VENEZUELA
Líder estudantil desafia Chávez
‘Uma das principais figuras da oposição na Venezuela não faz parte de nenhum partido político, ainda não saiu da faculdade e, recentemente, ganhou um prêmio de US$ 500 mil de um instituto americano por sua militância no país. Aproveitando o vácuo deixado pela falta de crença nas antigas classes políticas do país, o universitário Yon Goicoechea, de 23 anos, tornou-se a causa de mais uma dor de cabeça do presidente Hugo Chávez.
‘Entrei no movimento estudantil porque acredito ser possível mudar a situação degradante em que se encontra o governo de meu país’, afirmou Goicoechea ao Estado, por telefone. ‘Se os próprios jovens não acreditarem que podem mudar o futuro, quem vai acreditar?’
Goicoechea surgiu no cenário político venezuelano em maio do ano passado, quando articulou e liderou os protestos estudantis contra o fechamento da emissora Rádio Caracas Televisão (RCTV) – cuja renovação de concessão para transmitir por canal aberto foi negada pelo governo de Chávez e saiu do ar em 27 de maio de 2007. Desde então, o estudante do 5º ano de direito da Universidade Católica Andrés Bello (UCAB) organizou mais de 40 marchas, que reuniram cerca de 80 mil manifestantes cada, e mostrou para a Venezuela e o mundo que não têm intenção de parar sua ‘luta pela democracia’: Ele diz que chegou para ficar. ‘Quero continuar o trabalho que faço e, daqui a alguns anos, seguir carreira na política’, afirmou. ‘Mas esse projeto não é imediato, ainda não penso em me candidatar.’
Com a eloqüência de um político com anos de carreira, Goicoechea conquistou o apoio e admiração de milhares de estudantes, que não só participam das marchas convocadas por ele, mas também o auxiliam em seus projetos sociais e zelam por sua segurança. ‘Yon é um rapaz muito aplicado tanto na liderança estudantil quanto na área acadêmica’, disse a estudante de jornalismo Dariela Sosa, de 22 anos.
‘Ele consegue lidar de maneira muito satisfatória com questões difíceis.’ Dariela e Yon são dois dos três representantes da UCAB no Parlamento Estudantil Venezuelano – entidade que reúne as organizações de universitários do país. Foram seus ‘companheiros de militância’ que o abrigaram em suas casas quando, no fim do ano passado, Goicoechea sofreu diversas ameaças de morte. A insegurança que o cercava era tanta que ele foi obrigado a dormir cada dia num lugar diferente. Na época, ele fazia campanha contra a reforma constitucional proposta por Chávez, que reforçaria os poderes do presidente e limitaria a liberdade democrática no país.
VITÓRIA ESTUDANTIL
Horas antes do referendo de 2 de dezembro, Goicoechea teve um de seus discursos televisionado em rede nacional e pediu para que o povo se mobilizasse em favor do ‘não’. O emocionado discurso do universitário e sua militância no movimento estudantil parecem ter surtido efeito – o projeto de Chávez foi rejeitado por 50,6% dos votos e, pela primeira vez desde 1999, o presidente sofreu uma derrota significativa nas urnas. ‘Hoje, a possibilidade de uma Venezuela melhor venceu… Queremos dizer a todos os venezuelanos, àqueles que votaram ?sim?, àqueles que apóiam o presidente, que estamos comemorando com humildade e dedicamos esse triunfo a vocês’, disse o estudante após a divulgação do resultado. ‘Essa vitória foi a vitória do povo venezuelano que hoje defendeu sua liberdade, mas acima de tudo foi uma vitória do futuro e das imensas possibilidades que temos de construir um país juntos.’
Foi sua atuação durante os protestos do referendo que lhe rendeu o prêmio de US$ 500 mil do Instituto Cato, em Washington. Em 15 de maio, Goicoechea recebeu na capital americana o Prêmio Milton Friedman para o Avanço da Liberdade. Agora, ele estuda os requisitos legais para aplicar o dinheiro que ganhou em projetos sociais na Venezuela. ‘Quero investir a quantia do prêmio em uma escola de formação de líderes em Caracas, um lugar onde possamos dar apoio aos futuros chefes regionais e nacionais.’
Goicoechea chegou a sofrer agressões de partidários do presidente e teve seu nariz quebrado depois que um chavista o atacou num evento em Caracas. Hoje, ele afirma que está mais seguro, mas ressalta que continua recebendo ameaças. ‘Eu procuro ficar sempre atento em locais públicos e nunca fico sozinho.’ Por medo de ter suas conversas grampeadas, ele também tomou como medida de segurança mudar o número do telefone e o endereço de e-mail a cada duas semanas. Apesar de todas as ameaças, ele não admite a possibilidade de deixar a Venezuela. ‘Esse país é de todos e não apenas de Chávez’, afirmou. ‘Eu amo a Venezuela e, por isso, tenho de continuar resistindo.’’
TELES
Governo enfraquece Anatel
‘A Casa Civil tinha marcado uma reunião para o dia 6 de junho para discutir as mudanças na regulamentação para permitir a compra da Brasil Telecom pela Oi (antiga Telemar). Iriam participar dela a ministra Dilma Rousseff, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, e o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Ronaldo Sardenberg. Com a repercussão das denúncias de Denise Abreu, ex-diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), sobre o caso Varig, a reunião foi cancelada.
O episódio é somente um dos exemplos dos esforços do governo para enfraquecer e pressionar a Anatel, que já foi considerada uma agência modelo no Brasil e hoje se encontra com seu conselho de diretores incompleto, com dificuldades de tomar decisões importantes.
Como uma das vagas de conselheiro está em aberto, é muito difícil para agência decidir, porque são necessários ao menos três votos para a aprovação de qualquer matéria. A proposta para o Plano Geral de Outorgas (PGO) foi votada na semana passada, depois de semanas de adiamento, em que o conselho estava dividido.
