Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No Mínimo




CULTURA & POLÍTICA
Guilherme Fiuza


Domingos às terças, 11/01/06


‘A escalada da neurastenia é preocupante. As patrulhas estão à beira de um
ataque de nervos. Ninguém jamais viu sinal tão claro do armagedom do que
Gilberto Gil e Caetano Veloso espumando em público, trocando acusações sobre
stalinismo e totalitarismo. É o fim. Quem critica Lula é bombardeado por essas
milícias organizadas da internet, que te chamam de vendido e desejam que você
morra atropelado na próxima esquina. Quem argumenta que Lula não é ladrão é
metralhado pelas claques eletrônicas do PSOL e da direita, que, nos e-mails mais
serenos, levantam suspeitas sobre o seu caráter e sanidade mental. A mistura vai
ao forno do verão brasileiro com pelancas de governadora a céu aberto – a
deselegância transformada em arma de opressão (dos sentidos). Amém, Jesus, e lá
vem pancada abaixo da cintura da ala xiita do pentecostalismo.


Estão dizendo por aí que a saída é mergulhar na bolha nostálgica da bossa
nova, santificar JK e ficar enchendo a cara com o fantasma de Vinícius de
Morais. Mas os neurastênicos que não quiserem propriamente ficar jogando charme
para uma fotografia da Nara Leão, têm ainda uma ou outra saída no mundo dos
vivos. O espetáculo Repertório, o ‘cabaré filosófico’ de Domingos de Oliveira, é
uma das chances para quem quer dar um tempo desse Brasil pitbull.


O público ainda está se acomodando nos seus lugares, quando o dono do show
avisa que pode fotografar, e com flash. Também pode filmar, pode entrar no meio
do espetáculo, pode sair no meio, e quem se arrepender no bar ao lado pode
voltar de novo, com o copo de bebida na mão. Aliás, há um bar improvisado na
própria platéia, que serve até uísque. O espectador fica logo sabendo que está
autorizado a levantar de seu lugar durante a apresentação, passar na frente dos
outros para buscar sua dose e voltar. Pode também cutucar o vizinho para aqueles
comentários inadiáveis sobre a cena inacabada. E, por favor, nada de desligar os
celulares.


Com cinco minutos dentro do Teatro do Planetário, no Rio, a platéia percebe
que o Brasil nervosinho ficou do lado de fora. Antes mesmo de entrar já dá para
notar. O bilheteiro informa que ‘é 20 reais a inteira e 10 reais para amigo’. Se
o freguês informa que é amigo, assunto encerrado. Não há lista, conselho de
ética ou CPI para apurar se ele diz a verdade. E é melhor correr porque o
espetáculo parece estar começando. Mas não está. O espetáculo nunca começa. Ou
melhor, está sempre começando.


Quando os espectadores acham que estão instalados nos seus lugares, Domingos
sugere uma pequena rearrumação, para otimizar a ocupação do cabaré. O homem de
cinema, teatro e TV, de Todas as mulheres do mundo, Confissões de adolescente,
Confissões das mulheres de 30, Separações, etc etc, avisa que aquele é um
espetáculo de protesto. Protesto contra o monopólio dos cantores sobre o direito
de cantar em público. Ou seja, não ficará protocolo sobre protocolo em cena. E o
público vai reviver aquelas canções que ‘estava louco para ouvir e não tinha se
dado conta’.


Betty Faria chega no meio do espetáculo, o que é relativo, porque espetáculo
que não tem começo também não tem meio. E não há de ser nada, porque Domingos
acaba de interromper uma música no meio para reclamar com seu pianista que o
andamento está muito lento. Pára tudo, começa de novo. ‘Rain drops keep falling
on my head’, ataca o cineasta, recheando o tema de Butch Cassidy com alguns
‘larará’ nos trechos em que a memória falha. E já que o protocolo foi para o
espaço, uma senhora na platéia enche o peito e canta (bem) os versos finais da
canção, sobrepondo-se ao dono do show. Ele aprova e agradece.


O roteiro do espetáculo está rabiscado numa folha de papel no canto do palco,
ao lado do copo de uísque e dos óculos do protagonista. Ele explica que precisa
consultar a ‘cola’ porque o show, que se repete toda primeira terça-feira do
mês, na verdade nunca se repete. É sempre inteiramente diferente do que foi o
anterior, e do que será o próximo. Domingos vai caminhando e apagando suas
próprias pegadas. O cabaré quer mostrar a vida como ela é. Ou melhor, como ela
seria, se todas as convenções fossem subitamente revogadas.


