Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

‘Há quatro meses, a Câmara dos Deputados não vota. Não por falta do que votar, pois projetos importantes abundam em sua pauta: as Leis de Falência e da Biossegurança e o projeto das Parcerias Público-Privadas (pelo qual o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se empenha muito) são alguns exemplos de que não faltam tarefas a cumprir, mas ânimo para desempenhá-las. No começo, dizia-se que faltava tempo aos deputados federais, porque tinham de cuidar das eleições municipais em suas bases. Em teoria, um motivo justo, mas o segundo turno das eleições municipais foi realizado, em paz, no último mês de outubro, e novembro está acabando sem que a Câmara tenha votado 25 Medidas Provisórias encaminhadas pelo Executivo e que paralisam suas atividades.

Somente uma ingenuidade absurda ou uma caradura absoluta poderiam justificar o estranhamento, portanto, pelo desgaste na já péssima imagem que a instituição sempre teve e que, em períodos como este, só tende a piorar. Afinal, não faltam razões para tanto: para cumprir seu dever comezinho, os deputados exigem verbas orçamentárias para seus pleitos paroquiais (que não sejam contingenciadas, é claro) e benefícios do governo federal, que vão de concessões a amigos do peito e correligionários de confiança a gabinetes na Esplanada dos Ministérios. No entanto, esses senhores, que se habituaram à chantagem permanente como único garante de governabilidade, ainda acreditam que podem melhorar essa imagem perante os representados investindo dinheiro do próprio contribuinte em sua promoção individual ou corporativa.

Como os senadores, que pelo menos aprovaram duas ou três leis neste período de total inércia da Câmara, os deputados dispõem de um canal de televisão apenas para a divulgação de seus feitos e falas. Pode-se argumentar, em nome da justiça, que este é um importante instrumento da democracia, por permitir ao cidadão comum (desde que de posse de uma assinatura para a programação de televisão não aberta) acompanhar suas atividades sem ter de freqüentar as galerias em Brasília. Ou seja, neste caso específico, o dinheiro público pode estar sendo empregado em benefício também do representado. Mas, por idêntico critério de justiça, convém reconhecer que, além da transmissão das sessões que interessam à cidadania, o canal da Câmara promove seus membros quando estes não estão discursando ou votando. Desde a semana passada, a promoção da instituição também tem invadido os intervalos comerciais da televisão aberta para vender a imagem de uma Casa ágil, transparente e comprometida com a cidadania.

Além disso – e dos serviços rotineiros das emissoras de rádio e TV e das redações de jornal que, quando a Câmara trabalha e produz, têm todo o interesse em dar-lhe ampla cobertura, e um site na internet, nos quais se destaca a imposição diária do noticiário das atividades parlamentares na Voz do Brasil, criada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo de Vargas -, a Câmara dos Deputados agora passa a contar com uma revista. Com o pomposo título de Plenarium (palavra latina que designa os aposentos menos freqüentados do Congresso Nacional), com aspecto de pompa e luxo (ao custo de R$ 80 mil), o novo órgão de autopromoção, lançado no Museu do Ipiranga, em São Paulo, se propõe a divulgar as atividades legislativas. Pela pasmaceira em que anda a Casa ultimamente, não será fácil encontrar assuntos para cumprir sua tarefa de fazer ‘uma reflexão da inteligência nacional sobre o Parlamento’, anunciada no material para a imprensa distribuído na festa do lançamento.

Os jornalistas contratados para ‘relembrar o passado’ – um de seus objetivos, conforme o presidente João Paulo Cunha (PT-SP) – arriscarão suas ‘boquinhas’ para ‘discutir o presente’, abordando a paralisia da atividade legislativa provocada pelo debate sobre a reeleição dos presidentes das Mesas do Congresso? Registrarão o vexame de não ter havido ainda nenhuma reunião da comissão especial, criada em agosto, para discutir a quebra do monopólio estatal sobre medicina nuclear, que daria a milhares de brasileiros acesso a diagnósticos de câncer e problemas cardíacos, assunto de óbvia relevância abordado no noticiário político deste jornal? Vai ser difícil para a nova revista refletir uma boa imagem que a Câmara gostaria de ter e não tem, não por falta de divulgação, mas por escassez de pudor. Antes de divulgar, há que fazer.’



