Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nelson Ascher

‘As mães e avós de antanho tinham razão: mimar crianças as estraga. E mimá-las demais as estraga absolutamente. Como o nicho ecológico da correção política -seu berçário e asilo- é, do jardim de infância às universidades, o sistema educacional, é nele também que brotou e se enraizou a revolta contra tais constatações milenarmente testadas e comprovadas.

O processo educativo, previamente considerado uma catequização de selvagens, uma domesticação de feras perigosas, transformou-se hoje na extensão do aleitamento materno aos adolescentes que, por seu turno, mantêm-se oficialmente nessa faixa etária deleitosa e dilatável até quase vésperas da aposentadoria precoce.

Nos países ricos, onde a praga em questão assumiu dimensões pandêmicas, mestres e educadores vêem como um dever central não humilhar o corpo discente, dever que, entendido no sentido amplo, equivale a não lhe arranhar nem a epiderme da auto-estima, por exemplo, apontando que se cometeu um erro de tabuada aqui, de concordância verbal ali.

Evidentemente repreender um estudante ou puni-lo pelo que quer que seja está fora de questão, mas, ademais, tampouco é lícito, segundo os mestres e educadores acima, conceder recompensas diferenciadas a quem alcance resultados diferentes. A igualdade de resultados tornou-se obrigatória. Todo bebê, púbere, adolescente, jovem ou hippie grisalho, tem o direito inato e perpétuo a ser o primeiro da classe, assim como as garotas de qualquer idade, mesmo antes do spa, da academia ou da plástica, conquistaram o direito irrevogável a serem top models, já que todas, graças a alguma divindade igualitária, são naturalmente lindas. E quem discorde é um porco machista ou, pior, pecado dos pecados, culturalmente insensível.

Uma das razões disso é que, de tantas instituições criadas ou consolidadas durante a modernidade, a única nunca sistematicamente contestada ou sequer questionada é o sistema educacional. Às vezes talvez possa até sê-lo neste ou naquele detalhe contingente, mas, em sua essência, jamais.

A educação, sobretudo se pública, universal e gratuita, passou a ser tomada como um bem supremo -e a tal ponto que a primeira (e última) linha de defesa a que recorrem os apologistas de tiranias estatizantes se resume em afirmar que, não obstante a falta de alternância e alternativas no poder, um ou outro campo de trabalhos forçados, o paredão ocasional, elas se redimem oferecendo de graça escolas e hospitais aos súditos. Que seus professores sejam amiúde semi-analfabetos e seus médicos, aos quais chega apenas quem sobreviva às filas de espera ou disponha de amigos simpáticos e de bolsos fundos, tenham uma competência questionável, bom, tais minúcias em nada afetam a santidade das intenções de base.

No entretempo, parcelas crescentes do ensino vêm sendo colonizadas pelo conceito de ‘educação’. A meta do ensino consiste em transmitir aos alunos tanto um conjunto de informações úteis como os pré-requisitos metodológicos que lhes permitirão, de início, assimilá-las e, em seguida, saírem por conta própria em busca de outras.

Quanto à educação, esta apresenta metas ambiciosas como, em gerações anteriores, a formação de patriotas leais, depois a de cidadãos exemplares e, agora, a de seres humanos que pensem o que convém pensar, nem um pouquinho aquém, nem um pouquinho além e, principalmente, de forma alguma, algo distinto ou contrário. Para que martelar a regra de três na cabeça de um coitado quando o prioritário é dotá-lo de uma ‘consciência social’, levá-lo a apoiar boas causas, militar por um mundo solidário, defender o verde, não comer alimentos transgênicos, votar certo nas eleições e plebiscitos? Para que perder tempo com discussões se, através de intérpretes autorizados e diplomados, os fatos sempre falam por si sós?

Mais relevantes, porém, do que razões ou causas são as conseqüências do paradigma educacional, das quais, embora haja uma infinidade, a que no momento me interessa é a morte não da intelectualidade, uma categoria que prolifera sem cessar, mas, sim, na acepção que, da Renascença até a Primeira Guerra, os séculos deram ao termo, a do intelectual.

Se os intelectuais outrora eram, entre outras coisas, indivíduos que ‘diziam a verdade na cara do poder’, eles se destacavam igualmente por deduzir qual o poder que, em cada circunstância, cabia desafiar, pois não raro se tratava daquele controlado menos pelos governos do que por seus pares. Eles desempenhavam o papel voluntário de, defendendo opiniões antipáticas, insurgirem-se contra as unanimidades aparentemente democráticas da intelectualidade e da opinião pública.