‘A agência precisa ser independente e técnica’, destacou Guilherme Ieno Costa, vice-presidente-executivo da Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações (ABDI) e advogado da Felsberg e Associados. Costa lembrou que, no começo do governo, o Ministério das Comunicações interveio muito nos reajustes das tarifas de telefonia, impedindo que a Anatel homologasse os aumentos previstos em contrato.
‘O (então) ministro Miro Teixeira chegou a colocar no site do Ministério das Comunicações a minuta de uma ação contra a assinatura básica.’
RESISTÊNCIA
O governo Luiz Inácio Lula da Silva mostrou resistência muito grande às agências reguladoras no começo. O presidente chegou a reclamar que tinham ‘terceirizado o governo’. Incomodava às autoridades ter de conviver com conselheiros indicados pela administração anterior. Hoje, no entanto, os conselheiros foram indicados pela administração atual e, mesmo assim, existe dificuldade em aprovar matérias consideradas importantes para o governo.
‘Acho que a Anatel perdeu o bonde e se tornou o patinho feio entre os reguladores’, disse Floriano de Azevedo Marques, professor da Universidade de São Paulo, que participou da equipe que criou os regulamentos para a privatização do Sistema Telebrás, há 10 anos.
Ele lembrou que os problemas da agência com o ministério começaram no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, quando Pimenta da Veiga era responsável pela pasta das Comunicações e começou a disputar os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust) com a Anatel. A briga resultou na saída de Renato Guerreiro da presidência da agência e no contingenciamento dos recursos do Fust.
‘É preciso superar essa discussão de que governo indicou os conselheiros’, apontou Marques. ‘Independentemente de quem indicou, eles devem ser escolhidos a partir de sua qualificação técnica.’ Nos Estados Unidos, a Federal Communications Commission (FCC) costuma ter três diretores indicados pelo partido no poder e dois pela oposição. ‘Apesar disso, existem questões decididas por unanimidade, outras por quatro votos a um. Ninguém consulta o partido para votar.’
Juarez Quadros, ex-ministro das Comunicações, apontou falhas no sistema atual de indicação de conselheiros. ‘Não deveria haver renovação de mandato e deveria haver um rodízio para o cargo de presidente, como no supremo, de dois em dois anos’, afirmou Quadros, para quem isso protegeria mais a agência de pressões políticas. Hoje, os conselheiros têm mandato de cinco anos, mas podem ser indicados novamente.
A Anatel enfrentou, nos últimos anos, contingenciamento de recursos que chegou a levar a agência, em 2005, a ter de fechar sua central de atendimento por 10 dias, sem ter como pagar pelo serviço. Essa situação de enfraquecimento torna a agência vulnerável a interesses políticos. ‘Essa politização só interessa a quem tem vínculos com o grupo político no poder’, disse o advogado Pedro Dutra, especializado em direito regulatório e da concorrência.
A intervenção do governo no caso BrOi (compra da Brasil Telecom pela Oi) abre espaço para uma série de questionamentos políticos. Em 2005, a Oi, então chamada Telemar, investiu R$ 5 milhões na empresa Gamecorp, que tem entre seus sócios Fábio Luis Lula da Silva, filho do presidente Lula. Além disso, a Andrade Gutierrez, que está no controle da Oi, foi a maior doadora da campanha do Partido dos Trabalhadores em 2006.
No começo do mês, o presidente da Oi, Luiz Eduardo Falco, reclamou que tentam ‘transformar um evento empresarial em político’. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criticou a operação, temendo que a compra da Brasil Telecom pela Oi, que possa virar ‘outra coisa’, com a combinação do poder estatal e de fundos de pensão, ‘controlados por um único partido’.’
PUBLICIDADE
Cannes cresce e reforça inovação
‘Nos últimos cinco anos o Festival Internacional de Publicidade de Cannes mudou. Um novo cenário pode ser traçado quando se acompanha a trajetória do volume de inscrições das peças que concorrem aos cobiçados troféus em forma de Leões, em ouro, prata e bronze.
No total, as inscrições cresceram 51,2%, pulando de 18.706 peças, em 2004, para 28.284, neste ano. Esse vigor, depois de alguns anos de paradeira, foi injetado pela atual gestão do maior evento da propaganda mundial, o grupo inglês Emap. A 55ª edição do Festival, que movimenta Cannes desde ontem até o dia 22 de junho, reúne mais de dez mil profissionais de publicidade e marketing de 85 países nas disputas por prêmios em dez diferentes categorias.
Todos vão à Riviera Francesa em busca de visibilidade para seus negócios com a competição, mas, a cada ano que passa, vão também atrás de ampliar as suas redes de contatos. Para estimular essa movimentação, entre as mudanças introduzidas nos últimos anos está a criação de novas categorias.
Se no início, só os comerciais de televisão e cinema tinham platéia, agora o Festival de Cannes julga e premia toda e qualquer ação de marketing. Há júri para ações de promoção, para spots de rádio, para os complexos casos de comunicação que usam múltiplas plataformas para passar a mensagem (batizado de Titanium & Integrated Lions), e, partir deste ano, há ainda a estreante categoria design.
Com isso, os organizadores do evento não só viram engrossar o número de inscrições como também aumentaram a receita. Apenas com a cobrança de inscrições para a competição, recolheram R$ 28 milhões, conforme estimativa feita pela publicação Meio & Mensagem, que não leva em conta fontes de recursos, como patrocínios, workshops e festas. Tudo é pago.
Toda essa abundância de um lado não esconde o enfraquecimento da categoria que deu origem e glamour ao Festival, desde 1954, quando foi criado. As inscrições em filmes para televisão e cinema perderam 9,1%, quando comparadas aos mais de cinco mil comerciais que concorreram à premiação, em 2004. Uma movimentação que dá ao Festival de Cannes outros contornos, mais focados nos negócios.
