GUERRA DAS CHARGES
Corta o cabelo dele, 15/02/06
‘Os ocidentais estão dizendo por aí que as charges de Maomé como homem-bomba eram de má qualidade. Além do mais, eram de mau gosto. Mas ressalvam que os dinamarqueses já se desculparam. Portanto, a liberdade de expressão pode seguir em frente. O Ocidente pirou. Em defesa do humor, demonstra ter tão pouco humor quanto os muçulmanos que não aceitam ver o profeta com um explosivo no turbante.
Bom gosto e talento nunca foram pré-requisitos para a liberdade. No início dos anos 60, John Lennon desenhou Cristo tendo uma ereção na cruz. Foi ignorado. Mais tarde, quando disse que os Beatles estavam se tornando mais populares do que Jesus, também foi ignorado. Meses depois da tal entrevista (assim como aconteceu agora com as charges), a declaração caiu em mãos de gente que vive à espera de uma briga, de um antagonismo, de uma razão para transformar fé em ódio. Sempre existiram, sempre existirão, em qualquer parte do mundo, em qualquer religião ou etnia. Aí vieram as labaredas, o quebra-quebra, o show de obscuridade.
É isso que o mundo está assistindo agora: mais um show de obscuridade, programado e fermentado por um bando de almas penadas, cuja infelicidade não é social, nem religiosa (o que até simplificaria o problema). A raiz do recalque é mais cultural e afetiva (‘pessoa nefasta, vê se afasta teu mal, teu astral que se arrasta tão baixo no chão’, escreveu Gilberto Gil), são espíritos obesos impregnados por uma coleção de vivências frustrantes, nada que um sociólogo possa resumir num enunciado brilhante.
A reação a uma explosão cega dessas não pode ser à altura. Você é a favor da fé ou da liberdade? Quem está certo, o chargista ou o líder espiritual? O Ocidente ou o Oriente? Nada disso existe, assim como não existe choque cultural algum, muito menos encruzilhada antropológica. A guerra das charges simplesmente não pode ser levada a sério, embora tenha se transformado num problema sério. Mas a gravidade do problema decorre exclusivamente do grau de violência a que se chegou – e violência, como se sabe, não precisa de causas profundas para se alastrar.
Os grandes jornais americanos não reproduziram as charges polêmicas, o que é uma omissão jornalística. O governo americano reprovou a publicação dos desenhos na Dinamarca, o que é um absurdo. Mas em alguns jornais americanos e europeus apareceram charges ironizando os próprios chargistas, e a temporada de caça aberta contra eles. Essa é a única resposta possível. Contra a falta de humor, mais humor.
O contrário disso é a iniciativa do governo iraniano de patrocinar um concurso de charges sobre o holocausto. Nunca se viu algo parecido na história. Humor encomendado como forma de vingança. Humor para ninguém rir. Os talibãs, quando proibiram a música, a arte e a beleza, não tiveram uma idéia tão eficaz contra a vitalidade da civilização. Não pode haver nada mais macabro do que seqüestrar o humor, colocar uma espada no seu pescoço e distribuir um vídeo pela Al Jazeera mostrando a graça subjugada pelo ódio.
Maomé, Cristo, Buda ou quem quer que seja podem ser desenhados por quem quiser, como der na telha do desenhista. Mau gosto, falta de talento e espírito de porco serão punidos naturalmente por sua própria estupidez, nunca se ouviu falar de uma guerra santa para caçar idiotas. Mas se os ilustres embaixadores da liberdade de expressão continuarem jogando gasolina no debate, tratando um espasmo de rancor como choque cultural, os seqüestradores do humor vão acabar acreditando na sua tática.’
Zuenir Ventura
Alá, meu bom Alá!, 14/02/06
‘Como todo mundo, continuo meio desnorteado diante da dimensão que assumiu a crise das charges. Alguns mistérios permanecem, como o fato de que, numa época de comunicação instantânea, os doze cartuns sobre Maomé tenham levado quatro meses para produzir efeitos – e que efeitos! E por que de repente, quase de um dia para o outro, foram despertar a fúria e causar mortes em lugares tão distantes da Dinamarca, de onde originaram? E como um pequeno jornal de Copenhague, do qual nunca se ouvira falar, foi capaz disso?
Várias respostas têm sido tentadas. Fala-se em ‘choque de civilizações’ – de um lado uma cultura essencialmente religiosa que reverencia acima de tudo o sagrado, incluindo seus símbolos; e de outro, uma cultura laica que cultiva em primeiro lugar valores democráticos como a liberdade de expressão. De certa maneira, o destino do mundo depende de como essas diferenças serão respeitadas de parte a parte.
É fácil condenar hoje o inconveniente editor do tal ‘Jyllands-Posten’ pela falta de sensibilidade, por não perceber que estava sendo sacrílego com a fé de um povo. Seu jornal não tem manual de redação avisando que não se deve ofender crenças religiosas? Será que ele não sacou que ao publicar um desenho de Maomé com uma bomba no turbante estava associando a imagem do profeta ao terrorismo, cujos adeptos, como se sabe, são uma minoria que usa o nome do profeta para matar? Tudo indica que não, que ele jamais esperou que sua irresponsabilidade de mau gosto iria provocar essa guerra santa, essa jihad global.