Não é de hoje que se confundir no rebanho de colegas e, repetindo o que a maioria quer ouvir, bajular a platéia rendem pontos, afeto e sinecuras. Se bem que os antigos intelectuais fossem tão humanos quanto o resto da espécie, seu afã de, eclipsando a prudência e o corporativismo, fazer perguntas inconvenientes constituía a pedra angular do mercado livre de idéias.

O Leviatã educacional e a intelectualidade seguem, para abusar da expressão imortal de Noam Chomsky, se especializando na manufatura do consenso. Acha-se atualmente em toda parte, nas escolas, na academia, entre artistas, nas publicações mais diversas, um conformismo que antes somente regimes totalitários pareciam capazes de instaurar. E os instrumentos com os quais se atingiu este sucesso suicida, em vez do cárcere ou da sala de tortura, foram a abolição da competitividade, a premiação da inapetência, a desconfiança em face do individualismo e o desestímulo à curiosidade.’



MCLUHAN POR MACLUHAN
José Castello

‘Assim dizia McLuhan’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 12/10/05

‘Marshall McLuhan, o profeta da globalização, morreu em dezembro de 1980, em Toronto. Não chegou a ver a explosão planetária da TV, nem a experimentar a expansão da Internet, mas seu olhar sensível não o impediu de vislumbrar o mundo que estava por vir. Vinte e cinco anos após sua morte, uma coletânea de entrevistas e conferências (‘McLuhan por McLuhan’, organizada por Stephanie McLuhan e David Staines, Ediouro, 368 páginas, R$ 59,90) oferece aos leitores de hoje uma chance de testar o vigor, ou o fracasso, de suas idéias.

Profeta da morte da imprensa e do fim de um mundo linear e geométrico, McLuhan antecipou, já nos anos 50 e 60, a chegada de um novo mundo unificado, na forma de grande teia, e gerido por uma espécie de alma supra-pessoal. Visão na qual o prefaciador da coletânea, o escritor americano Tom Wolfe, identificou não só uma adaptação, mas uma comprovação das idéias do teólogo francês Teilhard de Chardin, ele também profeta de uma mística do global.

Nascido em 1911, em Edmonton, Canadá, Herbert Marshall McLuhan foi, afora erros e acertos de suas hipóteses, um pensador genial. Com recursos parcos e uma formação basicamente literária, ele anteviu o mundo em que vivemos, no qual as palavras se evaporam e se dispersam em redes virtuais, as idéias circulam em direções caóticas e a noção de sentido, quer dizer, de uma direção e de um futuro, se perde num presente em abismo.

A luta de McLuhan foi, todo o tempo, contra o que ele chamava de ‘literatos’, isto é, homens formados na tradição da imprensa, habituados a uma noção euclidiana de tempo e espaço, segundo a qual as coisas se sucedem umas às outras, sempre em linha reta – como nas sentenças de uma grande narrativa clássica. McLuhan dizia que esses homens e essa tradição são os responsáveis pela afirmação de uma cultura do Eu, que privilegia a individuação e que teria sido não só a responsável, mas a verdadeira criadora de idéias petrificadas e perigosas como o nacionalismo, o separatismo e o individualismo.

Previa McLuhan que, no novo mundo unificado da mídia que estava a se afirmar, ao contrário, os homens se veriam imersos em uma grande malha global, um mundo devassado, sobreposto e instantâneo, no qual as idéias se dissolveriam e as diferenças se anulariam – exatamente como na cultura pop que ele mesmo via nascer. E no qual, enfim, depois de séculos de hostilidade e de enclausuramento, o homem se veria dissolvido em uma grande colcha democrática, capaz de abrigar a todos, sem lugares fixos e sem destinos rígidos, um mundo, por fim, em que poderíamos compartilhar uma mesma experiência.