Betty Faria já mudou de lugar duas vezes, a convite de Denise Bandeira, que
está na platéia mas está também no show. Ela e Dedina Bernardelli (‘a produção
não se responsabiliza pelo excesso de charme das atrizes’) reduzem a pó o tal
monopólio dos cantores sobre o direito de cantar. O maestro avisa: muitas cantam
melhor do que elas, poucas gostam tanto de cantar. E convida o público a ter o
prazer de vê-las tendo esse prazer. No cabaré, gostar não é menos importante do
que saber.


Dores de amores dominam boa parte do repertório de sambas, rumbas, choros e
canções ‘do tempo em que era bonito sofrer e fumar’. Vinícius de Morais aparece
numa composição escrita aos 15 anos de idade, onde já revela seu dilema
metafísico entre a loura e a morena. Mas o cabaré é filosófico, e uma famosa
letra de música pode ser falada por Domingos Oliveira sem a música, recitada
como um poema. ‘Fica uma merda, né?’, destrói o próprio Domingos, para então
demonstrar, com exatidão científica, o quanto a melodia carregou nas costas
aquelas palavras consagradas. Seus próprios poemas – ou serão postulados? –
também ganham densidade instrumental. Baixo, percussão e piano dramatizam o
desafogo: ‘mesmo quando soa mais arrebatada e louca, a vida é pouca!’


Não entendeu? Pode pedir ao cantor-filósofo para repetir. ‘Como é que é?’,
gritou José Mayer da platéia, após um vaticínio metralhado com certo desleixo
por Domingos. Ele repete. Evidentemente, com outras palavras, porque obra aberta
é isso aí. Paulo Betti chega a tempo de ver mais um começo do espetáculo, agora
já mais perto do fim, com a política dando as caras. Nada de comício, só um
fragmento da coluna de Arnaldo Jabor atirado no meio do salão: o choque da
mentira salvou 2005. ‘Jabor é um pensador brilhante, embora nunca me responda
quando escrevo a ele, e jamais tenha comentado um filme meu, ainda que eu tenha
mandado todos para a casa dele.’


É um milênio estranho, em que desabaram em seqüência as torres de Nova York,
o Estado brasileiro e a crise dos 70 na cabeça do dono do show. Ele não nega a
crise, mas a tira para dançar. Em seus muitos rodopios por entre as mesas,
sussurra no ouvido dela, imodesta e quase pornograficamente, que se sente com 14
anos. Confidencia que viu, pela primeira vez na vida, dois milhões de pessoas
estáticas e mudas olhando para o céu explosivo na virada do ano em Copacabana.
Teve uma única e instantânea certeza: aquilo era a raça humana revivendo o
momento da criação do universo. Ou seja: almas cheirando a talco, prontas para
recomeçar tudo outra vez. Deve ser isso que mata a crise de vergonha dentro de
um cabaré.’




MEMÓRIA / ANTONIO MARIA
Paulo Roberto Pires


Gente, cabeça, procura, 10/01/06


‘Foi Antonio Maria quem deu o mote, há mais de 40 anos. Como cronista genial
que foi, despachava a objetividade do jornalismo para seu devido lugar e, no
topo da pirâmide com que, dizem, se faz uma notícia, instalava a emoção. Com
esse método, criou uma série fascinante, ‘O romance dos pequenos anúncios’, que
consistia numa fórmula aparentemente simples: a partir da secura dos
classificados, imaginava o universo de dramas humanos que poderia desvendar um
pedido de empréstimo, o aluguel de um vestido de noiva ou, simplesmente, a
venda, urgente, de um apartamento.


Estes universos concentrados num tijolinho de jornal não têm endereço nem
época: podem estar perdidos numa edição da década de 1960 do ‘Última Hora’ –
onde, de fato, Maria os encontrava – ou em qualquer um dos números do ‘The New
York Review of Books’, a vetusta publicação literária que é uma referência por
suas compridas e intricadas resenhas e artigos mas, também, por uma impagável
seção de classificados que está lá, firme, 42 anos depois de sua fundação.