A queda dos comerciais de 30 ou 60 segundos, que elevaram a ícone pop toda uma geração de publicitários, também tem ligação com a transição vivida pelos meios de comunicação diante do avanço da era digital.
O comportamento dos consumidores conectados à internet e portadores de celulares se altera e a propaganda tem de ir atrás. Mesmo assim, os 4.626 filmes inscritos este ano garantiram um dos melhores faturamentos do Festival – cada anúncio inscrito custa 600,00.
A inscrição mais barata fica para a categoria rádio, que custa 250 cada, e a mais cara para a Titanium & Integrated Lions, que contempla os trabalhos capazes de levarem mensagens publicitárias às atuais múltiplas e móveis plataformas de comunicação. Inscrever um case nessa categoria requer um desembolso de 1.075,00.
O encolhimento da participação dos filmes comerciais poderia ser apontado como indicador natural dos novos tempos. Mas paralelamente aumenta a categoria de anúncios impressos. No mesmo período de cinco anos, eles cresceram 24,8%.
Essa performance soa estranha diante da recorrente pregação de que o mundo está ficando online. O fato de as inscrições serem mais baratas poderia ser visto como motivação extra para as agências, em especial de países novatos nesse mundo, como os do Leste Europeu, Rússia, China e Índia, que incrementaram suas participações este ano.
Mas a competição, com um grande número de participantes, também fica mais árdua. Este ano, o Brasil, que embora emergente tem tradição no Festival, lidera a categoria com 867 peças, seguido de Alemanha, com 661, e EUA, com 615.
Dos 30 Leões que os brasileiros trouxeram para casa no Festival do ano passado, três foram conseguidos com anúncios impressos.
A ascensão das categorias mais inovadoras é visível. Apesar de cara, o Titanium & Integrated Lions é a que mais cresce, cerca de 224% desde 2005, quando foi criada. O Brasil aparece com 17 trabalhos inscritos. Mas ganhar aqui é difícil. Dos 324 trabalhos inscritos em 2007, somente quatro sensibilizaram o júri.
No total, o Brasil vai a Cannes com 2.461 trabalhos, com investimentos de R$ 2,3 milhões. O País é o terceiro em volume de participação, atrás dos Estados Unidos (3.643), e da Alemanha (2.852), que já lideravam o ranking em 2007. O volume de peças brasileiras representa alta de 12% em relação à edição anterior.
OS JURADOS
O Brasil marca presença nos dez júris com onze participantes, já que na categoria Cyber – que julga a publicidade para mídia online -, há dois profissionais, Sergio Mugnaini, da AlmapBBDO, e Paulo Sanna, da McCann-Erkickson. Na presidência de júri, o Brasil conta com Márcio Salem, presidente da agência Salem, que comandará a escolha da categoria ações de marketing direto. Em design, o representante é Fred Gelli, sócio da Tatil Design. Em filmes, está Eduardo Lima, da F/Nazca S&S; em Outdoor, André Lima, da NBS; em anúncios impressos, Luiz Sanches, da AlmapBBDO ; em projetos de mídia, Luiz Fernando Vieira, da Africa; em promoções, Mentor Luiz Neto, da Bullet; em Rádio, Flavio Casarotti, da Fischer América; e, em Titanium & Integrated, Sérgio Valente, da DM9DDB.
O jornal O Estado de S. Paulo é o representante oficial do Festival de Publicidade de Cannes no Brasil, desde 2001.’
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Presença de Murdoch é destaque
‘O magnata das comunicações Rupert Murdoch, dono da News Corp – um conglomerado com faturamento de US$ 30 bilhões que detém o Fox News e mais de 100 jornais, entre eles o Wall Street Journal – será a presença marcante da 55ª edição do Festival de Publicidade de Cannes. Em 2007, as atenções se voltaram para o político Al Gore em sua pregação pelo meio ambiente.
Figura polêmica, criticada pela forma calculista como administra seu império de comunicação, Murdoch se dispôs a ir a Cannes para ser entrevistado e assistido por uma audiência de publicitários e marqueteiros, no dia 19. Astuto e mordaz, não será surpresa se Murdoch se sair com respostas como a que ironizou seus críticos quando da compra do Wall Street . Eles diziam que o magnata repetirá no tradicional jornal de negócios a fórmula de popularização usada em outros diários. ‘Ninguém verá mulheres nuas. Só se elas tiverem MBA’, declarou.’
TECNOLOGIA
Fazendo um quatrilhão de cálculos por segundo
‘Até há uma semana, a velocidade dos supercomputadores era medida em teraflop, unidade equivalente a um trilhão de operações matemáticas de ponto flutuante por segundo (em inglês, Floating Point Operations ou Flop). A partir de agora, essa velocidade atinge o patamar do petaflop (um quatrilhão de operações de pontos flutuantes por segundo), com o recorde alcançado pelo supercomputador Roadrunner, de 1,02 petaflop – anunciado pela IBM na segunda-feira passada.
Instalado em Los Alamos, no Novo México, o Roadrunner conquista, assim, a posição de mais rápido supercomputador do mundo, superando o ex-campeão Blue-Gene/L, também da IBM, a serviço do Laboratório Lawrence Livermoore, na Califórnia, que passa agora para o segundo lugar.
ESTOQUE NUCLEAR
Para se ter uma idéia do que significa 1,02 petaflop como capacidade de processamento, Thomas D’Agostino, diretor da Administração da Segurança Nuclear Americana, fez aos jornalistas a seguinte comparação: ‘Se todos os 6,5 bilhões de habitantes da Terra usassem calculadoras durante 24 horas por dia, 7 dias por semana, seriam necessários 46 anos para fazerem os cálculos que Roadrunner faz em apenas um dia’.
