Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Estado de S. Paulo


LIBERDADE DE IMPRENSA
Daniel Bramatti


Ranking da liberdade de imprensa indica retrocesso na América Latina


‘Quase todos os países da América Latina perderam posições, entre 2002 e
2009, no ranking mundial da liberdade de imprensa elaborado pela organização
Repórteres Sem Fronteiras (RSF). Relatórios de outras entidades, como a
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, serão divulgados em breve e também devem mostrar a
multiplicação de ameaças à livre expressão na região.


Fechamento de emissoras de rádio e televisão, projetos de lei para restringir
a ação de meios de comunicação, censura, agressões e até assassinatos de
jornalistas marcam o panorama da imprensa em países que, apesar do caráter
formal de sua democracia, ainda convivem com arbitrariedades quando o que está
em jogo é a livre circulação de informações.


Dos países latino-americanos, somente o Haiti subiu no ranking da Repórteres
Sem Fronteiras entre o primeiro e o mais recente levantamento feito pela
organização. Para atribuir a posição de cada país, a entidade leva em conta
episódios de violência contra jornalistas (como ameaças, detenções, agressões
físicas e assassinatos) e órgãos de imprensa (censura, assédio governamental,
pressões econômicas). São levados em conta não apenas abusos atribuídos a
agentes do Estado, mas também a milícias armadas, organizações clandestinas e
grupos de pressão.


Segundo Benoît Hervieu, responsável pelo escritório das Américas da RSF, uma
variação de até 10 posições no ranking pode não ser significativa – às vezes um
país perde posições não porque ficou pior, mas porque outros melhoraram. Ainda
assim, o cenário é de deterioração generalizada: 16 dos 20 países tiveram quedas
superiores a 10 posições (veja quadro).


Cinco dos sete maiores tombos no ranking ocorreram em países marcados pela
influência de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, país que caiu 47 posições
desde 2002.


‘Não é nada bom o caminho que as Américas estão seguindo’, disse Robert
Rivard, presidente da Comissão de Liberdade de Imprensa da Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP), ao comentar o grau de tensão entre imprensa e
governos. Rivard também citou países sob a órbita chavista, como Bolívia,
Nicarágua e Equador, como focos de preocupação. A situação de Honduras, que já
era vista pela SIP como problemática quando Manuel Zelaya – um aliado de Chávez
– estava no poder, piorou após o golpe que derrubou o presidente.


Mas o dirigente da SIP também destaca o agravamento da situação no México,
por conta da corrupção e da violência do crime organizado, e na Argentina,
país-sede da assembleia que a SIP promove até a próxima terça-feira.


A relação entre o governo argentino e o grupo midiático Clarín é marcada por
ataques mútuos desde 2008, quando o casal Cristina e Néstor Kirchner –
presidente e ex-presidente, respectivamente -, acusou a imprensa de favorecer os
fazendeiros que promoviam greve contra um aumento de impostos. Em setembro deste
ano, cerca de 200 fiscais do órgão responsável pela arrecadação de impostos na
Argentina fizeram uma operação de coleta de documentos na sede do conglomerado,
que apontou uma tentativa de intimidação – o que foi negado pelo governo.


O Grupo Clarín – que possui jornais, emissoras de rádio e televisão e explora
os principais serviços de TV a cabo no país – também foi o principal prejudicado
com a aprovação de uma lei de radiodifusão que impõe a desconcentração da
propriedade de meios de comunicação.


A SIP, que tem jornais do grupo Clarín entre seus associados, considerou a
lei ‘revanchista’. Já a RSF apoiou a desconcentração dos meios de comunicação –
no ranking da entidade, a Argentina caiu por outros motivos, como a violência
contra jornalistas no interior do país.


ATAQUES


Na Bolívia e no Equador, como na Venezuela, o tom beligerante dos governantes
em relação à imprensa é usual. O presidente equatoriano, Rafael Correa, já
chamou uma jornalista de ‘gordinha horrorosa’ durante um evento público. Correa
também provocou polêmica ao propor uma lei para regulamentar a imprensa. Após
protestos de entidades internacionais, o governo admitiu submeter o projeto à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos.


O boliviano Evo Morales disse, no final do ano passado, que ‘só 10% dos
jornalistas são dignos’. Morales acusa a imprensa de estar a serviço das
‘oligarquias’. Mas as reações a seus métodos não vêm apenas dos setores
empresariais. ‘Depois de resistir a tentativas de controle por parte da direita,
agora vemos com pesar que um partido que chegou ao poder encarnando as
aspirações de setores populares utilize os mesmos métodos e argumentos do
fascismo para tentar domesticar os trabalhadores da imprensa’, declarou, em
manifesto lançado em março, o principal sindicato de jornalistas da
Bolívia.’


 


***


Violações à livre expressão crescem na Venezuela


‘Nos primeiros nove meses de 2009, a Venezuela teve 165 casos de violação à
liberdade de expressão, segundo relatório divulgado recentemente pela ONG
Espacio Público. É como se o direito de informar e ser informado fosse violado a
cada 40 horas no país governado pelo presidente Hugo Chávez.


Para Débora Calderón, uma das coordenadoras da entidade, os números revelam o
agravamento da situação. ‘Em 2009, o número de casos até setembro já supera o
registrado em todo o ano passado’, afirmou.


