Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

DITADURA
Gabriel Manzano Filho

Memória das garras do condor

‘Era uma vez, nos tempos da repressão, um apartamento em Porto Alegre e, dentro dele, duas armadilhas. A primeira delas, montada por quatro ou cinco fiéis servidores das ditaduras brasileira e uruguaia que aguardavam ao lado de sua isca – a própria dona da casa, a militante esquerdista Lilian Celiberti – a chegada de um chefão da resistência uruguaia. A idéia era prendê-lo e levá-lo imediatamente a Montevidéu. A segunda era o truque tentado por Lilian no telefonema para marcar o encontro. Ela passou a senha combinada, uma palavra crucial para que o outro lado entendesse que ela estava sob domínio do inimigo. ‘Não venha’, significava o convite.

Deu certo. O chefão não foi. Mas eis que soa a campainha, Lilian vai abrir… e são dois jornalistas! Um experiente repórter e seu fotógrafo, trabalhando para uma grande editora de São Paulo. Pior que isso: o repórter conhecia a dona da casa.

Era uma sexta-feira, 17 de novembro de 1978. Assim que foi encostado um revólver na testa do repórter, no apartamento 110 da Rua Botafogo, 621, começou um interminável jogo de gato e rato entre democracia e ditadura na América Latina. Lilian e um colega de militância, Universindo Diaz, sumiram na fronteira e foram penar nas masmorras do Uruguai. O repórter que tocou a campainha e logo foi liberado, o gaúcho Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, embrenhou-se por todas as pistas, fez um dublê de jornalista e personagem do caso e por fim toda a grande imprensa entrou na história. Além do sumiço de Lilian e Universindo – e com eles dois filhos menores – o episódio deixava uma pergunta no ar: por que o Brasil abria mão de sua soberania e deixava policiais de outro país entrar em seu território para seqüestrar pessoas que estavam sob proteção de suas leis?

É uma pergunta de um tempo de horrores, 30 anos atrás. Ao revivê-la agora, num livro de 472 páginas, o jornalista que viveu a história produziu um texto que já chega às livrarias como referência de um tempo. Operação Condor: O Seqüestro dos Uruguaios, que a LPM lança na sexta-feira na Feira do Livro de Porto Alegre, é um relato corajoso, uma crônica precisa, às vezes pesada, do medo vivido nas ruas e da infâmia dos porões dos anos 70.

O livro traz dois consistentes apêndices, O Uruguai Seqüestrado, sobre as barbaridades que se praticavam no país vizinho, e Operação Condor, em que o autor retoma a polêmica sobre o papel do Brasil nessa famosa aventura de combate ao comunismo no continente.

Cunha entrou na história porque o próprio chefão esperado no apartamento lhe dera as informações ao telefone, sem se identificar. Era Hugo Cores, que presidia um pequeno e radical partido de esquerda, o Partido de la Victoria del Pueblo (PVP). Para checar a dica levou consigo o fotógrafo J. B. Scalco, também da Editora Abril – e dali por diante os dois sustentaram a investigação por 86 semanas. O episódio culminou com o reconhecimento judicial da culpa da polícia brasileira, algumas punições e, para os dois, um Prêmio Esso, entre outros reconhecimentos.

As circunstâncias fizeram de Cunha, ao mesmo tempo, narrador e personagem – o que fez de seu livro um misto de documento histórico e denúncia indignada. Ao longo dos 30 capítulos ele investiga, compara, ataca, desabafa. Faz visitas a lugares estranhos, recorre a truques para tirar fotos de suspeitos, viaja, provoca ministros, tudo para descobrir quais eram os homens escondidos atrás da porta naquela sexta-feira.

?DIGNIDADE?

É uma caça demorada, mas ele chega lá. Traz à luz os feitos do delegado Pedro Seelig, uma espécie de ‘Fleury dos Pampas’. Identifica o investigador Didi Pedalada, localiza testemunhas. E reproduz frases memoráveis como esta do então ministro da Marinha do Uruguai, Hugo Márquez: ‘A diretriz dada a todos os membros deste governo tem sido a de conservar a dignidade do ser humano, de modo a não infligir castigos corporais que não sejam humanamente suportáveis.’