A tarefa principal desse supercomputador em Los Alamos é monitorar o estoque de ogivas nucleares norte-americanas, bem como simular explosões atômicas, para informar o grau de eficácia dessas armas com o envelhecimento. Mas o Roadrunner pode, é claro, prestar grandes serviços à ciência em geral e à meteorologia em especial, como no estudo das mudanças climáticas. Em sua arquitetura, utiliza 13 mil microprocessadores Power-XCell chips, desenvolvidos originalmente pela IBM para o Playstation 3, da Sony, além de 7 mil processadores AMD Opteron Dual Core. Seu sistema operacional é o Red Hat Enterprise Linux.
O Roadrunner custou US$ 133 milhões. Com todos os seus bastidores e periféricos, o supercomputador pesa mais de 220 toneladas, ocupa uma área de quase 600 metros quadrados, com conexões de quase 100 quilômetros de fibras ópticas.
NA TOCA DOS LEÕES
A quebra da barreira do petaflop era esperada há alguns meses. Para compreender melhor esse avanço, obtive permissão para uma visita exclusiva ao Laboratório de Almadén, da IBM, nas proximidades de San José, na Califórnia, com o objetivo de ouvir cientistas que trabalham no desenvolvimento de supercomputadores, como o Blue Gene e o próprio Roadrunner.
No alto de uma colina, entre belas árvores e ao som do canto de pássaros, o Laboratório de Almadén tem toda a tranqüilidade do mundo exigida pelos pesquisadores. Ali trabalha também, esporadicamente, o brasileiro Jean Paul Jacob, hoje consultor e cientista emérito da IBM, que utiliza os recursos de pesquisa desse laboratório.
Em Almadén, conversei durante quase um dia inteiro com cientistas como Jean Luca Bono, Jean Pieter, o próprio Jean Paul Jacob e outros. Num centro que tem a mística de fronteira mundial da tecnologia da informação, o visitante se sente fascinado pelo desenvolvimento da pesquisa baseada em supercomputadores.
FERRAMENTA DE PESQUISA
Para Jean Pieter, a supercomputação é a mais poderosa e avançada ferramenta de pesquisa que qualquer país pode utilizar, não apenas para fins militares, mas, principalmente, científicos e tecnológicos. A simulação de fenômenos como a poluição, o aquecimento global, a inflação, o crescimento populacional e as mudanças climáticas oferece grandes perspectivas de solução para esses problemas.
Por isso, a maioria dos países desenvolvidos vê a tecnologia de supercomputação como um símbolo de competitividade econômica nacional. Nas últimas décadas, a pesquisa na área dos supercomputadores assemelha-se a uma corrida mundial, uma disputa acirrada entre Estados Unidos, China, Japão, França, Alemanha e Reino Unido, entre outros países, rumo à conquista do petaflop. Quebrar a barreira do quatrilhão de cálculos por segundo era, até há poucos dias, um sonho longamente acalentado por organizações científicas em todo o mundo.
OS DEZ MAIS
É interessante acompanhar essa corrida mundial do desenvolvimento dos supercomputadores. O site www.top500.org mostra um dos cenários mais completos desse setor, divulgando o resultado dos testes que medem a velocidade de processamento dos 500 maiores computadores do mundo.
Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido e França são os países que mais investem nessa área de desenvolvimento. Até 2007, o Japão e a Alemanha tinham supercomputadores classificados entres os 10 maiores do mundo. Neste ano, o cenário está inteiramente mudado, com a liderança absoluta dos Estados Unidos.
Antes do anúncio do recorde mundial do Roadrunner pela IBM, a lista dos 10 maiores supercomputadores do mundo era a seguinte, segundo o site www.top500.org: 1) IBM-BlueGene/L; 2) IBM-Blue Gene/P; 3) SGI-Altix ICE 8200; 4) Hewlett-Packard, Cluster Platform Infiniband; 5) Hewlett-Packard Cluster Platform 3000; 6) Cray Inc. Red Storm – 7) Cray Inc. Jaguar; 8) IBM-Blue Gene Solution; 9) Cray Inc. Franklin; 10) IBM-New York Blue, Blue Gene Solution.’
SAMBA
Samba perde Jamelão aos 95 anos
‘Morreu na madrugada de ontem, no Rio de Janeiro, o cantor e intérprete de sambas-enredo da escola da Samba Estação Primeira de Mangueira, José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão. Aos 95 anos, dos quais mais de 50 como cantor de samba, Jamelão estava internado desde a quarta-feira na Clínica Pinheiro Machado, eme Laranjeiras, onde chegou com estado de saúde bem debilitado, vítima de infecção urinária e pulmonar. Seu corpo será enterrado às 11h de hoje no cemitério do Caju.
Jamelão era o mais antigo intérprete de samba-enredo do País e é o mangueirense em atividade há mais tempo, desde os anos 20, quando chegou adolescente ao Morro de Mangueira. Ontem, de luto, a escola cancelou uma feijoada que ocorreria durante a tarde na quadra, remarcando o evento para a semana que vem, agora como um tributo ao seu maior intérprete. O governador Sérgio Cabral decretou luto oficial de três dias . ‘Era o grande símbolo da garra mangueirense’, afirmou, em nota oficial.
A voz marcante, que eternizou sambas-enredo campeões, foi lembrada por amigos. ‘O samba perdeu a maior voz de todos os tempos’, disse o cantor e compositor Monarco. ‘Ele era a voz negra do país, a voz mais bonita do Brasil e o maior cantor do Brasil’, lamentou a cantora Beth Carvalho. ‘Foi um dos maiores cantores deste país, era uma escola, todos os grandes cantores tinham admiração por ele’, acrescentou o compositor e produtor musical Hermínio Bello de Carvalho.
‘Para mim, se Jamelão não tivesse uma carreira tão ligada à escola de samba ele teria um reconhecimento muito maior do que teve’, disse o compositor Nei Lopes. ‘O samba, até por questões de mercado, o deixava meio restrito ao período de carnaval. Mas ele era o maior cantor brasileiro. Assim como se mostrou o maior intérprete de Lupicínio Rodrigues, também foi o maior intérprete de Ari Barroso. Ele imortalizou Folhas Mortas.’
