%. Foi uma celeuma, uma gritaria danada. Não acho que gritar, defender seus interesses seja absurdo. O tom e a dose são despropositados. Tudo o que o governo está fazendo é em nome da democracia. E disseram que estamos implantando instrumento típico de regimes totalitários. Me chamaram de Goebbels, de Stálin, de Hugo Chávez. Me surpreende vindo de gente que passou a vida brigando pela democracia, pela participação, pela distribuição de renda. Propomos mecanismos nessas direções e vem um discurso dizendo que é o contrário? Aí pode estar embutido um viés de exagero em defesa de interesses corporativos, setoriais.

CORREIO – Como fazer para que 2005 não seja o ano da Ancinav?

GIL – É tocar o processo como estamos tocando. Promovendo as discussões, conseguindo uma posição pactuada, fazendo com que isso instrua uma posição de governo. Espero que essa proposição (da Ancinav) se cumpra até a primeira metade do ano. Aí a gente não precisa passar o ano todo discutindo Ancinav de novo.’



Zuleika de Souza

‘Gil destaca os Pontos de Cultura’, copyright Correio Braziliense, 23/12/04

‘Havia muitas expectativas na área social do governo do PT e grande parte delas não se realizaram. Como a cultura pode ajudar e que papel tem nessa área?

GILBERTO GIL – Que as expectativas eram grandes, eu concordo. Que elas não foram satisfeitas no nível em que se colocaram também acho que está correto. Mas houve muita coisa, fez-se muita coisa. Os Pontos de Cultura são fruto de política que a gente pode citar como exemplo. Ou as políticas no campo de cinema, o programa do Revelando os Brasis. Cidades de até 20 mil habitantes terão recursos para capacitar os criadores na área de cinema. Eles poderão fazer vídeos sobre suas comunidades, sua história. É uma política social. Quem vier me dizer que não, não aceito. E com a educação tem vários projetos. A Arca de livros é uma política social, e com transversalidade, porque é feita para os assentamentos novos do MST.

CORREIO – E como anda a contrapartida social, tão falada (e criticada) como instrumento de retorno em ações beneficiadas?

GIL – Nunca foi uma questão colocada pelo MinC. Pelo contrário, no momento em que tomamos posição na contrapartida nos opusemos ao conceito. Ele era inapropriado. A contrapartida, você não exige. Você cria possibilidades para que ela exista através de parcerias. É conseqüência do bom exercício de um conceito conjunto de política pública com investimento privado. Em muitos casos, não precisa você embutir na regulação. Em outros, precisa. A cota de tela, por exemplo. É uma coisa que a Ancine faz, um estatuto consensualmente admitido na área do setor de cinema: você precisa de cotas de tela porque precisa tratar os desiguais desigualmente. Muitas vezes isso precisa ser objeto de regulação específica feita através do instrumento coercitivo da lei. Outras vezes não.

CORREIO – Por que as Bases de Apoio à Cultura viraram Pontos de Cultura?

GIL – Elas tinham aquela idéia de implantação de equipamentos em comunidades estratégicas para estimular a atividade cultural. Os Pontos de Cultura vieram substituir as BACs como conceito. Eles recuperam noção de locus já existente. Não se implanta equipamentos, se usa o que tem. Não se chama a comunidade para uma atividade cultural, mas toma-se um conjunto de atividades culturais já existentes e estimula-se esse conjunto. Há situações em que a instalação de equipamentos ainda será necessária.

CORREIO – Foi uma decisão econômica?

GIL – Não, foi uma questão conceitual mesmo. Um aperfeiçoamento. O fato de poder trabalhar com cultura viva já existente nos deu a possibilidade primeiro de identificar melhor que cultura é essa e depois de ter política de governo que apóia iniciativas já existentes. Isso, de certa forma, recupera a realidade cultural brasileira, principalmente nos setores populares.

CORREIO – O senhor acaba de assinar acordo com o IBGE para mapear os números da cultura no Brasil. Como esses números serão úteis?

GIL – O acordo é para a criação de dados, saber quem somos, quantas livrarias temos, quantos museus temos, quantas bibliotecas. Não temos a consolidação da estatística cultural num conjunto de contas da cultura. Isso é instrumento extraordinário para as políticas públicas do próprio MinC, dos estados, das secretarias de governo. É instrumento para o investidor saber qual o perfil do homem que consome televisão, quais classes sociais consomem tais tipos de produtos, que tipo de música é mais consumida na baixa renda. Isso pode orientar os investidores, as gravadoras, os produtores para concentrar os investimentos numa ou noutra área.

CORREIO – As mudanças na Lei Rouanet atrapalharam os investimentos e a captação? Essas mudanças, previstas para serem concluídas em 2004, ainda estão em curso. Qual a previsão de finalização das mudançcas na lei?

GIL – O ano passado, 2003, bateu recorde. Foram R$ 411 milhões da lei de incentivo. Mais do que em qualquer ano. Em 2002, o melhor ano do governo anterior, foram R$ 300 milhões, parece. As mudanças estão sendo processadas através das informações obtidas por um conjunto amplo de consultas feitas à sociedade. Além de consultas específicas a tributaristas, advogados, aos artistas, à receita. Está tudo pronto. É para 2005, logo no início. Já poderia ter sido agora. Mas como havia muita discussão sobre a Ancinav, muita atenção que o MinC tinha que dar a outros assuntos, não deu.

CORREIO – Desde que assumiu o MinC, o senhor não compõe. Sente falta?

GIL – Só estou cantando. Compor, não há tempo, não dá. Nunca gostei muito de compor. Gosto é de cantar. Pra mim, não faz falta, não gosto. Dá trabalho. Cantar é manifestação, ímpeto puro. Compor também é bom, às vezes.’



Alessandra Bastos

‘Lei da Comunicação de Massa é meta da Secretaria do Audiovisual para 2005’, copyright Radiobrás, 22/12/04

‘A formulação da Lei Geral do Audiovisual (também chamada de Lei da Comunicação de Massa) é um dos objetivos da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura para 2005. Junto a ela, vem a revisão das Lei das Telecomunicações (Lei 4.117, de 1962) e a Lei do Cabo (9.472, de 1997).

‘Nossa pretensão é que, em 2005, comece o debate público, quando nossos técnicos conseguirem elaborar um texto, como foi feito com a Ancinav (Agência Nacional de Cinema e Audiovisual)’, disse o secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, Orlando Senna.

Quanto às possíveis polêmicas que o futuro projeto poderá provocar, o secretário observou que, ‘nesse terreno, as brigas continuarão até o fim dos tempos’.

O objetivo da lei é ser ‘englobadora’. De acordo com o secretário, ‘todas as disposições legais referentes a cinema, televisão, vídeo, circulação de conteúdo e jogos eletrônicos serão transformadas em uma só norma e não ficarão espalhadas, como é hoje. O ideal é que ela possa superar toda a legislação anterior’, disse Senna. ‘Existem leis de 1962 que ainda estão em vigor, portarias e decretos, além de uma quantidade enorme de projetos de lei que estão no Congresso, dos mais sérios aos mais loucos’, acrescentou o secretário.’