U2 NO BRASIL
Bono zero, 22/2/06
‘Como ativista político, Bono Vox é um grande cantor pop. E vem confirmar,
nesta passagem pelo Brasil, o dilema cada vez mais desconfortável que ronda o
show business: as causas sociais precisam das grandes estrelas, ou são as
grandes estrelas que precisam das causas sociais?
Recentemente, o inglês Bob Geldof se superou. O ator-músico que se
imortalizou no cinema vivendo o protagonista da ópera ‘Pink Floyd – The Wall’ e
depois virou militante profissional contra tudo de ruim que esse mundo tem, deu
sua cartada de mestre. Conseguiu colocar a nata do pop no altar da solidariedade
com um simples trocadilho. Seu famoso movimento Live Aid foi ressuscitado como
Live 8 (rima rica) para fazer contraponto à reunião do G-8, o grupo dos países
mais ricos. A mensagem era mais ou menos essa: eles estão falando lá dentro em
defesa dos ricos, nós estamos cantando aqui fora em defesa dos pobres. Nunca foi
tão fácil ser bonzinho.
Evidentemente, os pobres de verdade não escutam nem um acorde desse concerto
emocionante. Dessa vez, nem arrecadação de dinheiro com venda de ingressos
houve. Ficou tudo no terreno do simbólico, da sutileza. A mensagem vai se
espalhar, os homens de boa vontade vão se comover, o apoio chegará aos
institutos e ONGs de Geldof e seus amigos e toda essa bondade desaguará nas
paupérrimas aldeias africanas. E os popstars internacionais, alguns sem agenda,
outros sem disco, outros apenas decadentes, voltam para casa após o sacrifício
de aparecer para o mundo inteiro em mais um show épico em defesa dos
oprimidos.
Quem melhor assumiu a cara-de-pau desse tipo de iniciativa foi John Lennon,
em 1969. Marketeiro, mas anarquista demais para manter a coerência, acabou
praticamente admitindo que procurara um pretexto para o grande gesto rebelde de
devolver a condecoração de Membro do Império Britânico. Na justificativa
apresentada à Coroa e divulgada para a imprensa, o beatle informava que estava
devolvendo a medalha por causa do papel nocivo de seu país nos conflitos em
Biafra, na Nigéria e porque sua música nova, ‘Cold Turkey’, despencava
violentamente nas paradas de sucesso.
Bono Vox chegou ao Brasil exaltando o papel do presidente Lula no combate à
fome no país e no mundo. Em seguida, anunciou que doaria sua guitarra ao
programa Fome Zero. Bono deve estar mesmo há muito tempo sem ler jornal. O que
aconteceu com a cruzada mítica do governo popular do Brasil contra a pobreza já
cansou de sair no ‘New York Times’, no ‘Guardian’ e na ‘Economist’. Talvez o
astro devesse ter sido levado diretamente ao município baiano de Teixeira de
Freitas, aquele onde o Bolsa Família contemplava dono de botequim e filha de
fazendeiro.
Até Lula já desistiu de ser esse símbolo que Bono quer que ele seja. O
ex-operário já parou há muito tempo com essa brincadeira de encarnar o Padre
Cícero. Pôs os pés no chão, livrou-se dos auxiliares que queriam transformar o
governo em ante-sala do partido, identificou os setores da administração que
estavam funcionando por baixo da mitomania, fixou-se nos resultados produzidos
por eles e está a um passo da reeleição. Há quanto tempo não se ouve Lula falar
de ‘Fome Zero’?
A bondade de Bono Vox é quase uma gafe. Ninguém em Davos, nem no Fórum Social
chavista, ou em qualquer lugar do mundo fala mais em Lula como o salvador dos
pobres. Descobriram que ele tinha muita vontade e pouco plano. Aí não vale. Nem
contar os pobres o governo Lula mostrou saber. O ministro Ananias – outro sumido
de cena – chegou a afirmar que não importava checar a freqüência escolar dos
beneficiários do Bolsa Escola, que o importante era mandar o dinheiro logo para
os necessitados. É a bondade em estado bruto. Sem falar no tempo que o professor
Graziano levou para descobrir em que conta deveria depositar o cheque de Gisele
Bundchen para o Fome Zero. Nesse ramo, uma dondoca da sociedade seria bem mais
eficiente que os PhDs do PT.