Na caminhada o autor consegue uma preciosidade – a revelação de que o autor da Lei Falcão não foi o então ministro da Justiça, mas o governador gaúcho Synval Guazzelli. Revela também a fúria do ministro-chefe do SNI, general Octávio de Medeiros, que, ao saber da confusão com o jornalista no apartamento, explode: ‘Esses caras fizeram merda! São uns imbecis!’

Na descida às sombras da Operação Condor, o livro revela dados que nem a CIA tinha em seus documentos. É o caso dos nomes de dois oficiais do Exército brasileiro que estiveram em Santiago, no Chile, em novembro de 1975, no encontro que deu vida à Operação Condor – o tenente-coronel Flávio Demarco e o major Thaumaturgo Sotero Vaz.

Como explica o autor, Brasil e Chile tinham naqueles tempos anticomunismos incompatíveis: a ditadura brasileira, a dois meses da prescrição do Ato Institucional nº 5, planejava uma distensão e a do Chile queria sair matando. Ernesto Geisel não queria misturar seu serviço de inteligência com os demais do continente. O resultado foi que, na Operação Condor, os agentes brasileiros participaram – com entusiasmo – das fases 1 e 2, que incluíam trocas de informações e de prisioneiros, mas não da fase 3, que programava assassinatos.

Era um horror um pouco menor. Mas nele cabiam coisas como esta mensagem, remetida pelo Dops de Rio Grande (RS) aos superiores em Porto Alegre: ‘Informamos que Oscar Perez foi preso pelo Exército a cerca (sic) de 2 meses atras vg e entregue mediante recibo logo em seguida a policia uruguaia pt sds – bel. Alamyr Madruga – Del. Polícia.’ Ou seja, havia ditaduras médias e outras duríssimas. Mas todas admitiam o escambo de gente, com os devidos atestados de seqüestro.’

 

 

HISTÓRIA
Ivo Barroso

A História de Carpeaux

‘A obra máxima de Otto Maria Carpeaux, a monumental História da Literatura Ocidental, acaba de ser entregue ao público em 3ª edição, realizada pelas Edições do Senado Federal, agora em quatro alentados volumes totalizando 3.025 páginas. Embora seja este o 107º título do catálogo daquela editora, em geral centrado na historiografia brasílica – exceção feita apenas das crônicas que Machado de Assis escreveu precisamente sobre o antigo Senado – esta edição, de caráter eminentemente literário, se deveu a um encontro de circunstâncias que, ao mesmo tempo, pode resultar em maior amplitude para os horizontes culturais da coleção.

Os livros de Carpeaux, cujas reedições se impunham desde muito por se tratarem de um dos mais elevados conjuntos de análises literárias das letras brasileiras – e, talvez por isso encarados com descaso pelos órgãos oficiais de divulgação — começaram a ser resgatados a partir de 1999, quando a Topbooks, com a UniverCidade, lançou o primeiro volume dos Ensaios Reunidos, que abrangia os livros publicados em vida do autor, no período de 1942 a 1978. Seguiu-se-lhe em 2005, o segundo volume de ensaios, que recolhia artigos jornalísticos, prefácios e introduções, produzidos entre os anos 1946 e 1971. A Topbooks informava, em seu primeiro tomo, seu projeto de publicar mais 4 coleções de artigos (Ensaios Reunidos III, Obras Históricas Breves, Escritos Políticos Brasileiros, Escritos Políticos Estrangeiros), que precederiam a esperada reedição daquela que, na unanimidade do censo crítico nacional, representa não só o auge da produção carpociana, mas igualmente a obra-prima da historiografia crítica-literária de qualquer língua viva: a História da Literatura Ocidental. Eis que agora, coadjuvando esse empreendimento editorial de grande alcance, e antecipando-se àquela publicação, as Edições do Senado Federal trazem ao público essa obra desde muito esgotada e que tanto vinha servindo aos nossos resenhistas como passaporte para o brilho de suas citações.