Fico pensando no Brasil e dou graças a Deus e a Alá por não termos pelo menos esses problemas. Aqui se costuma misturar sem maldade o sagrado e o profano, assim como se misturam árabes e judeus. Na semana passada, publiquei no ‘Globo’ letras de algumas marchinhas carnavalescas de outros tempos. Uma, acho que ainda conhecida, cantava: ‘Olha a cabeleira do Zezé/ Será que ele é?/ (…) Será que ele é Maomé/ Parece que é transviado/ Mas isso eu não sei se ele é’. Outra é a famosa ‘Alá-lá-ô-ôôô/ Mas que calor ôôô’.
Lembrei também o filme ‘Vou te contá’, de Alfredo Palácios, lançado em plena era JK. Nele, os Demônios da Garoa interpretam a música, vejam só, ‘Harém do Maomé’, de Arnaldo Rosa e Lino Tedesco. Os integrantes do conjunto aparecem sentados em um harém, de onde o intérprete requisita por telefone uma mulher: ‘Alô, alô!!/ Quem fala?/ É do harém do Maomé?/ O papai pediu pra mandar/ Uma nega que me faça cafuné’. Pode ser mais politicamente incorreto com os muçulmanos e com os negros?
Os símbolos cristãos também não escapam às brincadeiras numa terra em que um bloco carnavalesco se chama Suvaco de Cristo. Cresci ouvindo piadas sobre Jesus. Em uma, a mais manjada, ele está na cruz e diz: ‘Hoje não, Madalena, hoje tou pregado’.
Já se reconheceu que o jornal dinamarquês exagerou – não o país (que por azar tem uma cruz na bandeira). Desculpas já foram pedidas, inclusive pelo governo, sem que tenha diminuído a fúria dos protestos. O que não se pode, em nome da liberdade de crença, é tentar botar fogo na liberdade de imprensa. Por isso recorro à marchinha de Haroldo Lobo e Nássara (com o refrão ‘Alá-lá-ôôô’ atribuído ao descendente de árabe David Nasser): ‘Alá, meu bom Alá/ Mande água pra Ioiô/ Mande água pra Iaiá’. E mande sobretudo um pouco de tolerância para seu povo e para todos nós.’
INTERNET
A voz das buscas, 14/2/06
‘Toda vez que há a transição de um ano para o outro nos deparamos com retrospectivas, análises, previsões, jogos de búzios, mandingas, carteado e afins. Tudo na tentativa de entender o passado e antever o futuro. A metodologia utilizada para tais conclusões pode cobrir desde o mais safado achismo até dados científicos, colhidos da mais justa e comprovada experiência do homem, passando por mães-de-santo e algoritmos bíblicos históricos. Portanto, cabe a nós definir a nossa lógica para o estudo do que se foi – e, quem sabe, tentar definir uma tendência em vigor.
Considerando que pesquisas apontam que 90% dos internautas utilizam-se regularmente de mecanismos de busca – metade deles visitam tais serviços mais de uma vez ao dia – e que o Google é o maior deles, não seria má idéia utilizar o resultados de suas buscas como forma de entender o que os usuários têm procurado na internet, certo? Pois é aí que entra o endereço do Google Zeitgeist, que traz as palavras mais digitadas em seus sistemas no ano passado – termos com conotações sexuais ficaram de fora. (Apenas para efeito de curiosidade, a palavra Zeigeist vem do alemão e quer dizer ‘o espírito (Geist) do tempo (Zeit)’, e procura englobar padrões culturais e intelectuais de um período, de uma era. No caso do Google, a intenção é a mesma, utilizando-se dos padrões das buscas para caracterizar um período de tempo.)
Foram elas:
1. Myspace – nenhuma descrição seria mais adequada do que ‘um Orkut melhorado onde os gringos são a maioria’.
2. Ares – programa para troca de arquivos P2P (‘peer to peer’).
3. Baidu – sim, é um portal chinês onde destacam-se seu sistema de buscas por conteúdo de todos os gêneros e alguns serviços de comunidade.
4. Wikipédia – tão falada e batida enciclopédia produzida pela índole colaborativa do ser humano.
5. Orkut – não menos manjado que o endereço acima, é o álbum de figurinhas oficial de todo o brasileiro na internet.
6. iTunes – software da Apple próprio para download e administração de músicas e vídeos.