De fato, McLuhan foi certeiro ao antever a vida globalizada de hoje, na qual a palavra, se não deixou de existir e se não perdeu de todo a potência, tornou-se uma espécie de valise, estrutura vazia que carrega todos os sentidos e que, com isso, forma uma grande poeira de significados, evocando assim as configurações cósmicas. McLuhan estava cheio de razão quando dizia que a tecnologia, em vez de ser algo que paira acima de nós e que está sempre à nossa disposição, se tornou, ao contrário, uma extensão do corpo, seu prolongamento – e por isso o afeta, moldando também as mentes que o gerem. Com a revolução da tecnologia eletrônica, não são só os meios que transformaram, mas o próprio homem entrou em metamorfose. É o mundo em mutação constante previsto pelos escritores de ficção científica e pelos revolucionários radicais.

Com o novo universo globalizado, McLuhan tem razão, tudo se torna mais rápido e mais frouxo, mas também menos privado e menos sectário. McLuhan – ele também um ‘literato’ que estudou em Cambridge, devorou os grandes clássicos e estudou Teilhard de Chardin – foi influenciado pelas idéias do teólogo francês, que via nessa grande malha tecnológica uma espécie de manifestação da divindade; mas, apesar disso, não se deixou seduzir, nunca, pelas especulações místicas e se comportou, sempre, como um cientista.

Sua visão de mundo, por mais perturbadora que pareça, é sempre pragmática. Mesmo profetizando o fim da linearidade que caracteriza o mundo da imprensa, McLuhan ainda fez uso de meios lineares e impressos, livros basicamente, para desenvolver suas idéias, o que basta para ilustrar a situação paradoxal em que trabalhou e pensou. Ele falava no fim de uma ‘cultura visual’ e de sua substituição por uma ‘cultura elétrica’, basicamente auditiva e sensitiva. E lembrava que para os cegos, para quem o mundo linear sempre escapa, todas as coisas são súbitas e também simultâneas. O novo mundo da grande teia eletrônica nos deixaria cegos para as noções de causa e efeito, criando sujeitos mais interessados na rapidez e no susto – exatamente como os garotos que, enfurecidos, atravessam as noites em cafés cibernéticos, debruçados sobre seus jogos luminosos e viagens virtuais.

Nesse novo mundo de descontinuidade e de desconexão – expresso com grande vigor, ele lembrava, nas narrativas de um escritor genial como Lewis Carroll, o autor de ‘Alice’ – o espaço e a geometria linear, aqueles em que os eventos se sucedem e se explicam, se desfazem. E isso, previa McLuhan, seria não só muito favorável para a espécie humana, como um sinal do aparecimento de um novo tipo de homem. Esse homem, por fim, que somos hoje.

Dizia Mcluhan que o novo mundo nascente começou a ser desenhado, muito antes de seus livros, pelos grandes artistas e poetas (ele cita explicitamente Rimbaud e Baudelaire, sujeitos que, segundo diz, reformaram nossa ‘paisagem interior’); homens, ele continua, que ‘começaram a inventar formas opacas e difíceis’. Formas abertas, sem sentidos e desenhos fixos, que exigem de nós uma participação ativa para preencher os hiatos e intervalos que oferecem, e não a presença tradicional e passiva do público consumidor. Exatamente como, hoje, a Internet nos leva a agir. Não que tenha mudado o mundo; mudou a forma de observá-lo e de concebê-lo. Essa revolução vinha de longe, ele dizia, infiltrando-se devagar na história humana. Ela já aparecia, ele nos lembra, numa sentença famosa de Gustave Flaubert: ‘O estilo é um modo absoluto de perceber as coisas’.

A idéia de McLuhan de que ‘o meio é a mensagem’ mostra, nessa primeira década de século 21, sua eficácia, mas também, não se pode negar, suas limitações. Ela não deixa de ser mais uma idéia redutora, que simplifica os eventos do real, que tenta domá-lo (ainda que sob outra couraça, a rede em vez da mordaça), isso em um momento em que a vida se torna mais complexa e desconexa, e em que toda a cultura, toda a experiência humana, tudo parece tender cada vez mais para as formas aleatórias e para o caos.

‘Uma das estranhas mudanças que estão ocorrendo é que estamos passando do mundo do agricultor, do mundo do especialista, do mundo da pessoa fragmentada, para o mundo do caçador, da pessoa unificada’, ele escreveu, por exemplo, em célebre ensaio de 1966. Quando comentou essa sua idéia com o músico John Cage, dele ouviu um interessante comentário aprovador: ‘Veja, isso é muito interessante. Passei a vida caçando cogumelos. Não estou nem um pouco interessado em cultivá-los’. A observação de Cage aponta para a postura do moderno viajante da Internet, sujeito que se move à deriva e aos saltos, sem nenhuma coerência ou direção, e persegue muitas vezes coisas que sequer sabe nomear, e que nem chega a desejar. Sujeito que, mais que buscar isso ou aquilo, busca a própria busca.