Um popstar internacional em busca de uma causa é sempre algo um pouco
constrangedor. Se está sem imaginação, é preferível ir no feijão com arroz:
veste uma camisa da seleção brasileira, grita ‘Mengo’ ou ‘Timão’, manda um beijo
pro Jamelão da Mangueira e segue em frente. Ir beijar a mão de Lula no palácio,
a esta altura dos acontecimentos, não fica muito bem para um justiceiro
planetário. Terão falado sobre mensalão enquanto aguardavam os quitutes de Dona
Marisa? ‘Bloody Sunday’ é isso aí. Enquanto isso, o líder dos Stones ia
conversar com os professores da escola do filho brasileiro. Enfim uma causa
verdadeira. Mick dez, Bono zero.’
DESPERATE HOUSEWIVES
Carla Rodrigues
Caos e desespero, 20/2/06
‘Todo mundo tem a ilusão de viver uma vida plena. Todo mundo? Bem, a cultura
ocidental trabalha com esse conceito de pleno – totalmente feliz, satisfeito, em
comunhão com os princípios e valores da vida. Essa idéia de plenitude faz com
que se queira afastar tudo aquilo que atrapalha, impede, cria obstáculos para
‘chegar lá’. No entanto, o fluxo natural da vida traz, junto com alegria,
satisfação e realização, problemas que exigem solução. Problemas que insistem em
nos retirar do mundo perfeito e ideal e nos jogam na dura realidade da vida – é
preciso ultrapassar contratempos, enfrentar conflitos, superar os transtornos do
dia-a-dia.
É nesse paradoxo que reside o aspecto mais interessante da série de TV
norte-americana, Desperate Housewives, que o Canal Sony exibe nas noites de
quinta-feira e reprisa nas de domingo. Todas as personagens são mulheres que
deveriam viver num mundo perfeito de grandes e confortáveis casas sem muros, com
seus gramados impecáveis, seus automóveis reluzentes na garagem, em dias quase
sempre ensolarados (há uma nítida distinção de iluminação entre a claridade da
rua Wisteria Lane, onde todas moram e são vizinhas, e os ambientes internos das
casas, sempre mais escuros).
Bree, Gabrielle, Lynette, Susan e Edie passaram toda a primeira temporada
assombradas pelo fantasma da amiga Mary Alice, a narradora, que se suicida no
primeiro episódio e deixa perdidas as amigas, que não entendem o gesto de
desespero. Mãe e dona-de-casa de uma família aparentemente feliz e perfeita,
Mary Alice morre num universo em que tudo deveria celebrar a tal vida plena.
Todas as mulheres ‘têm tudo para ser feliz’. Olhando mais de perto, o que se vê
é que não é bem assim.
O melhor exemplo é Bree Van de Kamp, casada com Rex, um médico bem-sucedido
com quem ela tem dois filhos. O mundo perfeito de Bree desmorona fácil: descobre
que seu filho é gay, seu marido tem aventuras extra-conjugais para dar vazão aos
seus desejos sexuais sado-masoquistas, sua filha não pretende casar-se virgem,
para aumentar o desespero da mãe republicana. A segunda temporada começa com o
funeral de Rex, que morreu por não ter tomado corretamente os remédios do
coração. O farmacêutico, apaixonado por Bree, adulterou os comprimidos,
informação da qual ela ainda não dispõe. Aquilo que seria pleno na vida Bree não
passa de uma obsessão pela perfeição – nesse aspecto, a personagem me parece a
mais emblemática da série justamente por encarnar tão bem o ideal de organização
e limpeza de uma dona-de-casa.