MÍDIA & ELEIÇÃO
Carlos Chaparro

‘Enganação com dinheiro público’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 24/11/04

‘O XIS DA QUESTÃO – Esgotada a festa dos milhões gastos em propaganda eleitoral, resta ao cidadão o doloroso retorno à realidade dos problemas em que vive atolado. Se fizermos a comparação entre o que se disse na propaganda paga e o que a realidade agora oferece aos cidadãos, chegaremos à inevitável conclusão de que se gastou muito dinheiro público para enganar a população.

Aqui em São Paulo, ao que parece, os cofres se esvaziaram depois da gastança eleitoral. São cada vez mais evidentes os sinais da redução na capacidade de resposta da administração pública às demandas da rotina – na saúde, na educação, no trânsito, na limpeza, na iluminação, na saúde, na segurança, na educação etc.. E se isso reflete uma situação de penúria que atinge os cofres e o ânimo da administração municipal, mais razões existem para que se questione e critique a opulência financeira das campanhas eleitorais.

Andando pelas ruas de São Paulo, fica evidente que o funcionamento da cidade vai de mal a pior, quer pelos serviços que se deterioram, quer pelas coisas que simplesmente faltam.

Cito dois exemplos, um simbólico, que vale pela significação, o outro, duramente objetivo, pois se refere um pesadelo pós-eleitoral que amargura a vida de milhares de pessoas.

O exemplo simbólico: na rua onde trabalho, os restos da propaganda suja do primeiro turno continuam pendurados nos postes de iluminação. E pelo que tudo indica, aí continuarão, como manifestação alegórica de um intolerável desmazelo público. Mas que, no plano simbólico, serve para iluminar a fraude da discurseira eleitoral de até um mês atrás, recheada de de coloridas ‘verdades’ retóricas.

Para o outro exemplo, poderíamos escolher alguma entre várias avenidas e ruas que, por falta de dinheiro ou de pagamento aos empreiteiros (o que dá no mesmo), tiveram interrompidos os trabalhos de recapeamento asfáltico. Em vez do asfalto novo prometido, e por causa da raspagem feita no piso antigo, e da ação da chuva sobre o piso descoberto, o que os moradores ganharam foi uma buraqueira infernal. E, pelo jeito, sem esperança de solução, a curto prazo.

Pelo que os jornais noticiam, pipocam, no município de São Paulo, as situações de ruptura na prestação de serviços em várias frentes da administração urbana, por falta ou atraso de pagamento às empresas contratadas. Até creches se queixam da falta de cumprimento das obrigações da Prefeitura. E nenhuma explicação é dada à população prejudicada. Quando questionadas, as fontes oficiais repetem frases de conveniência, que nada elucidam – coisas do tipo ‘os cronogramas de pagamento estão sendo cumpridos dentro das previsões’.

Em resumo: tanto na gastança eleitoral dos auto-elogios quanto nas evasivas de agora, usa-se a comunicação para enganar o povão.

E não falo de incoerências exclusivas da administração municipal derrotada. O vitorioso Geraldo Alckmin, que em tempos de campanha, e em anúncios bem pagos, tanto seus esquemas de Segurança, bem que poderia dar ordens à sua polícia (tanto a civil quanto a militar) para que adotassem o bom hábito de atender as solicitações de proteção contra abusos que ficam sem resposta, emperradas na burocracia ou simplesmente desconsideradas pela omissão.

Há trechos de ruas em certos dias da semana literalmente ocupados por bandos barulhentos, que incomodam e acuam os amedrontados moradores locais. Conheço de perto uma dessas situações. Nas noites da ‘ocupação’ (uma vez por semana), os moradores ficam até tolhidos no seu direito de ir e vir. A partir das vinte horas, não conseguem nem entrar com o carro na garagem das suas residência. Já apelaram para a delegacia do bairro, para todos os telefones da polícia, para o Departamento de Trânsito, para os órgãos responsáveis pelo controle do barulho – e nada! Ninguém liga a mínima para os clamores da cidadania desamparada. Certa vez, alguém conseguiu que um fiscal do Departamento de Trânsito fosse até ao local, para retirar um carro ‘ocupante’, que impedia o morador de entrar em sua garagem. Pois o agente da ordem fugiu, apavorado, dando ao morador a justificativa irrecusável: ‘Sozinho, eu não faço esse serviço. Tenho medo.’

No caso que eu conheço, a luta desses moradores pelo direito ao sossego e à segurança já tem mais de um mês. Mas o que prevalece, para desespero deles, é a omissão oficial.