7. Sky News – rede de TV a cabo inglesa com sede em Londres.
8. World of Warcraft – site oficial do game para PC desenvolvido pela renomada Blizzard.
9. Green Day – banda de (punk) rock norte-americana nascida em 1988, mas que despontou em meados dos anos 90.
10. Leonardo da Vinci – seria patético apresentá-lo.
A relação endossa a procura cada vez maior e mais batida por serviços de comunidades e relacionamento online. MySpace e Orkut são, na essência, idênticos, apesar do primeiro ter mais funcionalidades e uma aceitação bem maior no Estados Unidos e o outro carregar o fardo de ter sua participação tomada em mais de 73% por brasileiros. O MySpace fica na 13ª posição entre os mais visitados segundo o Alexa, empresa do grupo Amazon.com que mede a audiência da web a partir de um barrinha que o usuário instala em seu browser. Já o Orkut aparece na 79ª – vale destacar que o programa não é muito usado entre os brasileiros.
O Ares é outro indicador de que a internet tem fortes alicerces na distribuição de conteúdo multimídia – músicas, vídeos (filmes), programas etc. Se no passado alguns poucos internautas ficavam dependurados em servidores FTP, a arquitetura P2P (ponto-a-ponto) fez com que cada usuário conectado pudesse compartilhar seus arquivos, sem depender de servidores naturalmente centralizadores. Se o controle do que trafega era complicado antes, com o modelo ficou infernal.
Abaixo temos o Baidu, prova de que não há como fechar os olhos para o imenso mercado chinês. O site aparece como o 4º mais visitado pelo Alexa e é chamado de ‘Google da China’. Seus papéis são negociados na Nasdaq (código BIDU) desde agosto de 2005 mas, ao contrário da popularidade do seu nome, não vem tendo bom desempenho. Dentre os serviços que oferece, destaca-se a busca por arquivos MP3, já que no país não há leis proibindo a disponibilização de músicas online. Apesar de todo o esforço, ele vem perdendo espaço local para o próprio Google.
E lá está Wikipédia, a palavra da moda e das capas de revista do ano passado. Apesar de infindáveis debates acerca da consistência das informações que publica, trata-se de numa incrível enciclopédia colaborativa, produzida por seus usuários. Nasceu em 2001 e tem versões em 215 idiomas e só em inglês são quase 1 milhão de artigos online. Assim como outros representantes da lista dos 10 maiores aqui, a Wikipédia também sofre por ser um serviço gratuito e estar abarrotado de visitas, o que implica em altos custos com hardware e software. O jeito foi criar uma página aceitando, sem cerimônias, todo o tipo de doações dos visitantes. É o 23º no Alexa.
Mais uma brilhante criação do nobilíssimo Steve Jobs, CEO da Apple, não há como separar a procura por iTunes em função do sucesso do iPod. Ele é um pouco de tudo: tocador e organizador de áudio e vídeo, loja online, rádios, além de ter suporte para assinaturas de podcasts e vídeo podcasts. O pulo do gato está no fato de ser o programa oficial para administração dos arquivos que um usuário pretende manter no seu iPod. A liderança da empresa da maçã no segmento é tão gritante que fez o microsoftiniano Bill Gates anunciar que em breve sua empresa fará frente a esta hegemonia.
Intrigante, porém não menos merecida, a presença de ‘World of Warcraft’ na lista. Ele é o quarto jogo da série Warcraft, lançada em 1994. O game pode ser encaixado na categoria MMORPG, o mesmo que ‘massively multiplayer online role-playing game’, ou o mesmo que ‘uma interminável partida de RPG na internet contando com a participação de um ainda mais absurdo número de jogadores’. Mais de 5,5 milhões de pessoas fazem parte dessa jogatina. Considerando-se que em 2005 o título foi lançado em importantes mercados e em línguas diferentes, sua procura no Google deve ter sido realmente intensa.
E, por último, vemos Sky News, Green Day e Leonardo da Vinci como grandes produtos da mídia. A primeira consiste na rede de TV a cabo com grande presença na Europa que passou por grande reformulação no ano passado, incluindo a transmissão no formato widescreen (16:9). Green Day levou o Grammy 2005 e provou que o rock ainda está vivo. Suas qualidades, suas críticas ao governo Bush e uma grande turnê também merecem registro para analisar sua marca dentre as mais procuradas. E como não associar Leonardo da Vinci ao livro ‘O Código Da Vinci’, fenômeno de popularidade e responsável por criar um incrível culto ao redor do mestre das artes e de monumentos históricos envolvidos em sua trama?
A lista fala por si só. Mas não deixa de ser curioso o fato de que os serviços exclusivamente online que nela constam vivem na corda bamba, sem contar com boas linhas de receita. Essa constatação é perigosa e tem a ver com aquela velha máxima de que na internet tudo é de graça. Será que deveria ser?
Há saída. Que o diga o modelo de mensalidade cobrada para jogar Warcraft com os demais participantes, que emplacou. O iTunes também, apesar de ser projetado para atender e alavancar a venda do iPod.
Pagar pode ser fundamental para exigir qualidade dos serviços consumidos online. Mas a mudança passa por novas considerações da cultura cibernética, que crê piamente que algumas maravilhas tecnológicas nascem em árvores. É hora de reengenharia.
Ah, e sobre prever quais serão os itens mais procurados em 2006, melhor só garantir que será o Google, mais uma vez, o endereço mais acessado do gênero.’
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