Daí se dizer, muitas vezes, que a Internet é um ‘vício’, já que, ao contrário do mundo linear e previsível da imprensa, nos carrega para um abismo, nos solta no vazio, e durante a queda esbarramos com idéias e objetos cuja existência nem podíamos cogitar. Isso é bom, como afirmava McLuhan? Isso é ruim, como ainda hoje temem aqueles que ele chama de ‘literatos’? A melhor resposta talvez seja a mais simples: isto é, e basta. Apenas é, e é a partir dessa constatação que se abre a possibilidade de um futuro.

Certa vez, o escritor James Joyce – de quem McLuhan dizia que ‘passou a vida estudando nossos sentidos’ – viveu uma grave crise em sua relação com a filha esquizofrênica. Ele procurou a ajuda do psicanalista Carl Jung. Perturbava a Joyce, em especial, o modo como a loucura da filha se parecia com a liberdade extrema com que ele mesmo escrevia seus livros geniais, como o ‘Ulisses’. Depois de ouvi-lo, Jung não deixou de concordar com Joyce, de que havia de fato uma semelhança muito forte entre os delírios da moça e suas criações literárias. Só que, ele acrescentou, entre as duas experiência existia uma diferença crucial. ‘Ali onde você cria, ela se afoga’, o psicanalista resumiu.

Também o mundo contemporâneo, nos lembra McLuhan, se parece com a loucura ou, pelo menos, com uma grande e desordenada explosão de imagens do inconsciente. O súbito aparecimento de um mundo no qual tudo o que o homem já foi ou conheceu está exposto no exterior, ele diz, ‘é muito semelhante ao inconsciente, e confrontar o inconsciente como um fato ambiental é como confrontar ou afrontar a anarquia’. É, portanto, um mundo de enlouquecer, ainda que funcione, cada vez mais, com eficácia.

Os conservadores ainda hoje se surpreendem com uma tela como ‘Homem sentado numa cadeira’, de Pablo Picasso, quadro em que não se vê nenhuma cadeira, e não se vê nenhum homem. McLuhan a usa como um exemplo do que tenta dizer. ‘O quadro é concebido para transmitir o efeito de estar sentado numa cadeira, e não a aparência disso’, ele distingue. Em vez da visão linear, em vez da figuração ‘normal’, segundo a qual uma coisa deve remeter a outra, uma representa a outra, e os espaços imaginário e real se superpõem, Picasso oferece não uma figura, mas um efeito, ou uma sensação. As telas de Pablo Picasso reafirmam a idéia de McLuhan segundo a qual a arte pode ser o melhor instrumento para mudar a percepção.

Em vez de entender a difusão o da TV como uma forma de acomodação e de aprisionamento, como por hábito pensam os ‘literatos’, McLuhan a via como uma possibilidade de acesso a uma esfera incorpórea, e mesmo cósmica, exceção em um mundo cada vez mais disciplinado, cada vez mais gerido por toda a forma de doutores, chefes e de terapeutas – quer dizer, de mestres na arte da domesticação.

Ainda assim, não podemos deixar de pensar, também, que McLuhan foi um grande moralista – como os nobres moralistas que dominam a literatura do séculos 18 e 19. Ele queria encontrar uma nova ordem, e lutou como pôde para exercer algum controle prévio sobre o novo mundo que, com seu olhar de visionário, ele avistava. Quando, também esse novo mundo de que McLuhan parece ter sido o grande profeta, também ele, se esquiva sempre de todo gerenciamento e toda explicação. Ainda assim, como um justiceiro das idéias, sempre disposto a matar um mundo e colocar outro em seu lugar, Marshall McLuhan foi capaz de enfrentar a grande agitação e inconstância que definem a existência, e por isso foi um grande pensador.’



VEXAMES EM PORTUNHOL
Carlos Heitor Cony

‘Boleros e tangos’, copyright Folha de S. Paulo, 17/10/05

‘Semana passada, no canal espanhol da NET, assisti a nutrido documentário sobre a atual situação do Brasil, com numerosos depoimentos de nossos políticos, intelectuais, artistas e assemelhados. Excelente trabalho profissional da equipe que a TV espanhola nos mandou e, em linhas gerais, os depoentes deram conta do recado, uns mais, outros menos, com análises sinceras e, dentro do possível, patrioticamente possíveis.