Entre os casos considerados mais graves está o anúncio, feito pelo governo,
de que as concessões de 240 emissoras de rádio serão revogadas.’


 


Ariel Palácios


Aliados dos Kirchner voltam a bloquear jornais


‘Mais de 300 integrantes do sindicato dos caminhoneiros, o principal aliado
sindical da presidente Cristina Kirchner e do seu marido, o ex-presidente Néstor
Kirchner, bloquearam ontem de madrugada o acesso às gráficas do La Nación e do
Clarín. O cerco às gráficas dos dois principais jornais argentinos durou quatro
horas. A polícia nada fez e a Casa Rosada se limitou a convocar ‘paz
social’.


A Associação de Editores de Jornais de Buenos Aires (Adeba) afirmou que o
bloqueio é o maior ataque à circulação de jornais desde o fim da ditadura
militar, em 1983. A entidade emitiu um comunicado no meio da madrugada para
anunciar o ‘estado de máximo alerta’ perante o ‘insólito ataque’.


O sindicato citou questões trabalhistas para justificar a obstrução das
gráficas. Analistas políticos afirmam, porém, que por trás do bloqueio está o
casal Kirchner, que mantém duro confronto com a imprensa.


A ação coincide com a realização em Buenos Aires da assembleia da Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP), que avalia as pressões recentes sofridas pelos
jornalistas e empresas de mídia na região.


‘Aqui, depois da tempestade não virá a bonança, mas a inundação’, disse
Marcos Aguinis, filósofo, psiquiatra e ex-ministro da Cultura argentino.


Ontem, durante o painel da SIP ‘Os novos mecanismos de censura sutil’,
Aguinis, autor do best-seller O atroz encanto de ser argentino, disse que ‘não
há nada de sutileza no que está ocorrendo’. ‘São atitudes hostis com a imprensa.
Os jornalistas são acusados com nome e sobrenome desde a tribuna do palácio
presidencial, algo que nunca havia ocorrido desde a volta da democracia’,
afirmou.


Outra participante do painel, a jornalista María O’Donnell, autora de livros
sobre corrupção no governo Kirchner, disse que a publicidade oficial é uma das
formas de pressionar os meios de comunicação. ‘É ilustrativo que a publicidade
oficial na Argentina cresceu de US$ 11 milhões em 2003 para US$ 261 milhões em
2009’, disse.


Julio Blanck, editor do Clarín, afirmou que suspeita da existência de uma
rede de espionagem contra os jornalistas críticos ao governo Kirchner. Ele
sustentou, ainda, que o ‘sarampo anti-imprensa que afeta os Kirchner é parte de
um amplo mecanismo para tentar ficar no poder mais quatro anos’.’


 


***


Diretor da SIP faz alerta para região


‘‘Existe uma estratégia na América Latina para desprestigiar os meios de
comunicação’, alertou ontem Ricardo Trotti, um dos diretores da Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP). Segundo ele, a estratégia, que seria adotada
por vários governos da região, ‘é preocupante’.


Em declarações à rádio América, de Buenos Aires, ele afirmou que essas ações
‘quase sempre tentam dividir e criar polarizações’ na sociedade. ‘É triste que
tudo isso não é criado nas bases, mas no próprio Estado, que tem o dever de
assegurar os direitos e garantias. É esse Estado que incentiva que os direitos e
garantias sejam pisoteados’, frisou.


Em referência a mecanismos para controle da mídia por governos na região,
Trotti disse que a estratégia dos governos Kirchner e Chávez ‘assemelham-se’,
por desprestigiar a imprensa.’


 


MEMÓRIA
José Maria Mayrink


Francisco Mesquita, a resistência à ditadura


‘Como estudante de Direito e depois militante do Partido Democrático, que
ajudou a fundar, Francisco Mesquita defendeu a liberdade, ao lado do irmão,
Julio de Mesquita Filho. Os dois lutaram na Revolução Constitucionalista de
1932, foram presos e exilados em Portugal, de onde voltaram quando Getúlio
Vargas decretou anistia geral para tentar se reconciliar com os paulistas.
Quando O Estado de S. Paulo foi ocupado pela didatura, em março de 1940,
Francisco Mesquita vendeu suas ações sob protesto, prometendo voltar. Voltou, em
dezembro de 1945, para fazer do jornal uma empresa moderna.


Faz hoje 40 anos que morreu Francisco Mesquita, o empresário, político e
fazendeiro que, ao lado do irmão, Julio de Mesquita Filho, administrou o jornal
O Estado de S. Paulo de 1927 a 1969. Os dois irmãos morreram no mesmo ano, com
apenas quatro meses de diferença – Julio em 12 de julho, e Francisco em 8 de
novembro. Trabalhando sempre juntos, cada um em sua área, conforme determinara o
pai, Julio Mesquita, eles eram muito unidos e se entendiam bem em tudo.