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A comparação, entre o que o que se diz na propaganda eleitoral e o que a realidade oferece aos cidadãos, pode, sim, servir para julgarmos governos e governantes, aqueles em que votamos. Se o fizermos, chegaremos à inevitável conclusão de que se gasta muito dinheiro público para enganar a população.’



ARQUIVOS DOS PORÕES
Renato Strauss

‘Bastos diz que não há prazo para abrir arquivos’, copyright Folha de S. Paulo, 27/11/04

‘O ministro Márcio Thomaz Bastos (Justiça) afirmou ontem que o governo não irá ceder a pressões para liberar os arquivos da ditadura militar que estão sob guarda e sigilo do Estado. A decisão, disse ele, virá no tempo certo.

‘É uma questão que o governo vai resolver. Eu, pessoalmente, sou a favor da abertura. Estamos conversando, dentro do ritmo do governo, sem pressão’, disse ontem, na inauguração da maior delegacia de fronteira da Polícia Federal, em Dourados (MS).

Na próxima semana, continuou ele, haverá uma reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na qual o assunto será tratado.

‘Vamos [após isso] avançar na questão até chegar a um ponto que seja satisfatório para todo mundo. A idéia é fazer a abertura de arquivo com um mínimo de trauma possível.’

Começa na próxima semana o trabalho dos cinco deputados encarregados de propor o projeto de lei que regulamenta a abertura dos arquivos da ditadura.

A comissão, criada ontem na Câmara, não determinou prazos ainda. A primeira providência será discutir o tema com Thomaz Bastos, com o ministro da Defesa, José Alencar, e com o comandante do Exército, Francisco Albuquerque. Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP) será o relator. A comissão será presidida por Mário Heringer (PDT-MG).

Em Dourados, Thomaz Bastos enfrentou um temporal com ventos que arrancaram a cobertura da tenda sob a qual acontecia a solenidade de entrega de documento de posse da terra a 200 índios da aldeia Panambizinho. O ministro precisou sair correndo enquanto a estrutura desabava. Ninguém ficou ferido.

No meio da confusão, assessores começaram a gritar para que o ministro fosse retirado do local. Estava programado um almoço com os índios -que ficaram dançando na chuva, enquanto Thomaz Bastos partia em um ônibus. Colaboraram HUDSON CORRÊA, da Agência Folha, em Dourados, e LEILA SUWWAN, da Sucursal de Brasília O repórter RENATO STRAUSS viajou a Dourados a convite da Polícia Federal’



Osmar Freitas Jr.

‘Nós queremos saber’, copyright IstoÉ, 30/11/04

‘Os Estados Unidos da América têm uma das legislações mais democráticas sobre a obtenção e divulgação de informações contidas nos arquivos do governo. O Freedom of Information Act (Foia, iniciais em inglês de Lei da Liberdade de Informação) e o Privacy Act (Lei da Privacidade) são dois grupos de regulamentações que estabelecem os níveis de transparência das agências e departamentos ligados ao poder Executivo do país. Garantem a cada pessoa – americano ou não – o direito de requerer o acesso a conjuntos de dados mantidos pela burocracia do Estado. Não se trata, porém, de um direito absoluto, pois há várias exceções e exclusões naquilo que será divulgado. Deste modo, caso o Brasil houvesse adotado ao pé da letra os termos do Foia e do Privacy Act, talvez as Forças Armadas brasileiras não tivessem de passar pelo constrangimento de tentar barrar a revelação dos chamados ‘arquivos da ditadura’ referentes às atividades dos militares no período ditatorial (1964-1985). Mas, mesmo dentro de um sistema que pretende o máximo de abertura informativa aos cidadãos, existem brechas para o secretismo.

Somente no Foia estão relacionadas nove exceções e três exclusões às regras de liberação de documentos. Seguindo estes preceitos, os guardiões do arquivo da ditadura poderiam, por exemplo, invocar o primeiro artigo, que determina a possibilidade de rejeitar a divulgação de ‘material classificado’, ou seja: documentos que receberam ordem presidencial para ser mantidos em sigilo. O tempo de validade destes segredos, geralmente, é de dez anos, podendo ser extendido a mais 25 e a adiamentos iguais. Grande parte das informações sobre a política para a América Latina do ex-secretário de Estado Henry Kissinger (1974-1977) contidas nos arquivos do Departamento de Estado e da Casa Branca, por exemplo, foi reclassificada em 2003. Os dados, assim como o paradeiro de muitos oposicionistas assassinados no Chile e na Argentina nos anos 70, para citar apenas dois países, vão continuar desconhecidos. Também exemplar é a ordem presidencial de George W. Bush, que mantém ocultos documentos sobre armas de destruição em massa, que estão sob tutela do Estado.