Diferentemente das obras do gênero, a história literária de Carpeaux não se limita a arrolar os nomes significativos de um período literário ou da literatura de um determinado país ou língua, com resumos biobibliográficos de seus vultos notáveis, eventualmente acompanhados de pequena antologia. Trata-se aqui de uma visão de conjunto de todas as literaturas ocidentais, analisadas num continuum em que os desdobramentos cronológicos se mostram embrechados de componentes sociológicos, econômicos, políticos, religiosos, etc., daí resultando um panorama em que se busca antes compreender do que explicar os fenômenos humanos e sociais, não no intuito de identificar suas causas, mas antes os propósitos e alcances que as determinam. As análises propriamente literárias são precedidas, em cada capítulo, de um estudo sobre a época ou civilização em que ocorreu o fato, permitindo ao leitor apreciar desde seus indícios ao seu apogeu, bem como as ramificações e desmembramentos de uma eventual sobrevida em outros estágios históricos e/ou artísticos. As análises não contemplam apenas os aspectos triviais da vida dos autores, mas ajudam a compreender como e por que suas obras foram geradas e os reflexos que porventura tiveram sobre outras épocas e regiões. A bibliografia arrola as obras fundamentais publicadas sobre os autores até a época, competindo às futuras edições atualizá-la com dados posteriores que tenham acrescentado ou lançado novos enfoques sobre os temas. Estranha, porém, que haja alguns que ainda leiam esses estudos-críticos abrangentes como se fossem simples baedeker para conhecimentos apressados ou, fragmentariamente, como se tratasse apenas de um repositório de dados biográficos. Este é um livro que deve ser lido por inteiro, como uma sucessão de sagas em que intercedem milhares de personagens implicados nos fenômenos da criação literária. Muitos que luziram em sua época e são hoje inteiramente desconhecidos, e muitos outros que, analisados com o rigor crítico de um scholar como Carpeaux, nem sempre corresponderão às idéias feitas que sobre eles existiam.

Antes de tudo, um livro que hoje só poderia ser realizado por uma equipe de especialistas e com o auxílio da internet. Espanta-nos, pois, saber que nasceu da pena (literalmente) de uma única pessoa, que não dispunha nem desses meios eletrônicos de pesquisa nem de um batalhão de incansáveis lexicógrafos auxiliares, valendo-se apenas do fichário de sua memória inconcebível. Otto Maria Carpeaux, que se chamava Otto Karpfen antes de chegar ao Brasil em 1939, fugindo de sua Áustria natal, que sofrera a anexação nazista, logo se impôs junto aos intelectuais brasileiros, entre os quais fez grandes amigos, que só lhe conseguiram arranjar de início modestas ocupações. Foi bibliotecário e colaborador de jornais, suplementando esses pequenos encargos com a venda de algumas obras raras que conseguira trazer na bagagem. Ele acreditou que a publicação de livros lhe pudesse garantir melhores ingressos e entregou à Casa do Estudante do Brasil seus dois primeiros escritos em português, A Cinza do Purgatório (1942) e Origens e Fins (1943), mas esses ensaios, ainda que substanciosos, estavam longe de espelhar a extensão de sua cultura e capacidade produtiva. Por sugestão de José Lins do Rego, pôs-se a trabalhar por dois anos (1944-45) na composição manuscrita das 5.000 páginas que resultaram nos originais da História da Literatura Ocidental, posteriormente datilografadas por sua mulher, d. Helena, e minuciosamente revistas por ele. A Casa do Estudante do Brasil não dispunha de recursos para bancar a obra que, somente em 1958, começou a ser publicada pelas edições O Cruzeiro, à época dirigidas por Herberto Salles. As tiragens eram irregulares e o 1º tomo, devido à má qualidade do papel, era tão volumoso – dificultando a consulta – que teve de ser desmembrado em dois após a publicação. Carpeaux se queixava das inúmeras gralhas daquela edição, facilmente imagináveis diante da profusão de nomes e obras citados em mais de dez línguas estrangeiras, o que deve ter infernizado a vida dos linotipistas de então. O último volume da edição O Cruzeiro (o VII, fisicamente o oitavo com o desmembramento inicial) só foi publicado em 1966, quando Carpeaux, graças ao amigo Antônio Houaiss, já atuava como co-editor da Grande Enciclopédia Delta-Larousse, numa posição afinal condigna e bem remunerada. Durante muito tempo, reviu e emendou minuciosamente a sua História, à espera que uma segunda edição fosse isenta de falhas. Foi quando conheceu Joaquim Campelo Marques, enciclopedista de profissão, que trabalhava com o lexicógrafo Aurélio Buarque de Holanda na feitura de um dicionário. Campelo era, também, dono de uma pequena editora (Alhambra), que acabou por se responsabilizar pelo lançamento da 2ª edição da História, revista e aumentada pelo autor. Já bastante adoentado e após uma sucessão de ataques cardíacos (ele fumava quatro maços de cigarros por dia), Carpeaux morreu em 1978 sem ver a reedição, que seria publicada naquele mesmo ano. Ocupando hoje a vice-presidência do Conselho Editorial do Senado, Campelo encontrou ali o veículo adequado para realizar agora esta 3ª edição com base nos originais da sua antiga Alhambra.