Enquanto Julio de Mesquita Filho dirigia a Redação e determinava a linha
editorial, Francisco Mesquita cuidava da gerência e da modernização da empresa.
O Estado, ao qual se somariam a Rádio Eldorado e o Jornal da Tarde, ainda sob
sua administração, cresceu e lutou com independência pela liberdade de
expressão, apesar das dificuldades, perseguição e censura que seus diretores
sofreram durante longos períodos de ditadura, primeiro no governo Getúlio
Vargas, depois no regime militar de 1964. A resistência de Francisco Mesquita em
defesa da democracia começou quando ainda era estudante na Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco.


Era um dos fundadores da Liga Nacionalista de São Paulo e do Partido
Democrático, militância que o levou a participar da conspiração para a Revolução
de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder. Foi trabalhar na gerência do
jornal durante a Primeira Guerra Mundial, quando Julio de Mesquita Filho também
chegou à Redação para dirigir o Estadinho, edição vespertina do Estado que saiu
de 1915 a 1921. Em viagem à Europa, ele quis alistar-se como voluntário no
Exército da França. O pai não permitiu, embora o jornal apoiasse os Aliados,
posição que lhe custou o corte de anúncios de empresas alemãs em São Paulo.


Francisco Mesquita, que em 1921 havia se casado com Alice Vieira de Carvalho
e já tinha três filhos – Luiz (Zizo), José (Juca) e Maria Cecília -, foi um dos
principais articuladores da Revolução Constitucionalista de 1932. Antes de
completar 40 anos – ele nasceu em 22 de abril de 1893 – alistou-se no 4º
Regimento de Infantaria, em Quitaúna, para lutar na frente do Vale do Paraíba,
onde passou a integrar o Batalhão Voluntários da Pátria. Partiu da capital em 19
de julho e foi feito prisioneiro um mês depois, em 19 de agosto. Condenado ao
exílio, embarcou para Portugal com Julio de Mesquita Filho e mais 100 presos,
entre os quais o poeta Guilherme de Almeida.


O exílio durou dez meses. Os Mesquitas puderam voltar, porque Getúlio tentou
uma reconciliação com os paulistas e nomeou interventor Armando de Salles
Oliveira, cunhado de Julio, Francisco e Luiz Carlos, o irmão caçula, que
morreria em 1970. Francisco Mesquita foi eleito deputado estadual e exerceu o
mandato até o golpe de 1937, que fechou a Assembleia.


No ano seguinte, Armando de Salles Oliveira e Julio de Mesquita Filho foram
exilados novamente e partiram para Paris, de onde foram para os Estados Unidos,
na véspera da Segunda Guerra. De lá, Julio viajou para Buenos Aires. Ruy
Mesquita, diretor do Estado, fala desse segundo exílio:


‘Nessa época, nós não pudemos acompanhá-lo, pois estávamos estudando. Meu pai
não tinha condições de nos levar. Nós fomos morar com o casal Francisco
Mesquita. Fomos tratados como filhos, não havia a menor distinção.’


Francisco continuou na administração do jornal até março de 1940, quando a
Força Pública do interventor Ademar de Barros ocupou as instalações do Estado,
com a alegação de que os Mesquitas estavam escondendo armas para derrubar o
governo. Francisco Mesquita foi preso e mandado para o Rio, onde 40 dias depois
foi excluído do processo por decisão do Tribunal de Segurança Nacional e
libertado. Quando o jornal foi devolvido, em 5 de dezembro de 1945, Francisco e
Julio de Mesquita Filho, que havia voltado do exílio e se encontrava confinado
na fazenda da família em Louveira, reassumiram suas funções. Os dois recompraram
as partes que haviam sido vendidas e tornaram-se os únicos donos da empresa. Dos
nove filhos e herdeiros de Julio Mesquita (eram seis mulheres e três homens), só
Julio não vendeu as suas ações. Francisco Mesquita vendeu sob protesto, avisando
que voltaria, se pudesse. Os dois irmãos tiveram de fazer empréstimos bancários,
porque não tinham recursos para recomprar o jornal.


Veio então um período de grande prosperidade, como recorda Ruy Mesquita, pois
a empresa foi bem administrada pelos prepostos da ditadura. Francisco Mesquita
iniciou a fase de modernização. Vendeu a sede do jornal na Rua Boa Vista e
comprou um terreno na Rua Major Quedinho, no centro, para construção da nova
sede, inaugurada em 1953.


Foi ele quem comandou as obras e quem coordenou a compra de equipamentos
modernos. Os dois irmãos, Julio e Francisco, reuniam-se no início do expediente
para se inteirar das notícias do dia, discutir a linha do primeiro editorial da
página 3 e tratar dos rumos administrativos da empresa.’


 


Empresa moderna, com independência


‘Depoimento – Francisco Mesquita Neto


‘Meu avô era apaixonado pela fazenda. Durante as férias, que costumava passar
lá, eu o via sair a cavalo duas vezes por dia, para vistoriar a propriedade. Eu
tinha 14 anos quando ele morreu, mas me lembro bem dele na fazenda, que fica no
município de São Manuel, porque era lá que ele tinha mais contato com a família.
Éramos oito netos.


No campo profissional, Francisco Mesquita iniciou o processo de transformar o
jornal em empresa, sem prejudicar a independência editorial. Deu condições ao
Estado de se tornar uma empresa sólida. Construiu o prédio da Rua Major
Quedinho, no centro, dando-lhe estrutura para suportar o jornal que crescia. Ele
acreditava que uma empresa independente e moderna garantiria a independência
editorial. A construção do prédio da Rua Major Quedinho foi um salto tecnológico
para a empresa. O papel de Francisco Mesquita nesse processo foi muito
importante.’