O pequeno universo particular de Bree deve estar impecável. Seu sofrimento
vem justamente desse ideal impossível – o mundo real não é passível de arrumação
e a realidade está sempre e inexoravelmente desarrumada. Meu ponto é justamente
esse: é óbvio que a plenitude, a perfeição e a felicidade são ideais
inalcançáveis. Essa ‘arrumação’ simbólica que Bree representa na sua ansiedade
de ver tudo no seu perfeito lugar é uma forma de frustração profunda, caminho
direto para o sofrimento. Além de Bree, todas as outras personagens experimentam
essa dicotomia.
Lynette, a mãe de quatro crianças, não consegue suportar ficar afastada do
mercado de trabalho, mas tudo indica que vai sucumbir ao modelo invertido. A
segunda temporada começa com seu marido fazendo o papel de dono-de-casa e ela
conseguindo um bom emprego depois de demonstrar, numa cena hilária, que era
capaz de trocar a fralda da filha ao mesmo tempo em que tinha ótimas idéias para
melhorar o desempenho da empresa. Parábola genial para as qualidades femininas
de multifuncionalidade, atributo tão incompreendido pelos homens.
Susan, separada, mãe de uma adolescente super-responsável, encontra em Mike o
que seria o homem da sua vida. Apaixona-se pela primeira vez desde que pediu o
divórcio, traída pelo marido, mas descobre que o lindo Mike está enfiado numa
trama de drogras, assassinato e seqüestro que estão ligados à morte de Mary
Alice e ao passado nada perfeito do encanador da casa da frente.
Gabrielle, a que sempre sonhou em ter uma casa rica e confortável ao lado de
um marido que a sustentasse, é a personagem mais fácil de decifrar: sua
felicidade está ancorada apenas em valores materiais, que nunca são suficientes
para deixá-la feliz. Sobretudo porque o marido está envolvido com problemas com
o fisco e já esteve preso duas vezes. Tudo que Gabrielle teria para preencher o
vazio de sua vida – casa, carro, dinheiro – é obviamente insuficiente. O mais
interessante na personagem é sua aversão absoluta à maternidade, desejo
exclusivo do marido. E ótima a jogada de mostrar uma mulher que não tem a menor
intenção de dar sentido à vida a partir de um filho.
Cada uma a seu modo, as donas-de-casa desesperadas são uma tentiva de fazer
na vida o que Bree faz em casa: arrumar o caos, ordenar o real e tentar a todo
custo encaixá-lo no modelo de perfeição. Mas esse modelo é uma idéia
pré-concebida, não uma ordem na realidade. O que traz o sofrimento é a idéia que
fazemos de que existe uma forma de ordenar a realidade segundo as nossas
expectativas e conveniência. Não existe. É claro que criamos essa ilusão – como
criamos tantas outras.
Dois best-sellers do psiquiatra Irvin D. Yalom, ‘Quando Nietzsche chorou’ e
‘A cura de Shopenhauer’ trabalham com a união entre psicanálise e filosofia na
tentativa de oferecer formas de aplacar o desespero humano. Em cada uma das duas
narrativas, há pelo menos dois personagens em desespero, e cada um deles vai
partir para um tipo de solução. Incorporar os problemas, o desespero e o caos
como parte constituinte da existência não é simples, sobretudo para o ocidental
educado com ideais de sucesso, de alcançar metas, de ‘chegar lá’.
Nesse ponto, a visão oriental muitas vezes pode oferecer mais do que as
simples oposições entre feliz x infeliz, fracasso x sucesso. A vida é sempre
mais complicada do que isso. Enfrentar o caos do real ao invés de supor que é
possível afastar-se plenamente do sofrimento indesejado, da dor, e da angústia,
talvez seja a única forma de não entrar em desespero. Mas aí vem a pergunta mais
ou menos óbvia: como enfrentar o caos sem entrar em desespero? Desejo é caos.
Fugir dele é fugir da inexorável roda da vida, que ora nos oferece alegria, ora
tristeza, mas que sempre só será vida enquanto estiver em
movimento.’
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