Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

No Mínimo

CRÔNICA
Zuenir Ventura

Encantos x progresso, 30/5/06

‘São onze horas de sábado e eu estou diante do ponto mais oriental das Américas – aquele de onde, se eu me lançar ao mar e seguir em linha reta, chegarei à África, se alguém não me acudir na segunda braçada. Trata-se de Cabo Branco, em João Pessoa, na Paraíba, uma das partes mais cobiçadas pelos exploradores e corsários até mesmo antes da Descoberta. ‘A terra é a mais liberal de todas do mundo’, escreveu em ‘Diálogos das Grandezas do Brasil’ um coleguinha cronista ultramarino que esteve por aqui uns quatro séculos antes de mim, um tal de Ambrósio Fernandes Brandão.

Não sei se é porque sou de um país que não tem História – ou melhor, tem mas não a cultiva – toda vez que me encontro em algum sítio histórico como esse fico tocado por um compreensível sentimento do passado. Senti a mesma coisa quando há anos conheci o ponto mais ocidental da Europa, o Cabo das Rocas, em Portugal, de onde eu poderia mergulhar e sair nos EUA, e quando avistei o Cabo da Boa Esperança, lá no extremo sul da África, o ex-Cabo das Tormentas. Não tive como não me lembrar do episódio do Gigante Adamastor dos Lusíadas.

Por serem postos avançados, o assédio dos invasores em geral começa por eles. Em frente a este diante do qual estou agora travaram-se memoráveis batalhas marítimas contra os invasores holandeses, se é que aprendi direito a aula que me dá um de meus cicerones, grande conhecedor da história local. Ele fala com entusiasmo da chamada ‘pequenina e heróica’ Paraíba, que é mesmo tinhosa: além de participar de várias guerras libertárias, teve que sobreviver enfrentando a seca que sempre rondou grande parte de seu exíguo território.

Além dos exemplos passados, a Paraíba viveu dois momentos decisivos na história política contemporânea, quando João Pessoa transformou-se no mártir da Revolução de 30 e quando José Américo – o escritor que inaugurou o romance regionalista, com ‘A bagaceira’ – rompeu a censura em 1945, na ditadura de Vargas, com uma corajosa entrevista a Carlos Lacerda que ajudou a derrubar o ditador.

Falta à Paraíba um bom esquema de marketing. Ela tem atrativos que a gente acha que só encontra em outras paragens nordestinas – belas praias, rico folclore, artesanato. Só que não se sabe. Eu, por exemplo, desconhecia que a Igreja de São Francisco era ‘a mais linda do Brasil’, na opinião de Mário de Andrade. Pude ver a fachada, realmente uma jóia do barroco tropical. Mas não por dentro porque ela fica fechada de meio-dia às 14h. Como pode atrair visitantes uma cidade que fecha suas igrejas na hora do almoço de um sábado? O resultado é que o movimento turístico em Natal, Fortaleza, Recife é de dar inveja à pequena João Pessoa, com sérias repercussões em sua pobre economia.

Por outro lado, isso é bom. Como não é um pólo de atração, a cidade conserva-se mais ou menos livre de pragas como a prostituição infantil. Soube que existe, mas não na escala das capitais vizinhas. Não vi na orla e nem nos hotéis o mesmo espetáculo deprimente.

Trânsito tranqüilo, violência sob controle, pouco estresse, possibilidade de morar em casas com segurança (uma bendita legislação impede edifícios nas praias acima de quatro andares) e um mar que não tem tamanho tornam João Pessoa uma cidade com ares de província, o que talvez seja o seu grande charme. O problema é como conciliar progresso com a preservação desses encantos.’



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