O desastre ficou por conta dos que tentaram falar em espanhol. Mesmo os que tiveram e ainda têm bom tráfego internacional, que moraram em países de fala hispânica, que se consideram fluentes no idioma de Cervantes e Maradona, volta e meia apelavam para o mais escrachante portunhol, limitando-se às alterações da prosódia que aqui e ali dão a impressão de que se fala uma língua diferente da nossa. Basta que se diga, de vez em quando, ‘democrácia’ em vez de democracia e o depoente adquire um tom de intimidade com a língua de ‘nuestros hermanos’.

Até a turma fluente em inglês e francês (dou o exemplo de FHC e de alguns diplomatas), quando enfrentam o espanhol, pela semelhança vocabular e gramatical, resvalam para o portunhol deslavado. Imagino o presidente Lula, assumidamente monoglota, quando tenta se comunicar com seus amigos Chávez e Fidel.

De minha parte, posso me meter a falar sânscrito, indo-europeu, mas jamais o portunhol. Em feiras de livros e faculdades, já cometi palestras em Barcelona, Guadalajara, Havana e Buenos Aires. Proclamando meu respeito à língua de Unamuno, Lorca, Calderón e Chico Recarey, entro direto no português e vou em frente.

Nem tenho condições de apelar para o portunhol. Com certeza absoluta, só sei três palavras no nobilíssimo idioma de São João de la Cruz: ‘teléfono’, ‘micrófono’ e ‘sin embargo’. Sei também algumas letras de boleros e tangos. Não dá nem para a saída.’



CRÔNICA
Joaquim Ferreira dos Santos

‘O homem puro’, copyright O Globo, 17/10/05

‘Encontrei, esquina de Siqueira com Serzedelo, o Adamastor. É ‘o estranho homem puro’, um personagem que o cronista Antônio Maria, coleguinha das antigas aqui do GLOBO, tirava da cartola quando estava de saco cheio de legislar sobre a Humanidade na primeira pessoa. O ‘eu’, como diria meu personal-psi , é um cara extenuante. Um bolha repetitivo espantando a multidão anônima com sua empáfia. Ih, lá vem aquele mala – você próprio, eu mesmo – de novo.

Maria, de quem está sendo publicado novo livro de crônicas esta semana, sabia tudo. Falar na primeira pessoa, ‘eu acho que isso’, ‘eu acho que aquilo outro’, como é de vício dos cronistas, cansa a beleza de qualquer um – principalmente a de quem escreve. Ninguém se agüenta tanto. Num twist de personalidade, Antônio Maria passava para a boca alheia, no caso a do Adamastor, o que estava com preguiça e receio de elaborar na própria. Fazia-se rabugento, afinal não era ele quem estava ali. Fugia da responsabilidade e dava um tempo em si mesmo, livre por um dia da necessidade de vociferar altaneiro, com estilo, sobre todas essas coisas que o jornalismo obriga e nem sempre o autor está interessado. Adamastor ia na contramão do que era o pensar correto. Acabava falando umas verdades.

Criado o alter ego , protegido da obrigação de ser coerente e de bom gosto, esse fardo de quem escreve, os assuntos se multiplicavam. Rubem Braga às vezes emprestava textos para Fernando Sabino, que mais adiante retribuía a gentileza cedendo algum de sua lavra, um pequeno para ser esticado, outro antigo para ser requentado, ao parceiro de crônica diária nos jornais do Rio. Troca-troca intelectual. Maria, sem patota literária, não tinha sequer esse recurso dos amigos do texto – e deve ter sido aí, num desses momentos aflitivos da falta de assunto, que partiu para liberar o alter ego . Valia tudo, tudo posto na boca do Adamastor, coitado, o tal que encontrei em Copa e me passou umas opiniões novas – ‘tem que desfavelar o Rio rápido, descamelotizar a Rio Branco’ – que vou distribuir aos poucos.

