CENSURA NO ESTADÃO
‘Imaginei que o Brasil não voltasse a ver censura prévia’
‘O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que a liberdade de imprensa é o contrapeso ‘fundamental’ para a democracia. ‘A crítica sempre incomoda. Mas a função de quem está na mídia é criticar e de quem está no governo é entender a função da mídia. Não pode, como agora, antes de qualquer coisa, dizer que você não pode entrar em tal matéria. Me parece absurdo.’
Para FHC, que combateu o regime militar de 1964, a censura prévia pela qual passa o Estado é um resquício daquele período. ‘Imaginei que o Brasil não voltasse a ver esses momentos de censura prévia.’ Abaixo, a entrevista:
Como o sr. vê a censura ao Estado?
Com espanto. Imaginei que o Brasil não voltasse a ver momentos de censura prévia. Depois que o STF acabou com a Lei de Imprensa, dava a impressão de que iríamos para outro caminho.
No Brasil, há um flerte com medidas autoritárias?
Isso no Brasil é permanente. Nossa raiz histórica não é democrática. As pessoas custam a aceitar o jogo da democracia, do respeito à lei. A tendência é da arbitrariedade do poder. A democracia aqui tem de ser cuidada permanentemente porque toda hora há forças, no fundo, contrárias a ela.
Que forças são essas?
Forças culturais. Isso vem da nossa cultura, que é formada numa visão onde a separação entre o público e o privado é confusa, onde o favoritismo, o clientelismo e o arbítrio permanecem como uma tendência. Aqui a ideia de quem pode, quem não pode se sacode é generalizada.
A ANJ diz haver uma escalada de decisões na Justiça contra liberdade de imprensa no País.
Não poderia dizer que há uma escalada, mas como isso tem uma base cultural, quando não há forças que contrapõem firmemente, isso renasce. Mesmo neste último congresso sobre os meios de comunicação houve tendências controladoras. Não creio que prevaleçam. A minha aposta é que as forças mais abertas, mais democráticas, avancem no Brasil.’
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‘O empresário Fernando Sarney, filho do senador José Sarney, apresentou na última sexta-feira, véspera do recesso forense, pedido de desistência da ação contra o Estado, mas a censura ao jornal permanece em vigor. A partir de 7 de janeiro, término do recesso, o jornal será intimado a decidir se concorda com a extinção ou prefere que a Justiça aprecie o mérito.
Mariana Uemura Sampaio, diretora jurídica do Grupo Estado, afirmou que, no momento, o anúncio tem ‘apenas efeito midiático’. O pedido do empresário foi feito nove dias após o Supremo Tribunal Federal ter arquivado reclamação do jornal contra a censura sem decidir sobre seu mérito.’
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‘Há na América Latina esse risco à liberdade de imprensa, em razão de medidas recentes adotadas na Venezuela, na Argentina?
Também. Na América Latina toda, e em muitas partes, existe essa tendência que vem junto com outras coisas, como tendência ao monopólio, a achar que é o Estado que deve fazer tudo. Isso vem tudo junto, é um bloco cultural que já se expressa em tradições e instituições e, depois, em crenças e pessoas que se entusiasmam por ideias autoritárias.
Há correlação entre liberdade de imprensa e desenvolvimento?
Sim. No fundo, a integração da Europa generalizou regras de comportamento mais calcadas em valores da competitividade, da transparência e de respeito à regras. A gente não consegue aplicar essas regras nem no Mercosul. O Brasil fica hesitando entre assumir claramente esta posição, a da democracia, do respeito à regra e da transparência, e namorar com regimes que são mais controladores, mais autoritários. Como sempre, namorando com o outro lado.
Esse contexto demonstra fragilidade das instituições brasileiras?
Acho que sim. A própria opinião pública não cobra. Não é que a imprensa não cobra, a imprensa fala. A opinião pública se encolhe diante disso. Agora parece que a própria opinião pública não ecoa. Não toma posição diante das coisas. Vai para o outro caso, a questão da corrupção. Todo mundo sabe que para mudar a questão é a impunidade. Mas quem é que cobra punibilidade? As pessoas que foram alegadamente acusadas de corrupção são muito bem recebidas na sociedade, continuam atuando como se nada houvesse.
O sr. disse recentemente que há uma inércia no País hoje.
Há uma certa inércia. Precisamos tentar despertar o sentimento de maior consistência com os valores. Mas hoje vivemos numa sociedade que quem a organiza é o mercado. O mercado tem regra. Mas que outros valores existem, em que mais está baseada a sociedade? Na solidariedade? Muito pouco. Coesão? Muito pouco. Na participação, na vontade de que as pessoas realmente se informem e tenham uma opinião mais clara? Muito pouco. E um País não pode ser só o mercado. Tem de ter os valores. Valor da democracia, da liberdade da imprensa. Aqui está tudo sendo resumido a ‘cresceu ou não cresceu’ e ‘a quanto cresceu’. Aumentou o poder de compra? Isso é muito bom, mas não basta. O resto está um tanto descuidado. As instituições, ao meu ver, não se fortaleceram nestes últimos tempos.
