‘Nesta semana será anunciado o prêmio Nobel de Literatura. O ganhador, além do reconhecimento geral, receberá um cheque polpudo, seus rivais, repetindo a palavra ‘injustiça’, o detestarão bem mais, seus editores, satisfeitos por terem feito uma boa aposta, republicarão seus livros, destacando nas capas a honraria, e seu país, se for pequeno ou complexado, vai festejá– lo como herói nacional. Durante um ou dois dias ele (ou ela) ocupará um pequeno espaço nas primeiras páginas dos jornais, críticos opinarão sobre seus méritos ou limitações e leitores comprarão suas obras.
A estranheza desses dias decorre de quão atípicos eles são. Autores e livros têm pouco a ver com o noticiário. Seu lugar jornalístico se encontra num suplemento ou revista especializada. A literatura, ademais, é, em seus dois extremos, o da criação e o da fruição, um afazer privado, um vínculo que se estabelece entre um escritor solitário e um leitor igualmente solitário. Seu trânsito pela esfera pública não passa de um interlúdio efêmero. No entanto, concursos e prêmios, ampliando artificialmente tal esfera, conseguiram promover certas áreas da cultura como se fossem um acontecimento ou competição. Entre esses, o Nobel, dado pela primeira vez em 1901 a um poeta francês já esquecido, Sully Prudhomme, tornou– se o mais famoso.
Como e por que isso ocorreu tem um quê de misterioso. O fenômeno, se bem que seus antecedentes remontem à Grécia clássica, é tipicamente moderno. Qualidade literária não se mensura nem se compara facilmente: há apenas avaliações convincentes ou não, critérios que mudam com freqüência, opiniões informadas ou desinformadas. O olhar treinado reconhece prontamente a subliteratura mas, quando se cotejam obras complexas, o juízo superficial não basta.
Não que a crítica literária seja atividade arbitrária. Sempre houve praticantes capazes de perceber o que era marcante nesse poema ou naquele romance. Eles são, contudo, mais raros do que os grandes escritores. Quanto aos membros da Academia Sueca que outorga o Nobel, o crítico George Steiner formulou a indagação pertinente: por que deveríamos levar a sério as escolhas de uns escandinavos obscuros? Resposta: não há razão para isso. Mas eles têm o dinheiro e selecionam quem quiserem.
O prestígio de um prêmio pode advir da consistência de seus acertos. Não é o caso do Nobel. Dos 38 laureados pelos suecos antes da Segunda Guerra Mundial, talvez meia dúzia (Kipling, W.B. Yeats, Bernard Shaw, Thomas Mann, Pirandello, Eugene O´Neill) sobreviveu ao teste do tempo. Quem se lembra hoje, digamos, de Rudolf Cristoph Eucken, Jacinto Benavente, Grazia Deledda? O rol de autores que, na época, escaparam à atenção dos acadêmicos é impressionante: Tolstói, Tchékhov, Ibsen, Strindberg, Thomas Hardy, Apollinaire, Proust, Joyce, García Lorca etc. Contam– se nos dedos os escritores importantes que, como Elias Canetti, seriam, sem o prêmio, menos lidos ou conhecidos.
Parte da reputação do Nobel literário vem de sua associação com os prêmios outorgados às ciências. Que um poeta seja celebrado juntamente com físicos, químicos, biólogos e médicos sugere que há como se avaliar o trabalho de todos com objetividade semelhante. Se, no que diz respeito aos cientistas, os leigos não têm opção salvo a de acatarem as conclusões dos especialistas, quando se fala de cultura nada assegura de antemão que o ponto de vista de qualquer um de nós seja menos qualificado que o do júri de Estocolmo.
A imagem que a Suécia projetou no século passado, a de um país pequeno e afluente, democrático e neutro, também contribuiu para emprestar ao Nobel uma aura de imparcialidade, aura reforçada quando, após a guerra, a proporção de laureados escandinavos se reduziu substancialmente.