Por causa da saúde debilitada, Jamelão já havia se afastado dos desfiles de carnaval. Nos últimos anos, vinha perdendo a memória, reflexo de um acidente vascular-cerebral. ‘O carnaval do Rio já não era o mesmo sem ele como puxador do samba-enredo da Mangueira’, disse a cantora Nana Caymmi. Jamelão, porém, repudiava o termo ‘puxador’ e preferia ser chamado de intérprete: ‘Puxador é puxador de corda, puxador de fumo, puxa-saco… Eu sou é intérprete.’
Tinha fama de rabugento, mas era muito querido no mundo da música. ‘Meu amigo Jamelão era um imenso cantor e o melhor mau humor do Brasil’, declarou Chico Buarque, por meio de sua assessoria de imprensa. Chico está em Paris escrevendo seu novo romance.
‘Era do tipo falso mau humorado’, corrige Hermínio Bello de Carvalho. ‘Uma vez nos encontramos no aeroporto Santos Dumont, eu o cumprimentei, mas ele não deu a menor bola. Mais tarde, quando nos encontramos de novo, ele me disse, com um sorriso: E aí, não vai falar comigo?’, recorda. ‘O mau humor do Jamelão era uma forma de ele se defender dos chatos, dos aproveitadores’, diz Beth Carvalho.
Em outros momentos, demonstrava um lado bem espirituoso. Como na visita do ex-presidente americano Bill Clinton à Mangueira, em 1997. ‘Ele está mais feliz que pinto no lixo’, brincou Jamelão, deixando de lado o protocolo e a reverência habituais nessas situações.
Responsável pela comissão de frente da Mangueira, o dançarino Carlinhos de Jesus também refuta a fama de ranzinza. ‘Ele sempre foi muito cordial’, disse. ‘Estávamos na quadra da Mangueira, numa disputa de samba-enredo, lá pelas 4 horas da madrugada. A minha mulher disse que estava com muita fome, mas na quadra não tinha mais nada para comer. O Jamelão escutou, veio até a direção da minha mulher e trouxe um saco de papel de padaria. Dentro tinha um prato de papel com um frango assado recheado de farofa’, lembra.
O compositor Wagner Tiso destacou que Jamelão conseguiu ‘caminhar com equilíbrio nas diversas áreas da música popular brasileira’, lembrando que foi um dos grandes intérpretes de Ari Barroso.
‘Jamelão era um grande mestre. O que ele tinha de fazer, fez muito bem. Um exemplo para quem está no meio do caminho e para quem está começando agora’, afirmou o cantor Zeca Pagodinho. Hermínio Bello de Carvalho recorda-se da disciplina do intérprete, que trabalhou como copista de partituras e estava sempre nos locais dos shows com duas horas de antecedência. ‘Me lembro de um show em que a deixa para Jamelão entrar era a música Jequitibá (José Ramos/Marcelino Ramos). Ele ficava lá atrás esperando o verso, que dizia ?o Jequitibá do samba chegou?. Ele era o verdadeiro Jequitibá do samba. O jequitibá se quebrou…’.’
HISTÓRIA
Ubiratan Brasil
No calor da guerra
‘A primeira mensagem foi enviada por Franklin Delano Roosevelt em julho de 1941, logo depois do inesperado ataque de Hitler à União Soviética. E a última, em abril de 1945, pouco antes da súbita morte de Roosevelt. Um total de 304 comunicados foi trocado entre o então presidente americano e o comandante soviético Josef Stálin. Cartas escritas no calor da 2ª Guerra Mundial e que revelam a personalidade e as estratégias políticas dos dois líderes.
Estranhamente, tal correspondência permaneceu por 60 anos na obscuridade até ser encontrada, por acaso, pela jornalista Susan Butler. Em 2001, ela fazia uma pesquisa na biblioteca Franklin Roosevelt, em Nova York, quando se deparou com o material. ‘Logo percebi que tais mensagens traziam dados históricos pouco conhecidos e vitais para se compreender a relação entre a América e a União Soviética durante a guerra’, comenta Susan. ‘Elas permitem descobrir os meandros de um jogo complexo e brilhante entre dois grandes comandantes.’
Depois de catalogar o material e acrescentar notas explicativas, Susan finalizou o livro Prezado Sr. Stálin (tradução de Sérgio Lopes, 420 páginas, R$ 59), lançado agora pela Jorge Zahar. Trata-se de um caminho aberto para se observar detalhes diversos, como a consciência que Roosevelt tinha da desconfiança de Stálin em relação a estrangeiros, uma suspeição que, segundo a pesquisadora, permeava a sociedade russa e contra a qual Roosevelt lutou com rigor.
Em 1941, Roosevelt, Stálin e o primeiro-ministro inglês Winston Churchill formavam a força aliada que lutava contra Adolf Hitler, à época com diversos países anexados e com chances substanciosas de vencer a guerra. Naquele ano, aconteceram dois fatos decisivos: a invasão da URSS pelos alemães, quebrando o pacto de não-agressão entre Hitler e Stálin; e o ataque japonês a Pearl Harbor, obrigando os EUA a oficialmente declararem guerra à Alemanha, Itália e ao Japão.
Temeroso de que os soviéticos capitulassem diante dos nazistas, Roosevelt anunciou um auxílio financeiro à União Soviética e iniciou a troca de mensagens com Stálin, garantindo-lhe que seu país auxiliaria a nação sitiada. Foi o começo de uma correspondência enviada por cabo e, em geral, parafraseada, a fim de garantir a segurança, embora ocasionalmente um dos líderes escolhesse um conselheiro de extrema confiança para entregar em mãos uma mensagem ao outro.