Sempre instalados nas duas últimas páginas do tablóide quinzenal, os tais
classificados desvendam um mundo muito particular. Os anúncios oferecem algumas
oportunidades de emprego em universidades e editoras, serviços de auxílio a
escritores iniciantes (desde aulas de estilo até edições independentes) e
inacreditáveis ofertas de aluguel: studio no Marais para períodos sabáticos em
Paris, villas na Toscana, apartamentos por temporada em Londres ou em Roma. Mas
o que interessa mesmo são as colunas ‘pessoais’ em que gente cabeça busca gente
cabeça para relacionamento sério e duradouro – ou apenas uma noite de bom papo.
É, os intelectuais também amam – e dão vexame.


Vejam a ‘bonita e elegante cinqüentona’, anunciante de dezembro. Define seu
estilo de vida numa frase: ‘dias em Wall Street e noites no Westside’. Ela é,
obviamente, bem sucedida, calorosa, relaxada, verdadeira e, vá lá, chegada a uma
aventura. O que quer esta mulher? ‘Um drinque ou um jantar com um cavalheiro
interessante de Nova York que seja seguro de si, ativo e ‘quasi-normal’ (sic).
Cartas para NYR Box 24005.


Aquela que se identifica, no e-mail como Marga3458 tem ambições mais
cosmopolitas. Ela é elegante e magra, ‘bonita por dentro e por fora’.
Divorciada, não tem medo de prazer. É aventureira no espírito, calma no jeito de
ser. Gosta de ‘aventuras no Terceiro Mundo’, torta de amora, ler ‘The Economist’
e de sonatas de Mozart. Também curte saborear tapas em Barcelona, trekking na
Turquia e galerias em Paris. Deixa o endereço eletrônico mas só para homens com
‘pendores intelectuais e bom coração’.


Imagine agora um advogado judeu, 58 anos, bem-sucedido profissionalmente,
emocionalmente estável e disponível, caloroso, gentil e aberto. Pois ele se deu
ao trabalho de escrever para a NYRB em busca de uma mulher entre 35 e 40 anos
que seja afetuosa e despretensiosa, com uma real profundidade emocional, senso
de humor, grande inteligência e um vasto leque de interesses. Suas intenções?
‘Sério relacionamento, casamento potencial e família’. Ah, sim, ele ‘ainda está
interessado em ter filhos’. É fundamental, no entanto, que a correspondência
inclua fotos.


Há quem não perca tempo com rodeios: ‘Cavalheiro, 60 e poucos anos, alto,
ativo, busca mulher de 45 a 55 anos para dividir sua casa e vida no sul da
França. Fotografias são apreciadas’. Ou ainda: ‘Homem, 81 anos, ativo, Sul da
Califórnia, busca mulher inteligente que goste de ópera, Mozart e Mahler, balé,
gatos, belas artes, cinema’. E ponto final.


Já Rose, talvez pela profissão, prefira falar mais de si. É uma artista
bonita e sofisticada, colunista de jornal. Democrata ‘com um sorriso feliz’,
viajada, pode vestir jeans ou vestidos de noite, ‘mas prefere o jeans’.
Divorciada – com as crianças morando fora. Jovem – ‘ninguém acredita que eu
possa ter netos’. Gosta de viajar para a Europa e o Terceiro Mundo (pelo jeito,
um must intelectual) e ama passar o verão no Maine. O que ela busca? Um homem
bem-sucedido, brilhante, que tenha entre 59 e 72 anos. Só isso.


Sem comentários: ‘Versão humana e feminina das Minas do Rei Salomão: um
tesouro escondido, difícil de encontrar, mas que compensa os riscos da expedição
por Manhattan. 63 anos, divorciada, beleza com cultura e cérebro, esperando por
um aventureiro, em forma, 60-70. Foto, por favor’.


E como as formas de satisfação costumam ser infinitas, um outro anúncio, da
linha minimalista, é um primor: ‘Octogenário resmungão busca correspondente.
Vamos criticar tudo!’.


O Maria, é claro, estava certo: cada pequeno anúncio dá, mesmo, um romance. E
daqueles complexos, com tramas paralelas, referências intelectuais, personagens
angustiados e uma forte, fortíssima dose de solidão. Pois haja Mahler, viagens
ao Nepal e literatura para preencher os vazios postos no balcão dos
classificados. Quem disse que a dor da gente não sai no jornal?’




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