No fim das contas, a idéia que subjaz a uma distinção dessas nos remete ao clima intelectual europeu da virada do século 19/20, um período caracterizado pelo otimismo de uma civilização que se via como potencialmente universal e imune a crises profundas. Os valores culturais europeus constituíam, na mente de seus portadores, um apogeu histórico que, logo, a humanidade inteira compartilharia. Embora a ilusão sobrevivesse à realidade que a gerou, ela, contaminando– se do espírito que formou e deformou a ONU, adaptou– se às novas circunstâncias. O Nobel, deixando de ser um galardão literário, converteu– se em item de política cultural, com ênfase no substantivo. Daí que, nas décadas recentes, indivíduos, instituições e até nações tenham dedicado tempo, esforço e diplomacia à sua conquista.
Não obstante as considerações acima, há uma pergunta que persiste: quem vai ganhar desta vez?
Dois dos melhores poetas contemporâneos são o polonês Tadeusz Rozewicz e o alemão Hans Magnus Enzensberger. Tanto a Polônia quanto a Alemanha foram, todavia, premiadas há pouco. Faz tempo que ninguém das vizinhanças da Escandinávia leva o prêmio. O sueco Tomas Tranströmer e o finlandês Paavo Haavikko estão entre os candidatos prováveis. 2004 foi o ano em que dez países ingressaram na União Européia, e homenagear um deles não está fora de questão. Palpites: os eslovenos Kajetan Kovic e Tomaz Salamun, o lituano Tomas Venclova e os estonianos Jaan Kross e Jaan Kaplinski. Como a Turquia não será aceita tão cedo na Europa, um Nobel, por exemplo, para Yasar Kemal (que tem raízes curdas) serviria de consolo. Tampouco vale a pena descartar algum holandês (Harry Mulisch), russo (Aleksandr Kushner) ou árabe (Adonis, Darwish). Em breve saberemos.’
LITERATURA EM RISCO
‘Cultura para quem precisa’, copyright Folha de S. Paulo, 04/10/04
‘Uma ameaça ronda o mundo dos livros: a ameaça do obscurantismo. A globalização econômica e financeira amplia a desigualdade entre ricos e pobres e os livros não escapam a essa lógica. Grupos estrangeiros compram editoras brasileiras e se estabelecem com planos avassaladores no mercado nacional. Grandes editoras brasileiras compram menores, acentuando o caráter de monopólio, agravando a tendência à homogeneização na produção de conhecimento e contribuindo para rebaixar o nível das publicações. Enquanto isso, o poder público, que deveria cumprir papel regulador, reproduz as distorções do ‘mercado’ nas aquisições de acervos para bibliotecas e escolas.
Enfrentando contexto de forte concentração no setor, pequenos e médios editores – principais defensores do livro como um bem cultural (e não como simples mercadoria) e os que se dedicam a difundir idéias novas, descobrir autores e formar leitores– vêem– se obrigados a diminuir as tiragens e elevar o preço médio de suas publicações. Resultado, em parte, da política engendrada pelos conglomerados livreiros, que vendem espaços às megaeditoras e ocupam majoritariamente suas prateleiras com best– sellers – no mais das vezes volumes de auto– ajuda, esotéricos ou de mero entretenimento– , impondo o achatamento da oferta das obras ditas de conteúdo, cada dia mais dirigidas a uma reduzida elite intelectual.
A exigência de rentabilidade imediata faz com que a decisão sobre que livros publicar deixe de ser tomada pelos editores e passe às mãos das grandes livrarias (que escolhem as obras pelo seu potencial de venda, ditam o que comprar, de que forma, com que desconto!), ao que se rende parcela significativa de editores, fechando o ciclo do verdadeiro salve– se– quem– puder em que se transformou o mercado editorial.
Não se trata, fique claro, de reivindicar aqui ‘reserva de mercado’ para as pequenas editoras, mas de iniciar a discussão sobre como defender o patrimônio maior da nação, a cultura. Em um país onde apenas 20% dos habitantes lêem livros, não podemos deixar nas mãos do mercado a decisão do que merece ser publicado. Ou aceitar, atônitos, essa máxima de que o mercado se rege por leis naturais, universais, inevitáveis. O dinheiro não pode comandar processo tão importante.
Não podemos deixar nas mãos do mercado a decisão do que merece ser publicado
Num país periférico, o editor (não o proprietário de editora, muitas vezes um comerciante como tantos outros, mas o profissional do mundo das letras) não pode abdicar do seu papel de agente cultural. O mesmo se aplica aos livreiros e editores dos suplementos literários, pois o que está em jogo é a identidade, a diversidade e o pluralismo.