Isso se reflete na questão da liberdade de imprensa?
Sim, porque as pessoas ficam mais ou menos preocupadas com outros valores.
O sr. acha que os contrapesos da sociedade estão frágeis?
Exatamente. Não há democracia se não houver contrapesos. E a liberdade de imprensa é fundamental para isso. Fui presidente, ministro, a crítica sempre incomoda. Mas a função de quem está na mídia é criticar, e de quem está no governo é entender a função da mídia. Claro que quando a mídia exagera, mente, distorce, tem que reclamar também. Se você é ofendido, tem de ter um tribunal que te defenda. Mas não pode, como agora, antes de qualquer coisa, dizer que você não pode entrar em tal matéria. Me parece absurdo.
Na Presidência, teve algum assunto que o sr. gostaria que tivesse sido censurado?
Nunca. Olha, aguentei durante dois anos uma chantagem de um negócio chamado Dossiê Cayman. Eu, o Mário Covas. Uma chantagem. Aquilo apareceu como se fosse uma possibilidade, sem que ninguém tivesse dito de onde saiu o dinheiro. O que eu fiz? Fui para os tribunais. Para reclamar não da mídia, mas de quem tinha feito. Aliás, diga-se de passagem, até hoje não foi julgado. Está errada também essa morosidade das decisões. Mas vontade de censurar, nunca.
Além da morosidade, a Justiça ainda está submetida à influência política?
Existe influência política, morosidade e legislação inadequada. Não é a Justiça só, é um conjunto. Mas trabalhamos pouco para mudar essas questões. Agora, devo dizer, o Conselho Nacional de Justiça tem tido um papel importante de acelerar decisões. Uma das razões pelas quais há sensação de impunidade na questão da corrupção é porque há mecanismos protelatórios de decisão. Tudo é protelado. Aquele cara nos Estados Unidos que deu um golpe (Bernard Madoff) está na cadeia. Aqui só está na cadeia o juiz Lalau, aliás desde o meu tempo. Não vou dizer que no meu tempo tinha muita gente, não, porque também não tinha. Não é uma questão do presidente, é mais amplo do que isso. Temos que continuar mantendo uma pregação pela liberdade e democracia. Denunciar o arbítrio, não deixar que esses valores mais atrasados voltem.
Há dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade?
Acho que é uma falsa dicotomia. Uma coisa é direito à privacidade, que todo mundo tem de ter. Outra é limitar o direito de expressão antes de saber se afetou qualquer direito de privacidade. Se você está metido numa falcatrua de ordem pública, aí não é privacidade. Você pode dizer: eu não quero ser condenado antes de julgado. Tem todo direito.
Qual o papel da liberdade de imprensa no fortalecimento democrático?
É fundamental. Mas liberdade você só sente quando deixa de tê-la. É como oxigênio. Como em geral não está acontecendo nada, as pessoas não dão valor. Mas é só começar a ter um processo de limitação de liberdade que as pessoas vão perceber que muda tudo. Como caiu o regime autoritário no Brasil? Houve muita pressão. Participei ativamente disso. Mas caiu efetivamente quando foi possível enfraquecer a censura e fazer com que as notícias circulassem. Fora isso, o que acontecia no Brasil, tortura e tudo o mais, pouca gente tomava conhecimento e poucos se mexiam para lutar contra.
Eram poucos que gritavam. Na medida em que havia censura, isso não transpirava. No momento em que a opinião pública, sobretudo a televisão, começou a noticiar o que estava acontecendo, houve grandes mobilizações populares, que cercaram o regime. Mas isso não existiria se não tivesse havido a liberdade de imprensa.
Essa censura prévia ao Estado é um resquício de 1964?
Não tenha dúvida. Trabalhei na época do regime autoritário num jornal chamado Opinião. E havia censura. Era um inferno. Ao censor você mandava um artigo, eles cortavam palavras, frases. Você tinha que mudar, ficava naquele dilema: se diz então ‘não publico’, ninguém sabe por que não publicou. Se você publica, não publica exatamente o que está pensando, tem que mitigar. É inaceitável.
Qual mensagem fica para os que achavam que o Brasil estava livre da censura?
Infelizmente, dada a anestesia no Brasil, a reação é pequena. Deveria ter sido maior. Estamos vivendo um momento difícil porque vem junto com a expansão da economia. Como é o mercado que rege a sociedade no Brasil, infelizmente, o resto fica obscurecido. É uma pena. Espero que agora, com a eleição, a sociedade desperte um pouco mais.’
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