Ao longo daqueles quase quatro anos, Roosevelt e Stálin discutiram sobre remessas de armas norte-americanas, necessidades bélicas da União Soviética, decisões que deviam tomar contra Hitler e aliados, a data da invasão através do Canal da Mancha (assunto recorrente), o destino da Polônia (que interessava aos dois líderes), os termos da capitulação, o papel e a autoridade do Conselho de Segurança e a composição da Assembléia Geral da ONU.
Aos poucos, Susan Butler identificou os diferentes estilos dos dois governantes – se, por um lado, sabia ser irresistivelmente cortês, Stálin não escondia que governava pelo terror. ‘Já Roosevelt era um homem que empregava a persuasão, o charme e uma certa atitude de laissez-faire’, escreve a pesquisadora, convencida de que o presidente americano estava disposto a romper a barreira que o separava de Stálin, importante passo para que os Estados Unidos estabelecessem laços com outros países e finalmente abandonassem sua política autocentrada.
‘Há uma evidente espontaneidade nas mensagens que Roosevelt enviou a Stálin. Nelas, o presidente americano é resolutamente amigável, elogioso e bajulador, muitas vezes em detrimento de Churchill. À medida que a guerra avançava e ele se afastava do primeiro-ministro britânico, Roosevelt apoiava Stálin a distância’, constata a pesquisadora.
Mesmo assim, houve momentos de tensão. Por duas vezes, por exemplo, Stálin interpelou Roosevelt com mensagens raivosas. A primeira, depois que Churchill e o presidente americano se encontraram em Quebec a fim de planejar a rendição da Itália – em outubro de 1943, Stálin protestou que ‘o governo soviético não foi informado sobre as negociações anglo-americanas com os italianos’. Descobriu-se depois que a ele foi enviado um telegrama truncado e incompleto.
O segundo foi mais sério: em março de 1945, Stálin contestou a negativa dos americanos em aceitar a presença de um emissário soviético durante o acerto da rendição do exército alemão em território italiano. Em resposta à garantia de Roosevelt de que nenhuma negociação estava em andamento, Stálin foi incisivo: ‘Deve-se presumir que o senhor não esteja completamente informado.’ Embora irritado com a acusação, o presidente americano contornou a situação, pois, em seu plano de paz pós-guerra constava como indispensável o apoio soviético.
Com a morte de Roosevelt em abril de 1945, no entanto, e a posse de Harry Truman, um presidente pouco disposto a estreitar laços com Stálin, a Guerra Fria tomou conta do mundo. ‘Talvez isso explique, em parte, os motivos de a correspondência entre Roosevelt e Stálin ter ficado esquecida durante tanto tempo’, sugere Susan Butler.’
‘Linguagem dura levou a maior proximidade’
‘Susan Butler, jornalista, organizadora de Prezado Sr. Stálin
Por que tal correspondência ficou esquecida durante tanto tempo?
Sobre essa questão, pensei muito a respeito e não cheguei a nenhuma conclusão. Há, claro, o fato de Stálin ser visto agora apenas como um monstro. No entanto, a 2.ª Guerra Mundial foi seu melhor momento. Se ele não tivesse recuperado o povo russo e derrotado o alemão, a Inglaterra teria sido o próximo país a cair sob as botas de Hitler. A Europa que hoje conhecemos não existiria. Por isso que acredito no grande interesse em sua correspondência com Roosevelt.
Qual carta você considera a mais importante? Por quê?
Creio que as duas mais importantes são a de número 300, escrita por Stálin, e a seguinte, com a resposta de Roosevelt, sobre desencontro de informações, em que eles se tratam de uma forma um tanto ríspida. Nesses dois textos, acredito, eles usaram uma linguagem dura, mas polida e se aproximaram de uma forma que não tinham feito antes.
Alguns pesquisadores acreditam que a Guerra Fria começou com Franklin Roosevelt. O que você pensa disso?
Discordo. Para mim, começou depois de sua morte.
Quando jovem, Gore Vidal chegou a escrever que Roosevelt teria incitado o ataque japonês aos Estados Unidos para apressar a entrada de seu país na guerra. Roosevelt, inclusive, teria conhecimento prévio do ataque. O que você diria a respeito?
Roosevelt não tinha absolutamente nenhuma notícia antecipada sobre o ataque. Isso está claro nos diários do secretário da Guerra, Henry Stimson.
Roosevelt e Stálin travaram uma agradável relação por meio da palavra escrita?
Creio que ambos aprenderam como se expressar eficazmente. Tanto que ambos escreveram trechos de seus próprios discursos.
Com os avanços tecnológicos na troca de mensagens, você acredita que, no futuro, haverá a chance de se descobrir uma correspondência como essa?
Acredito que sempre haverá alguma informação que vai permanecer escondida, esperando para ser descoberta.’
Elias Thomé Saliba
Bastidores da batalha diplomática
‘Quem diria que Stálin foi agraciado com o título de ‘homem do ano’ de 1942, ganhando foto de capa e manchete de ‘salvador do mundo ocidental’ na revista Time? E que a repentina morte de Franklin Roosevelt, três anos depois, provocaria enorme comoção em Moscou, com uma multidão dirigindo-se para a embaixada americana, homenageando o falecido como um ‘grande amigo da Rússia e da paz’? Varridas da memória pelo ambiente pesado da Guerra Fria pós-1945, essas são, entre muitas outras, algumas das cenas mais inusitadas da história do século 20, que certamente invadem a lembrança coletiva após a leitura da correspondência entre Roosevelt e Stálin, organizadas e editadas por Susan Butler.