Mas tampouco os governantes compreendem seu lugar no mundo da cultura. Numa alarmante mistura entre o público e o mercado, as compras governamentais invariavelmente favorecem as mesmas grandes editoras. Sem um programa claro também nesse campo, o governo do PT mal tomou posse e fez a festa de 14 grupos editoriais, despendendo cerca de R$ 100 milhões, em 2003, na compra de coleções para escolas. Interessante notar que, como o Ministério da Educação é o maior comprador de livros do país (quiçá do mundo), são justamente as editoras de didáticos que despertam primeiro a cobiça das empresas estrangeiras, atraídas pelas benesses desse negócio milionário.
Para completar o triste quadro, temos ainda a mal ajambrada questão da ‘contrapartida social’. A produção cultural no Brasil vive do dinheiro do contribuinte, mas não beneficia a sociedade na mesma proporção. Banqueiros e outros empresários posam de mecenas, lançam mão de conceitos elevados para financiar, às custas do erário, via Lei Rouanet, projetos editoriais luxuosos oferecidos como brindes e depois vendidos a peso de ouro. E, além de beneficiarem quem menos precisa, esses investimentos reforçam as desigualdades regionais, pois quase 90% deles convergem para os Estados do Sudeste, ficando regiões como Norte e Centro– Oeste com ínfimos 0,4% e 2,5% cada uma.
O Ministério da Cultura começa a rever os critérios dessas leis, em muito boa hora. Acredito na capacidade e no direito que o Estado possui de intervir em questões culturais, de chamar à responsabilidade social, fomentar e criar condições para que a produção cultural se dê, transferindo para a área pública o papel assumido pelas empresas e seus gerentes de marketing. Sem se dobrar à gritaria dos que se rebelam contra o ‘dirigismo cultural’ mas nunca se dignaram a discutir o sentido social da literatura, da música, do cinema, do teatro ou das artes plásticas. O que os agenciadores das verbas de incentivo temem no diálogo entre poder público e sociedade é ter de abrir mão de privilégios e práticas que confinam a cultura aos limites medíocres do entretenimento.
Gramsci dizia que todo homem é um intelectual. Independentemente de sua classe social, ele quer entender o mundo que o rodeia, a sociedade e a história que a precede e explica. O livro é uma ferramenta capaz de explicar a história, de transformar o panorama intelectual do país e do mundo. Para que isso seja possível, autores, editores, educadores e livreiros precisam deixar de ficar calados, de cabeça baixa e mãos no bolso; precisam se lançar à missão de fazer do livro um bem a ser democratizado, formando leitores críticos, comprometidos com um futuro mais justo para a humanidade.
Ivana Jinkings, 43, é editora da Boitempo e uma das fundadoras da Libre (Liga Brasileira de Editores).’
Daniel Buarque
‘Bibliotecas da USP e UFRJ não têm 42% dos títulos apontados pelos especialistas’, copyright Folha de S. Paulo, 04/10/04
‘Os acervos das bibliotecas de duas das maiores instituições universitárias do país, a Universidade de São Paulo e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, dispõem de parte dos 50 livros indicados pelos dez especialistas ouvidos pelo Mais!. Em consulta aos dois bancos de dados on– line dos sistemas integrados de bibliotecas dessas universidades, não foram encontrados em nenhum dos dois sistemas 21 (ou 42%) dos 50 livros apontados – seja no idioma original ou em tradução para alguma outra língua que não o português do Brasil. A USP tem 58% das obras no original ou em tradução para algum outro idioma.
Já a UFRJ tem apenas 44% das obras citadas, nenhuma que não esteja disponível também na USP. A maior diferença entre as universidades diz respeito ao acervo de evolução. Enquanto a USP tem quatro dos cinco livros citados, a UFRJ não tem nenhum. Nas áreas de arte, ciência política, antropologia, filosofia, música e poesia, ambos os acervos têm os mesmos livros disponíveis.
Entre os livros de poesia, apenas um – ‘Charmes’, de Paul Valéry– pode ser encontrado tanto na USP quanto na UFRJ. Dos livros sobre cinema, nenhum foi encontrado nos dois bancos de dados. Mas ambas as bibliotecas dispõem de todos os títulos originais sobre antropologia.’