*Francisco Mesquita Neto, Neto de Francisco Mesquita, foi superintendente do
Grupo Estado de 1988 a 2003. É membro do Conselho de Administração’


 


Ele vendeu, sob protesto, suas ações no jornal


‘Depoimento – Ruy Mesquita


‘Francisco Mesquita tinha mania de fazenda. Não gostava nada da profissão de
administrador de empresa. Ele herdou a direção de uma fazenda que era do Doutor
Julio, meu avô, na Noroeste, no município de Marília, numa área que depois
passou a ser município de Garça. Era uma fazenda produtiva, muito boa, de café,
que ele dirigiu depois da morte de meu avô. Assim que pôde, comprou uma fazenda,
que é da família até hoje, entre o município de São Manuel e o de Botucatu. Era
uma fazenda que não valia nada quando ele comprou, uma terra de má qualidade.
Ele a transformou numa fazenda-modelo. Tinha vocação para isso, gostava era de
fazenda.


Quando Getúlio Vargas ocupou e negociou, depois de muito tempo, a compra do
Estado, que tinha nove acionistas, todos venderam, com exceção de meu pai. Meu
tio Francisco vendeu sob protesto, dizendo que vendia forçado, para não
atrapalhar a vida dos irmãos. Avisou que, se tivesse chance de voltar, fazia
questão de comprar de novo. Meu pai não vendeu. Ficou sócio. E quando o jornal
foi devolvido – fez-se um estudo, não foi devolvido de graça – Francisco
Mesquita voltou. Ficaram só os dois sócios, meu pai e ele. Compensaram os
acionistas que tinham vendido em condições quase que de imposição de preço,
muito abaixo do que valia na realidade. Houve a avaliação do que deveria ser
dado aos acionistas. Ficaram com os bens imóveis, com a sede da Rua Boa
Vista.


Os dois irmãos, Julio e Francisco, tiveram de levantar dinheiro em bancos
para fazer isso, porque não tinham nem um tostão. Francisco Mesquita achou ótimo
o trabalho feito pelos prepostos da ditadura na parte administrativa do Estado,
um na parte comercial e outro na parte financeira. Quando voltou, manteve os
dois para ele ter mais folga para tratar de sua fazenda. O projeto da sede da
Rua Major Quedinho foi feito por ele, Francisco Mesquita, com o filho dele, Luiz
(o Zizo), que já era engenheiro. Não teve dificuldade nenhuma porque, justiça
seja feita, o governo administrou muito bem a empresa e a devolveu em situação
muito boa. A empresa teve então uma fase de prosperidade fantástica.’


* Ruy Mesquita, diretor do Estado, sobrinho de Francisco Mesquita’


 


Dois irmãos unidos no ideal


‘Depoimento – Maria Cecília Vieira de Carvalho Mesquita


‘Meu pai e meu tio Julio eram ligadíssimos, principalmente nas ideias
políticas. Defendiam sempre a mesma causa. Nunca tiveram discordância. Com o que
um dizia o outro concordava. Consultavam-se muito. Foi muito bom para a união da
família e acho que isso ajudou muito a meus irmãos, nas carreiras deles. Os
primos também foram amicíssimos. Durante o exílio de meu tio, seus filhos vieram
morar conosco. Zizo, meu irmão mais velho, tinha a mesma idade de Julio Neto. O
Ruy e o Juca também tinham a mesma idade. Carlão (Luiz Carlos) era um ano mais
moço que eu.


Quando meu tio foi para Buenos Aires, meu pai ia visitá-lo com frequência.
Minha mãe não podia ir, porque tinha de cuidar dos filhos e dos sobrinhos. Foi
uma época muito boa. A gente se dava muito bem. No fim, a gente até se
confundia: os tios eram como um segundo pai e uma segunda mãe. Era uma união
muito bonita a de nossa família, uma união espontânea.


Francisco Mesquita vivia entre o jornal e a fazenda. Quando minha mãe morreu,
a fazenda foi dividida em três partes, mas continuou com a família. Meu pai
gostava muito mais da fazenda que do jornal. Ele falava pouco, era tímido, mas
na fazenda ficava alegre e falava mais. Era muito tímido, mas tudo o que falava
era muito certo. Era também muito corajoso, muito valente.


Meu pai formou os filhos na administração. Chamava os filhos, pedia e dava
conselhos. Eles estavam a par de todos os negócios que papai tinha. Deixou os
filhos preparados para tomar conta da fazenda e do jornal – o Zizo como diretor
técnico e o Juca como diretor comercial.


Quando tio Julinho morreu, papai sentiu muito. Morreu quatro meses depois. Já
era doente, era diabético, tinha muito problema por causa da diabetes. Quando
tio Julio morreu, ele ficou tristíssimo. Foi definhando. Não podia ir mais ao
jornal. O Julio Neto ia toda tarde a minha casa, fazia relatório, dizia o que
estava acontecendo, pedia conselhos. Ficavam conversando sobre o jornal.’