Outra opção, ainda dentro das regras do Foia americano, para não abrir a caixa de Pandora da ditadura brasileira, seria a invocação de uma das três exclusões a divulgações de documentos do governo. Ela trata dos dados de inteligência e contra-inteligência do FBI e de assuntos relativos ao terrorismo internacional. Os militares que detêm o arquivo sobre as operações de contra-insurgência no Araguaia poderiam negar a revelação dos papéis alegando que tratam do combate ao ‘terrorismo internacional’, já que os guerrilheiros do PCdoB receberam ajuda externa em suas atividades.

‘O Foia e o Privacy Act não são perfeitos. Dão margem a muitos segredos e existe uma luta constante para modificar essa cultura. Cada governo que entra, seja democrata, seja republicano, tem agenda particular sobre esta questão e trata de dar sua interpretação sobre aquilo que pode ou não ser tornado público’, diz a advogada Sherill Engler, da American Civil Liberties Union, ONG de defesa das liberdades civis. ‘No governo Bill Clinton foi determinada a desclassificação de inúmeros documentos secretos. Parte dos arquivos referentes à Casa Branca de Richard Nixon – em que ele faz referências ofensivas a judeus, por exemplo -, veio à tona. Já o governo George W. Bush segue a linha do segredo. Pode-se dizer que, nesta administração, o Foia está sob assalto’, diz Engler.

Nem sempre os americanos tiveram essas liberdades. Até a aprovação do Foia, em 1966, o ônus de buscar o direito de examinar documentos de departamentos do governo cabia ao cidadão. Também não havia um guia mostrando às pessoas como obter essas informações, e quem tivesse seu pedido rejeitado não encontrava remédio jurídico para contestar. Com a criação do Foia, é ao governo que cabe explicar recusas de divulgações.

Em 1974 entrou em vigor também o Privacy Act, que garante liberação de documentos colhidos pelo governo sobre a vida de indivíduos. Foi a partir de então que se ficou sabendo do vasto arquivo mantido pelo FBI sobre personalidades como John Lennon ou o líder do movimento de direitos civis dos anos 60 reverendo Martin Luther King Jr. O bureau federal de investigações tinha até colocado escuta no quarto de hotel de Luther King para registrar os encontros sexuais extraconjugais do líder pacifista. Mas, mesmo no Privacy Act, existem exceções à total liberalização. O governo pode, por exemplo, determinar a não-divulgação do prontuário de um cidadão, caso o documento tenha recebido a estampa de ‘classificado’ ou seja parte de uma investigação criminal corrente.

Ambas as legislações sofreram modificações, como o Foia, por exemplo, que procurou regulamentar os procedimentos com relação a dados eletrônicos mantidos pelo governo. ‘Hoje é possível se obter tudo via internet, graças a esta emenda de 1996’, diz Sherill. E neste período uma série de escândalos e esclarecimentos históricos importantes surgiram em consequência destas leis. Foi em parte garimpando os arquivos governamentais americanos, por exemplo, que o escritor Edwin Black conseguiu revelar o envolvimento da empresa IBM com o regime nazista. No livro A IBM e o Holocausto, o autor conta como o sistema de computação criado pela firma dos EUA possibilitou a catalogação mais eficiente de judeus mandados para os campos de concentração ou extermínio. Também munido com o Foia, o mesmo Black escavou os nomes de outras companhias – como a Ford, por exemplo – que tiveram ligações fortes com o III Reich. ‘Infelizmente, nem mesmo o Foia tem sido capaz de desenterrar a verdade sobre a assimilação de cientistas que trabalharam para o nazismo ou para o império japonês. Sabe-se que muitos criminosos de guerra – gente que participou de pesquisas com armas biológicas, químicas e nucleares – foram cooptados pelo governo americano depois da guerra. Muitos documentos, no entanto, estão ainda com o carimbo de ‘secreto’. Mas o bom destas leis é que a história será contada no futuro. Todos os atos de governos americanos, desde o de Harry Truman (1945-1953), em que teriam sido feitos os contatos com nazistas e japoneses, até as atividades da administração de George W. Bush, um dia serão revelados’, diz Sherill Engler.’