Escritas entre 1941 (ano do ataque alemão à Rússia) e 1945 (ano da morte de Roosevelt), transmitidas por cabo ou entregues pessoalmente por diplomatas de estrita confiança dos dois governantes, são mais de 300 cartas, extremamente reveladoras da intensa batalha diplomática ocorrida nos bastidores da 2ª Guerra. Bem guardadas pelo sigilo oficial, propositalmente obscurecidas por alfinetarem orgulhos inflados de russos e americanos ou solenemente ignoradas pelos caprichos da memória política – elas retornam agora, quase 60 anos depois, devidamente anotadas, contextualizadas e minimamente preservadas em sua autenticidade no livro Prezado Sr. Stálin . Apesar de todos os protocolos diplomáticos, mensagens cifradas ou parafraseadas por inúmeros mediadores (inevitáveis em tempos de guerra), as cartas foram realmente escritas pelos dois líderes.
Suficientemente realista para confiar em certos momentos e desconfiar noutras ocasiões, Roosevelt revela escrita de estilo ágil, sereno, discernindo caminhos conciliadores – sem, contudo, esconder de Stálin os obstáculos e oposições internas às suas decisões, tanto dos republicanos quanto dos ‘isolacionistas’. Já Stálin, descontados os problemas da tradução (a organizadora manteve os erros para mostrar como exatamente Roosevelt leu as cartas), não consegue esconder seu estilo deselegante, truncado – embora meticuloso e preciso apenas nos detalhes de manobras e estratégias militares. Só muito raramente a propalada incontinência verbal de Stálin irrompe nas cartas, quando numa delas – ao insistir com Roosevelt na necessidade urgente do envio de mais aviões – desabafa, em tom quase farsesco: ‘A situação singular da aviação soviética é a de dispor de um número mais do que suficiente de pilotos, mas não de aviões!’
Nem sempre foi fácil suportar as interpelações raivosas e duras de Stálin. Churchill só atirava mais lenha na fogueira, provocando: ‘O que se pode esperar de um urso senão um rugido?’ O próprio Roosevelt perdeu a paciência em novembro de 1944, ao discutir a situação do governo polonês no exílio, embora tenha levado apenas uma semana para recuperar o equilíbrio, mostrando-se devidamente contido já na próxima carta, quando cumprimenta Stálin pelo 26º aniversário do Exército Vermelho. A resposta é extremamente cordial, mas apenas protocolar, pois se sabe que foi precisamente nesta época que Stálin teria dito nos bastidores que ‘a gratidão é uma doença dos cães’.
De qualquer forma, as cartas de Stálin, reforçam o ácido comentário de Clement Atlee quando dizia que o ditador desprezava profundamente a linguagem floreada: ‘Com Stálin, é sempre um sim ou um não, embora só se possa acreditar nele quando diz não.’ As cartas evidenciam ainda quanto a União Soviética precisava urgentemente de toda a ajuda que pudesse obter e, para isso, não interessava fomentar antagonismos com os Estados Unidos. O presidente norte-americano e o ditador nunca estiveram tão próximos: encontraram-se apenas por duas vezes, em Teerã, em novembro de 1943 e em Ialta, em fevereiro de 1945, mas as cartas revelam uma inusitada sintonia entre os dois, que se vislumbra nas pitorescas jogadas de Roosevelt (na organização das duas conferências), para ficar próximo a Stálin, livrando-se das excessivas exigências (e da verborragia) de Churchill – ou usando a personalidade deste último como parte do jogo diplomático.
No geral, é uma correspondência que nada acrescenta nem altera a história da 2ª Guerra. Fornece, contudo, novos ângulos de visão e outras perspectivas, nem sempre agradáveis à nossa amnésia histórica. De material bélico pesado a alimentos e vestuário, as cartas adicionam detalhes espantosos a respeito da enorme ajuda material que Roosevelt conseguiu liberar para a União Soviética derrotar a Alemanha. Muitos viram nesse tópico apenas um resquício da atitude amplamente favorável de Roosevelt em relação à URSS, interpretada, não raro, como ingenuidade de alguém que foi vítima das próprias ilusões. Mas existiram outras alternativas? Algumas cartas deixam clara a decepção de Roosevelt com os acordos de Ialta. Ele sabia, no fundo, que esses nada valeriam, pois o delineamento da Europa do pós-guerra seria determinado não por acordos, mas pela localização real dos Exércitos ocupantes quando da rendição alemã. Entre as muitas crueldades inenarráveis da guerra, o nó diplomático mais delicado foi quando Roosevelt praticamente ignorou o assassinato de mais de 20 mil oficiais poloneses na floresta de Katyn – os quais (depois se descobriu) foram mortos não pelos alemães, mas pelos russos da NKVD.
Por outro lado, Roosevelt mantém no seu horizonte uma noção muito clara de que o espectro de uma aliança germano-soviética ainda era muito recente. Embora cruel e frustrante foi imperioso deixar Stálin com as mãos livres no Leste Europeu, pois a URSS tinha de ser mantida, a qualquer custo, na guerra contra a Alemanha e, mais tarde, contra o Japão. Não foram poucos os biógrafos que ‘medicalizaram’ a hesitação melancólica de Roosevelt, atribuindo-a à hipertensão, sinusite, bronquite, arteriosclerose, isquemia temporária, além, é óbvio, da semiparalisia decorrente da poliomielite. Mas é muita fisiologia para pouco espírito. Contrariando tais presunções, as cartas revelam que a resignação e a tristeza vinham da dura constatação de que qualquer diálogo com Stálin seria impossível sem uma atenuação – quando não um esquecimento doloroso – das crueldades, genocídios, hostilidades ou suspeitas mútuas.
Schlesinger Jr. argumenta que Roosevelt conseguiu, apesar de tudo, estabelecer padrões para a Europa Oriental, enquadrando Stálin e obrigando-o a romper com o acordo de Ialta para consolidar as posições soviéticas. Foi pouco, mas melhor que nada. Roy Jenkins também argumenta na mesma direção, afirmando que Roosevelt não ‘deu’ nada a Stálin que ele já não possuísse através da ocupação militar. Com algumas objeções, Isaiah Berlim acompanha o mesmo diagnóstico, enfatizando, nesse sentido, que Roosevelt conseguiu atuar como um farol iluminando o futuro. Para além dos intérpretes, as cartas revelam que Roosevelt conseguiu manter sempre o diálogo e que Stálin nutria uma velada admiração pelo presidente americano. Conseguiu até mesmo que o seu interlocutor aceitasse o tratamento brincalhão, ao chamar Josef Stálin de ‘Tio Joe’.