* Maria Cecília Vieira de Carvalho Mesquita, filha de Francisco Mesquita, é
diretora do Feminino’


 


MURO DE BERLIM
O Estado de S. Paulo


Série do ‘Estado’está disponível na internet


‘O ‘Estado’ prossegue hoje com a série ‘20 Anos sem o Muro’, iniciada no
domingo passado. As reportagens e artigos publicados ao longo da semana estão
disponíveis, a partir de hoje, no Estadao.com.br. Entre eles, como o Muro foi
erguido, as fugas espetaculares e uma radiografia das transformações políticas e
sociais nos países do Leste Europeu, além de entrevistas exclusivas com o checo
Vaclav Havel, líder da Revolução de Veludo, e com o polonês Lech Walesa, um dos
fundadores do sindicato independente Solidariedade, o primeiro da Cortina de
Ferro.’


 


William Waack


A notícia não veio com o título ‘o Muro caiu’


‘Não veio nenhum título dizendo ‘O Muro caiu’ quando a notícia chegou à
redação do Estado na tarde de 9 de novembro de 1989. As agências – na época não
existia a internet tal como a conhecemos hoje, nem telefone celular – falavam em
‘suspensão das restrições de viagens’ para os alemães orientais. Mas o
significado era óbvio: para que um muro, se os alemães agora podiam ir para onde
quisessem?


A Berlim que eu encontrei no dia seguinte à tarde, descendo de um avião de
companhia americana no aeroporto Tegel (então só aviões da França, Estados
Unidos e Grã-Bretanha podiam voar para lá), no lado ocidental, nada tinha a ver
com a cidade que eu visitara tantas vezes enquanto correspondente na Alemanha,
de 1975 a 1984. Saíra da modorra confortável (subsídios garantiam a
contracultura) de ilha capitalista no mar comunista para um Estado de
efervescência contagiante. Os alemães contavam o que estava acontecendo como se
precisassem eles mesmos falar para acreditar.


Ajudado por um taxista que desligou o taxímetro passei a recolher alemães
orientais junto ao Muro e lhes oferecia carona para visitar algum parente no
lado ocidental, até então proibido. Ouvia um relato, registrava um reencontro, e
voltava para o Muro, em busca de outro alemão oriental. Foi a madrugada inteira
assim, interrompida apenas para assistir a um comício de políticos de vários
partidos, que dividiam o mesmo palanque e a mesma surpresa (hoje sabe-se que o
governo de Bonn havia sido avisado que algo ocorreria no dia 10, mas não deu
grande importância).


Fazia um frio que ninguém sentia, existia uma entusiasmada solidariedade
entre gente que não se conhecia e uma empolgação generalizada que levava
pedestres a saudar como heróis os Trabis, os carrinhos malcheirosos do lado
oriental. Eu mesmo me deixei contagiar pelo sentimento de ‘não consigo
acreditar’. Tinha visto o Muro muitas vezes antes – a primeira, por sinal, como
estudante e turista. O Muro era uma inestimável aula de política. Se o Muro era
virado para dentro, contra a própria população, como a propaganda política dos
regimes comunistas podia dizer que era uma proteção contra fascistas?


Na primeira vez que fora correspondente do Estado na então Alemanha
Ocidental, de 1975 a 1978, tinha sido citado uma vez num editorial do próprio
jornal para o qual trabalhava como o ‘jovem correspondente que teme chamar o
Muro pelo nome que ele merece, Muro da Vergonha’. O texto era de um
editorialista refugiado da revolta húngara de 1956 – portanto alguém que sabia
bem mais do que eu sobre os regimes impostos pelos soviéticos aos países que
ocuparam.


Eu precisaria ainda viver de perto a revolta trabalhista na Polônia a partir
de 1979, que cobri para o Jornal do Brasil, para tratar aquilo tudo com o nome
que merecia (e parar de brigar com notícia, como dizia o saudoso colega espanhol
Pepe Comas, correspondente do jornal El Pais): vergonhoso fracasso.


Era claro para todos nós, jornalistas que participávamos daquela cobertura,
que a queda do Muro não iniciava um processo, mas, sim, tornava estrondosamente
evidente a demolição de um sistema de ideias esgotado, corrupto e apodrecido.
Derrotado pela História. Mesmo assim, era impossível negar seu significado
único. Política e história andam de mãos dadas a símbolos e aquela barreira
gigantesca sucumbindo à vontade de milhões de pessoas era a expressão perfeita
do triunfo de direitos humanos.


Para os veteranos da cobertura do Bloco – e em 1989 eu era um deles – os
alemães orientais nunca foram dos mais simpáticos. Eles não tinham figuras
dissidentes de expressão, charme, vigor intelectual ou mesmo cinismo e humor,
como acontecia na Checoslováquia, Hungria e, principalmente, Polônia. E os
alemães ocidentais já não se importavam tanto com os ‘irmãos’ do lado oriental.


Na verdade – e isso era pauta recorrente para os correspondentes em Bonn -,
os ocidentais estavam perfeitamente acomodados à vida riquíssima de gigante
econômico e anão político no cenário internacional. Até serem atropelados pelos
acontecimentos da mesma forma que nós, jornalistas.