Quando incorporava o Adamastor, o texto de Maria parecia fluir mais rápido do que nunca, e eu tenho certeza que nesses dias sobravam horas preciosas para que o nosso querido Menino Grande fosse ao que lhe era de interesse, razão e princípio final: as mulheres do Sacha’s, os sanduíches do Cervantes, as carentes da boate no Plaza, o papo com Vinicius, as vedetes do Night and Day, o uísque do Villarino, as branquelas catabólicas do Clube da Chave e, ah como é bom!, a santa paz dos dedos quietos e sem necessidade de registrar o Rio numa crônica leve.

Maria achava que o homem só tinha duas missões na vida: amar e escrever à máquina. ‘Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira’. Já que para amar com a vida inteira ele precisava carregar o corpo inteiro, principalmente os tais dois dedos sempre presos na máquina, nessas horas ele soltava em campo o cão de guarda. Adamastor entretia o público e deixava que ele, Maria, caísse suave e gentil, como lhe era da índole afetiva, nos braços de Rose Rondelli ou a quem estivesse jurando amor eterno.

O Adamastor que Maria me apresentou outrora e irrompeu de novo na esquina de Copacabana tem como único juiz a própria sensibilidade. Como nunca pegou num mensalão, nunca recebeu iPod de gravadora, nunca aceitou convite para o bufê de primavera do Othon Palace, nunca viajou de graça para congresso no Marrocos, ele obtempera contra o que lhe der na telha. Nem aí. Atira. Cuidaaaaaaaaado, Moreira!!

Ele acha que o bom cinema nacional de agora se deve aos garotos que vieram da publicidade careta e os reverencia por terem nos salvado dos velhinhos esquerdistas. Rabo preso nenhum, esse Adamastor. Um homem livre do politicamente correto e do incorreto também. Mete bronca. É puro como as escolas do quarto grupo, a feijoada da tia Surica, o reisado do Zé Ramos Tinhorão e as letras medievais do Ariano Suassuna – mas do jeito dele. Não lhe venha com nostalgia do frapê de coco do Simpatia. Adora a bagunça do Bracarense.

Adamastor detesta esse Brasil folclórico que o Sebastião Salgado toda hora vem dignificar com sua estética da miséria. Odeia esses ceguinhos enchendo a novela das oito com sua grandiosidade de princípios. Ele vai na Feira de São Cristóvão só para quebrar garrafinha de areia colorida do Ceará. Não suporta a demagogia esfarrapada que a Heloisa Helena faz com as roupas no plenário da CPI. O cara não é mole. Viu a Hebe Camargo se queixando, aos 80 anos, que não rola mais sexo em seu edredom. Pediu, enquanto comíamos um quibe na Galeria Menescal, que a referida senhora sossegasse o facho paulista e o talho capixaba.

Alguns dos perfis que Antônio Maria produziu de seu personagem no início dos anos 60 estão no novo livro do cronista, textos de humor sofisticado na obra de um autor que sempre foi colocado no nicho da melancolia. Adamastor se diz levemente emocionado com a homenagem – mas sem lágrima furtiva nem outro sinal que julga pertencer ao terreno da perobice. Continua intransigente, machão, essas coisas que ninguém exibe no jornal. Adamastor viu Lula passando a mão na cabeça do Dirceu e diz que perdeu a paciência com a Humanidade. Vai votar não no plebiscito das armas. Há muita Justiça ainda a ser feita com uma 45.

Graaande Adamastor. Continua o mesmo de quando me foi apresentado por Maria, séculos atrás, na redação de ‘O Jornal’. Está namorando a Violeta, dona de um restaurante de comida sincera em Botafogo, e a moça deve estar curtindo uma dobradinha para segurar o homem. Ele já interrompeu um caso de fixação sexual só porque a amada ganhou uma gata e botou-lhe o nome de Tambatajá, numa dessas manias brasileiras de festejar os primórdios e acariciar o tupi-guarani que existiria em todos nós. Arggh!! Adamastor implica sinceramente até com mulheres que se depilam em demasia, ‘um passadismo indígena reacionário’.

Recusa-se a ir a São Paulo pela mania que eles têm lá de chamar tudo de ‘Anhangá’ alguma coisa e ‘Ibira’ outras tantas. Acha que tudo não passa de anhangaburrice , ibirabesteira – e ia continuar atirando quando avistou uma passeata de funcionários em greve do INSS. O debochado foi atrás. Quicava, zombeteiro, numa perna só, como se imitasse o Brasil-Saci-Pererê do Aldo Rebelo.’