Ivo Barroso, poeta, ensaísta e tradutor, é autor, entre outros, de A Caça Virtual e Outros Poemas’

 

 

FRANÇA
Luiz Zanin Oricchio

Os dois ‘inimigos públicos’ que sabem faturar

‘Os dois são muito bem-sucedidos, e estiveram em campos opostos na fronteira política. O filósofo e articulista Bernard-Henri Lévi defendeu a socialista Ségolene Royal, enquanto o romancista Michel Houllebecq ficou com o conservador Nicolas Sarkozy. Trocaram farpas pela imprensa. E, sobretudo, trocaram cartas, algumas de alta temperatura polêmica. Curiosamente, uniram-se num projeto comum, o da publicação dessas cartas, que sai agora pela Frammarion-Grasset (336 págs., 20) com o título de Ennemis Publics. Quer dizer, os antagonistas tornaram-se sócios, num livro de nada menos de 100 mil exemplares de tiragem inicial. É um dos xodós da temporada literária francesa e ganhou capa de Le Nouvel Observateur, que adiantou trechos das cartas aos leitores.

No texto de introdução à matéria, a revista classifica o livro de bem-sucedida operação de marketing. Sobretudo pela maneira como Lévi e Houllebecq se reuniram – fazendo-se, ambos, de vítimas de diversos setores da sociedade, entre os quais a mídia. Anote-se aqui que Lévi, mais conhecido na França pelas iniciais, que já viraram uma espécie de logotipo – B.H.L. – mantém há muitos anos uma prestigiada coluna na concorrente da Nouvel Observateur, a também semanal Le Point, de feição mais conservadora.

Boa parte das cartas se resume a diatribes contra tudo e contra todos – jornalistas de má-fé, blogueiros, internautas, adversários ideológicos, enfim, o mundo todo. A Nouvel Obs se pergunta por que motivo dois dos mais ‘exportáveis’ escritores franceses teriam tantos motivos para queixar-se da vida. B.H.L é autor de vários livros traduzidos em português, entre eles American Vertigo, sobre os Estados Unidos. Houllebecq também está vertido em português e seus romances A Possibilidade de Uma Ilha e Partículas Elementares venderam bem por aqui. A única resposta possível para a pergunta que a revista se coloca é: ambos têm grande facilidade para vender-se como polemistas do momento.

Marketing à parte, a revista admite que, passada a primeira irritação com o oportunismo dos dois autores, pode-se encontrar, nas cartas, muito talento e encanto literário. É quando, por exemplo, cansado de destilar seu fel a respeito da perseguição que sofre dos jornais, B.H.L. se digna a falar de seus autores favoritos – Espinosa, Sartre, Flaubert, Mallarmé, Aragon e Levinas. O mesmo faz Houllebecq a respeito de Pascal, Schopenhauer, Baudelaire, Comte. Ambos também se reúnem no gosto pela poesia, ‘ao lado da qual o romance permanece um gênero menor’. Enfim, quando esquecem supostas perseguições e comportam-se como intelectuais civilizados, quem ganha é o leitor.’

 

 

 

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O Estado de S. Paulo – 2

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