Lembro-me com muita força ainda de uma cena no meu café favorito em Berlim, o
Café am Literaturhaus, na Fasanenstrasse (agora meio decadente, com o
ressurgimento da Berlim central). Eu devorava os jornais da manhã pensando no
que escreveria de noite e perto da minha mesa havia outra com duas alemãs na
melhor fase dos 30 e tantos de idade – elegantes, bem vestidas, tomando o café
latte que aprenderam a apreciar na Itália. Foi quando uma família de alemães
orientais, empurrando um enorme carrinho de bebê, tratava de negociar à porta do
elegante café. ‘Das ist das ende’, disse uma para a outra – ‘Isto é o fim.’


E lembro-me também quando voltei para o Brasil, depois da cobertura do Muro,
de encontrar meu país engalfinhado no segundo turno da eleição presidencial,
Lula contra Collor, hoje tão amigos. Não tinha internet e eu, curioso para ver
como tinham saído os jornais brasileiros no dia 10 de novembro, a manhã após a
queda do Muro, levei uma lição de como a perspectiva de cada um atrapalha ou
ajuda a entender acontecimentos. ‘Silvio Santos não é candidato’, tinha sido
manchete mais destacada que a do Muro.


Ninguém precisa se envergonhar. Naquela mesma manhã a manchete principal do
jornal Pravda, em Moscou, tinha sido ‘Viva o dia da polícia soviética’.


*William Waack, âncora do ‘Jornal da Globo’, foi correspondente do ‘Estado’
na Alemanha, editor de Internacional e repórter especial. Ganhou dois Prêmios
Esso pelo ‘Estado’ – pela cobertura da Guerra do Golfo, em 1991, e pela série de
reportagens sobre os arquivos da KGB, em 1993.


TRECHO


(…) Por incrível que pareça, foi o Muro que levou, poucos anos depois, à
reaproximação das duas Alemanhas, arquitetada por Willy Brandt. ‘Ele não foi
derrubado, mas está cheio de buracos’, comentava o veterano chefe de governo. Em
silêncio, a liderança da Alemanha Oriental removeu nos últimos dez anos a ordem
de atirar para matar, as minas antipessoa e os cães ferozes.


A abertura da fronteira entre as duas Alemanhas de certa maneira recoloca
ambos os países na mesma situação de 1945, quando a fronteira era apenas uma
linha provisória aguardando uma definição dos vencedores da 2.ª Guerra. A
diferença é que, hoje, a divisão do mundo em duas partes parece bastante
superada e as duas Alemanhas têm outra consciência: a de que dificilmente alguém
as segura.


Em fevereiro de 1945, os (então) três grandes – União Soviética, Estados
Unidos e Grã-Bretanha – encontraram-se em Ialta (Criméia) para decidir o futuro
do mundo. Dentro de poucos dias, Bush e Gorbachev vão conversar em um navio de
guerra no Mar Mediterrâneo, próximo a Malta. Estarão sepultando 45 anos de
História.’ (…) (Trecho de reportagem de William Waack publicada pelo ‘Estado’
em 10/11/1989)’


 


CINEMA
Ubiratan Brasil


Morre Anselmo Duarte, diretor do filme O Pagador de Promessas


‘Maior galã do cinema brasileiro dos anos 1940 e 50, diretor do único filme
nacional a ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, alvo de críticas
incessantes dos diretores do Cinema Novo – o ator, roteirista e cineasta Anselmo
Duarte conheceu a glória e a amargura em sua vitoriosa mas turbulenta carreira,
que se encerrou ontem, com sua morte, provocada por um acidente vascular
cerebral, aos 89 anos, em São Paulo.


Ele foi internado no dia 16 de outubro no Hospital Universitário da USP com
um quadro grave: insuficiência renal, isquemia do miocárdio e anemia causada por
infecção urinária. Dois dias depois, foi transferido para o InCor e, de lá, para
o Hospital das Clínicas. O enterro será realizado hoje, no Cemitério da Saudade,
em Salto (SP).


Anselmo Duarte não filmava desde 1979, quando dirigiu Os Trombadinhas, filme
produzido e interpretado por Pelé. A partir dali, preferiu ficar longe do
cinema, vivendo um exílio voluntário. ‘A inveja pela Palma de Ouro desencadeou
um processo de aniquilamento, iniciado pelo pessoal do Cinema Novo e que fez com
que me sentisse sem ambiente no Brasil’, comentou ele em entrevista ao Estado em
1999. Na época, com disposição e saúde, sonhava que investidores estrangeiros
bancassem um velho argumento seu, Messias, o Mensageiro, uma paródia
contemporânea do Evangelho no qual o carteiro Messias é filho da lavadeira Maria
e do carpinteiro José.


Dono de uma franqueza que beirava a rudeza, Duarte era, no entanto, um exímio
contador de histórias, colecionadas em uma longa carreira, iniciada em 1947,
quando, descoberto por um caçador de talentos, estreou no filme Querida Suzana,
do italiano Alberto Pieralisi, que gostou do seu jeito de homem simples,
semelhante ao de Marcello Mastroianni.