Menos de dez dias depois da morte de Roosevelt, o embaixador russo, Vyacheslav Molotov (que era para Stálin o que Harry Hopkins era para Roosevelt), já seria destratado por Harry Truman: ‘Ninguém jamais falou assim comigo’, reclamou Molotov; ‘cumpra sua palavra e não o tratarei desta maneira’, rebateu Truman. Esse diálogo seria inconcebível na presença de Roosevelt. O restante da história é bem conhecido: quatro meses depois da morte de Roosevelt vieram as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki – e as cinzas da Guerra Fria manietaram o diálogo e calcinaram as mentes.
Se Roosevelt tivesse vivido pelo menos até o fim do seu mandato, a história seria diferente? O condicional – também chamado pelos historiadores de raciocínio contrafactual – é quase um tabu na lógica histórica e, quando mal conduzido, resulta pernicioso e impertinente. Mas a leitura das cartas fornece perspectivas inquietantes, a respeito das quais cabe ao leitor decidir. ‘Durante mais de 60 anos – escreveu E.J. Hobsbawm -, eu e Arthur Schlesinger Jr. não concordamos sobre nenhum assunto, a não ser este: eu compartilhava – e ainda compartilho – de sua admiração por Franklin D. Roosevelt.’ E se um personagem tão controverso suscitou a admiração de dois historiadores tão diferentes, é quase certo que ele possuía algum quilate daquela rara grandeza. O que, nos dias de hoje, não é pouca coisa.
Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor, entre outros, de Raízes do Riso: A Representação Humorística da História Brasileira’
REVISTA
Um convite ao pensamento, apesar da pressa do mundo
‘Ganhador do Prêmio Nobel de Medicina em 1973, o austríaco Konrad Lorenz dizia que a mente, para estar em forma, precisa testar e rejeitar cinco hipóteses antes do café da manhã. Antes de ter uma opinião, é preciso estudar seriamente, ler bastante e refletir ainda mais. Nos dias atuais, essa parece uma convicção na contracorrente, quando fluxos de informação e produção se aceleraram de modo inédito. E, quando consumir na hora em que se deseja é obrigação, fica no ar a pergunta que o aceleramento da história suscita: ler ou refletir é renunciar a viver?
A proposta da revista Dicta&Contradicta, que lança neste mês o seu primeiro número, apóia-se na necessidade de refletir para melhor viver. A publicação aposta em ensaios longos sobre filosofia, poesia, literatura, cinema, música, artes plásticas, sem se submeter à ditadura da novidade pela novidade. A Dicta&Contradicta (210 págs., R$ 22,50) não ‘pretende ensinar ao leitor o que deve pensar, mas oferecer-lhe estímulo para pensar’. Os textos não podem ser barateados, segundo os editores. A exigência que há no ato de reflexão, no entanto, não pode ser confundida com hermetismo ou academicismo, eles alertam.
Patrocinada pelo Banco Fator e Instituto Bovespa e feita pelo Instituto de Formação e Educação, a Dicta&Contradicta traz, na seção Do Lado de Lá, dois artigos traduzidos das revistas The New Criterion e First Things. (Os editores dizem que The New Criterion é uma das inspirações de Dicta&Contradicta). No primeiro ensaio, o editor da The New Criterion Roger Kimball fala das relações entre Friedrich Hayek e os intelectuais, a partir das quais se discutem idéias sobre governo, liberdade individual e civilização. No segundo, o editor da First Things Joseph Bottum fala de política e morte.
A revista começa semestral, mas pretende tornar-se trimestral. Vem com uma seção dedicada a contos e poesias inéditos, tanto nacionais quanto internacionais. Nesta edição, Antonio Fernando Borges, autor de Memorial de Buenos Aires, escreve o conto Agostinho e o ensaísta Rodrigo Duarte Garcia publica o poema Torres da Memória.
O ponto alto da estréia é um artigo – Do Enigma ao Mistério – com a edição das últimas três aulas dadas pelo poeta Bruno Tolentino, morto em junho do ano passado. As aulas foram gravadas por Guilherme Malzoni Rabello em maio do ano passado. Elas tratam do mistério da vida – e da morte -, Bruno Tolentino parecia sentir o fim próximo, e da necessidade de o homem ter epifanias para responder à espessura impenetrável dos enigmas que parecem compor a travessia da existência. Tolentino dá transcendência à vida. O poeta, preocupado com o esvaziamento cultural do País, empenhava-se por meio da poesia a despertar as pessoas para a realidade, sem excluir o que há de grotesco e sublime no ser humano, e de certa maneira ensinava que viver é aprender a morrer. ‘Se a festa está acabando, muito bem, vamos acabá-la da melhor maneira possível.’
Sua reflexão parte da visita do papa Bento XVI ao Brasil no ano passado, a qual foi um chamado ao silêncio do pensamento. Autor de O Mundo Como Idéia e A Imitação do Amanhecer, Tolentino diz que, num mundo conturbado, ‘temos todas as razões para buscar um cantinho, um momento de calma, mas praticamente não o fazemos nunca. Estamos sempre ocupados em ter idéias, respostas e tudo o mais’. Tolentino afirma que a vida dá lá as suas voltas, por vezes assustadoras, por vezes maravilhosas, o que não impede ninguém de levá-la a sério. Ler, pensar, sentir, tudo isso leva o homem a viver – e a morrer – melhor, não sem antes aprender a amar mais a si mesmo e ao semelhante.’
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