Nascido na cidade paulista de Salto, em 21 de abril de 1920, Anselmo Duarte
Bento já se interessava por cinema desde a infância, quando assistia filmes
mudos na sala na qual seu irmão mais velho era projecionista. Como em Cinema
Paradiso, os dois roubavam fotogramas dos longas exibidos no cinema da cidade e
montavam seus próprios, exibindo-os em um projetor caseiro, feito com lata de
óleo vazia, uma lâmpada e os óculos da mãe como lente.


Trabalhou como datilógrafo em uma editora e aprendeu dança de salão até
conseguir uma participação (não creditada) no documentário It’s All True, que
Orson Welles dirigiu no Rio, em 1941. Seis anos depois, a contragosto, fez teste
para Querida Suzana, conquistando um papel e iniciando sua carreira de galã,
também contra a vontade – segundo ele, seus interesses eram mais ‘nobres’.


Logo seu nome uniu-se a experiências tão distintas como os estúdios Atlântida
e Vera Cruz. No primeiro, participou de filmes como A Sombra da Outra, Carnaval
em Fogo (ambos de 1949) e Aviso aos Navegantes (1950), sob a direção de Watson
Macedo. Em 1952, contratado pela Vera Cruz, solidificou a fama de galã ao
estrelar Tico-Tico no Fubá, no mesmo ano, e Sinhá Moça (1953). A disposição de
dirigir, no entanto, era maior e, depois de registrar os bastidores de Arara
Vermelha (1957), investiu os próprios recursos em na comédia Absolutamente
Certo!, também em 1957. Graças ao sucesso do filme, foi para a Europa disposto a
estudar cinema. Lá, chegou a atuar em filmes em Portugal e na Espanha.


De volta ao Brasil, interessou-se pela peça de Dias Gomes, O Pagador de
Promessas, e a transformou em filme, em 1962. Foi a consagração: além da Palma
de Ouro em Cannes (no qual competiu com O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, e O
Eclipse, de Michelangelo Antonioni), foi indicado para o Oscar de melhor filme
estrangeiro. ‘Quando voltei de Cannes, desfilei em carro aberto e os locutores
das rádios saudavam-me como se eu tivesse trazido mais um caneco para o Brasil’,
disse, em 1997.


O prêmio trouxe também dissabores. ‘Tudo por causa da inveja’, afirmou. ‘Era
o prêmio de cinema mais importante do mundo e eu ganhei. Outros tentaram chegar
lá e não conseguiram. Então, usaram a influência que o Cinema Novo tinha na
imprensa da época para esculhambar-me. Disseram que era um absurdo o prêmio sair
para um filme tão acadêmico, insinuaram que eu havia vencido porque era namorado
da Christiane de Rochefort, que na época era assessora de imprensa do festival e
tinha considerável influência lá dentro.’


Foi o início de uma fase de filmes com más críticas e pouco público.
Desgostoso, abandonou o cinema e só voltou a sentir novamente o gosto da fama em
1997, quando foi um dos homenageados do 50º Festival de Cannes. Lá, sentiu-se de
fato como um realizador reconhecido.’


 


QUADRINHOS
Andrei Netto


Resistência francesa


‘Pense por um instante no símbolo da França. Você deve ter tido em mente
cidades como Paris, monumentos como a torre Eiffel, palácios como o Louvre,
intelectuais como Rousseau, Descartes, Durkheim, escritores, pintores, heróis
nacionais como De Gaulle e Vercingentorix. Pois acrescente outro gaulês em sua
seleção: Asterix. Sim, Asterix, o gaulês das ficções em HQ, tornou-se um
patrimônio nacional. A prova é que, ao completar 50 anos de idade, o anti-herói
baixinho e bigodudo que teme a queda dos céus sobre sua cabeça é centro de
atenções da mídia e da opinião pública, merecedor de exibições recordistas de
audiência na TV, de um novo livro e de uma exposição inédita no Museu Nacional
da Idade Média, no sítio histórico de Cluny, no coração do país.


A febre em torno de Asterix e Obelix, que se irradia também pela Europa, é,
na realidade, uma homenagem aos personagens criados por René Goscinny e Albert
Uderzo há meio século. Em outubro de 1959, vinha a público a revista Pilote, que
trouxe a primeira história da dupla, dois anos antes de Asterix, o Gaulês, livro
que inaugurou a série.


Desde então, as aventuras dos dois gauleses ao lado de mais de 400
antagonistas já renderam desenhos animados, filmes, discos, jogos de videogame e
um parque temático, além de 34 livros, traduzidos em 107 línguas – inclusive o
latim. O último é L’Aniversaire d’Astérix et Obélix – Le Livre d’Or, que chega
às livrarias brasileiras na próxima quarta-feira (O Aniversário de Asterix e
Obelix – O Livro de Ouro; Record; tradução de Cláudio Varga; 56 páginas; R$
25,90). Compêndio de histórias curtas, lançado originalmente em 15 países, com
tiragem recorde de 3 milhões de exemplares, dos quais 1,1 milhão só na França, o
álbum é fruto de um tributo planejado por Uderzo, 82 anos. ‘Queria fazer com que
todos os personagens que apareceram nos livros pudessem ter voz no aniversário’,
afirmou, em uma das raras entrevistas que concedeu nos últimos anos.


Além de livros de sucesso, Asterix e Obelix rendem também filas de uma hora
de espera, que denunciam o local onde está sendo realizada a mostra Asterix no
Museu Cluny. A exposição, confluência inesperada de ficção e realidade, é uma
reverência a Asterix, um pavilhão da cultura nacional que invadiu um patrimônio
da humanidade.


Protagonista de histórias em quadrinhos, o gaulês ganhou espaço digno da
importância que conquistou no imaginário dos franceses: está entre as paredes de
pedras milenares do recém-restaurado frigidarium de Cluny, um monumento da
história galo-romana situado no marco zero da cidade de Lutétia, como Paris era
chamada pelos césares. Nada mais apropriado, já que seus autores sempre buscaram
inspiração em relíquias históricas para alimentar suas narrativas. A mostra
reúne 30 pranchas originais desenhadas por Uderzo, scripts de Goscinny, além de
objetos – como uma Keystone Royal, a máquina usada pelo escritor – que ajudam a
esclarecer o processo de criação de dois mestres das histórias em
quadrinhos.


A homenagem vem acompanhada de outra exposição, esta realizada nas grades que
cercam o sítio de Cluny, nas quais desenhos de Uderzo são comparados a
obras-primas da pintura ocidental. Assim, postas lado a lado, estão poses de
Asterix, Obelix & companhia, e reproduções de telas como Olympia, de Manet,
A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix, A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, e
de esculturas como O Pensador, de Rodin, de forma a escancarar a influência da
arte erudita na obra do desenhista – ainda que perdure a dúvida sobre a natureza
da inspiração, que pode ser tanto compreendida como uma reverência à arte ou uma
paródia escrachada dos dois humoristas.


O certo é que a efervescência pública em torno dos 50 anos do personagem e a
reflexão intelectual feita em torno da obra de Goscinny e Uderzo abriu os olhos
da imprensa, do meio acadêmico e até do político para um fenômeno: na avaliação
dos franceses, Asterix é muito mais do que uma HQ que deu certo e vendeu milhões
de cópias; é também fruto e origem de fragmentos da história da França _ uma
constatação que reforça os laços entre os personagens fictícios e seu público
fiel.


‘Decidimos reunir Asterix e o Museu de Cluny porque são dois monumentos
nacionais’, disse ao Estado Emmanuelle Héran, curadora e encarregada da política
científica da Reunião de Museus Nacionais (RMN), o órgão que controla os maiores
acervos de arte da França. A decisão, afirma, foi tomada pelo reconhecimento de
que Asterix se confunde em parte com a história do país.


Até os anos 1950 e 1960, aprendia-se nas escolas da França que
Vercingentorix, filho de Celtillos, o líder gaulês, povo celta, na luta contra o
invasor romano Júlio César, na Guerra das Gálias, entre 58 e 51 a.C., era o
herói fundador da nação francesa. Esse mito, criado no século 19 por autores
como Amédée Thierry e por Henri Martin, adotado por Napoleão III e
instrumentalizado a partir de então pelo Estado Republicano, é um dos elementos
do patriotismo francês. Ele ajuda a explicar, por exemplo, o desejo de revanche
após a derrota para a Alemanha unificada na Guerra Franco-Prussiana (1870) – e
também a beligerância entre os dois países líderes da Europa Continental, que se
confrontariam nas guerras mundiais.


Asterix, por sua vez, é a paródia de Vercingentorix, mas ainda com matizes
nacionalistas. ‘Desde sua primeira página, Asterix traz referências à ocupação
alemã na Segunda Guerra Mundial’, explica Emmanuelle Héran, lembrando da
Resistence Française. ‘Em uma época na qual não se falava no colaboracionismo
francês, Asterix reforçava a ideia de um povo que luta, que resiste, que é
idealista e decente’. E esse povo é branco, loiro, tem olhos azuis, é forte e
peleador. Asterix reforça o estereótipo que a França tinha – ou tem? – de si
mesma: a de um país cujo arquétipo é puro, sem miscigenações. ‘Nos anos 50 e 60,
aprendia-se que os franceses eram os descendentes diretos dos gauleses’, lembra
a curadora. ‘Essa visão não era completa e não favorecia a inclusão das ondas de
imigrantes que já transformavam os franceses em um povo mestiço.’


Reprimendas históricas à parte, o fato é que Asterix conta com a empatia dos
franceses e com a simpatia dos estrangeiros. Em todo o mundo, as histórias de
Goscinny e Uderzo são sucesso. Dentre os cerca de 400 milhões de exemplares já
vendidos, 125 milhões foram parar nas mãos de fãs alemães – os alvos iniciais da
ironia dos dois humoristas. As razões do sucesso são diversas, e passam pelo
detalhismo de Uderzo, pelas manias perfeccionistas de Goscinny e por um enredo
clássico, como a luta entre Davi e Golias, marcado por valores universais (como
a oposição entre cosmopolitas, os romanos, e autóctones, os gauleses). Não
bastasse, suas histórias fazem alusões à vida corrente, grande parte delas
tipicamente francesas: Asterix e sua turma mantêm vivas suas tradições, brigam
entre si permanentemente, mas se unem e lutam por seus ideais, reagem aos
estrangeiros que ousam desafiá-los, prezam a solidariedade. E, claro, amam um
banquete regado a vinho no fim da história.’


 


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