Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O médico e o vizinho

Olavo de Carvalho deu sua opinião dia 19/02 no Diário do Comércio (ver aqui) sobre o seu conceito de Darwin. Se opinião, diz o popular, fosse bom, não se dava, se vendia. Afinal, opinião qualquer um dá, é um juízo de valor. Alguns ficarão contra Darwin por simpatia com Olavo, outros passarão a admirar o mesmo justamente por isto, não se agradar do jornalista. Seus simpatizantes já espalham o texto preconceituoso como iluminação. O que, como a sua indecisão pelas alegações, deixa o esclarecimento do assunto e a opinião inútil. Opinião até o sapateiro pode dar e o pintor grego Apeles (352-308 AC) aceitou, mas só até onde ele entendia: Ne sutor ultra crepidam. Seria como se a pessoa deixasse de ouvir o médico e fosse pedir conselhos de saúde para o seu vizinho. É o que faria Olavo de Carvalho: ‘Há muito tempo já compreendi que os cientistas são ainda menos dignos de confiança do que os políticos…’

Certa visita de Olavo de Carvalho à PUC de Porto Alegre, o mesmo explicou que não dava importância para os jovens de esquerda que não perdiam cinco minutos com a leitura para querer ser ouvidos. E parece que é assim como este texto típico do jornalista Olavo de Carvalho, mais um ataque pessoal, argumentum ad homini, do que a demonstração de um conhecimento que deveria possuir para opinar. Encerra muito desconhecimento, o que é natural para uma pessoa que não pratica ciência, não vive seu método e conhece só de ouvir falar, como o vizinho do médico. Usa preconceitos e falácias como forma de argumentação num texto carregada de adjetivações e arrogância, como são seus textos, repito. O OI guarda exemplos clássicos do olavismo na discussão entre o engenheiro José Colucci e ele: ‘Resposta a um fantasma de Boston‘, por Olavo de Carvalho em 3/8/2004; ‘Novos blefes de um vigarista contumaz‘, por Olavo de Carvalho em 19/10/2004. É importante colocar estas referências porque Darwin o mundo todo conhece, já Olavo de Carvalho nem todos, mesmo no Brasil, ouviram falar.

A hipótese divina

A seleção natural, ao contrário do que Olavo disse, jamais foi descartada pela biologia no estudo da evolução. É um fundamento básico do entendimento do mecanismo da evolução. Até mesmo Michel Behe, no seu livro A caixa preta de Darwin, concorda com ela. Então não entendeu as dicas que lhe deram para não perder tempo estudando o assunto. Nada desmerece Darwin ter usado pistas de outros autores, como não faz por menos Galileu aceitar o helicentrismo de Copérnico. Um ataque inútil em ciência. A teoria da evolução já se desenhava com Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) para explicar as evidências encontradas, como com Alfred Russel Wallace (1823-1913), que assustou Darwin acelerando a publicação de A Origem das Espécies; e por Gregor Johann Mendel (1822-1884), Ernst Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919) (a ontologia recapitula a filogenia).

A evolução não depende mais de Darwin. Ele apenas, como fez Galileu, com a situação do sol, como Newton com a queda da maçã, descobriu as três leis da gravitação universal, como Sir Alexander Fleming (1881-1955), com a penicilina, ele desvendou a evolução. Nem o Sol depende de Galileu, os astros para se deslocarem ou maçãs caírem estão sujeitos de Newton, a penicilina já se multiplicou, assim como a evolução não vai deixar de existir como fato. A física quântica não vai desaparecer porque Einstein morreu. Tenha sido ele um judeu, um ateu ou um budista.

Diga-se de passagem, que mecânica celestial ficou famosa pelo hábito que tinha seu autor de afirmar que de uma equação A é óbvio que segue a equação B. Estudiosos levam horas, e até dias, para entender por que o raciocínio é tão óbvio. Conta-se que Napoleão, após haver folheado a obra, teria observado não haver menção de Deus. O astrônomo e matemático francês marquês de Pierre Simon Laplace (1749-1827) teria respondido: ‘Não necessito dessa hipótese.’ Hoje esta hipótese divina para explicar o movimento dos astros não é mais passível de ser pensada. Quanto mais ensinada como alternativa para as crianças.

A evolução e o holocausto

Não existe nada no nacional-socialismo do partido dos trabalhadores alemães que possa ser entendido como uma prática evolucionista. Culpar Darwin pela teoria da evolução é tão tolo como culpar Koch pela descoberta do bacilo da tuberculose e o tratamento doloroso inicial. Ou as mortes por choque anafilático pela penicilina. Culpar o inventor da cirurgia pela lobotomia séculos depois. Seria tolice não aceitar as leis de Newton porque ele era carola, estudioso de alquimia e de versões bíblicas. Como não faz sentido aceitar as suas versões bíblicas como divinas porque ele desvendou a gravitação universal. Esta é a diferença da ciência. Não depende de autoridade (argumentum ad verecundiam) e desejo, mas das evidencias posteriores. O que Olavo de Carvalho argumenta é que como ‘ele’ não gosta de Darwin, não devemos aceitar a teoria da evolução. E por isto escolheu cultuar o criacionismo tratando os cientistas como religião nos seus argumentos. A penicilina não funciona porque nós simpatizávamos com Fleming. É um non sequitur: se Obama é negro, então não poderá ser bom presidente. Se partido dos trabalhadores alemão criou o nazismo, então todos trabalhadores farão o mesmo.

Outro apelo para a rejeição da evolução, no seu ver, é uma réplica da defesa do obscurantismo. Que é perigoso desvendar os segredos de deuses, pois podemos abrir a caixa de Pandora e perder o controle. Vamos sair por aí fazendo genocídios. O que não faz sentido. Muito antes da ciência, Moisés matou milhares de judeus que adoravam o bezerro de ouro em nome do Deus de Olavo, os judeus obedecendo ao desenhista inteligente fizeram o genocídio gozoso com os impuros cananeus e tomaram suas terras. A igreja purificou com fogo os hereges, judeus, bruxas e pecadores na inquisição. Os católicos purificaram a ambiente na noite de São Bartolomeu jogando pela janela 20.000 protestantes. Olavo não enxerga nada de mais por estes motivos. Os turcos eliminaram os armênios e os sérvios os bósnios. Não foi a constatação da evolução em biologia que gerou o holocausto.

Melhor é ouvir o cientista

Filosoficamente, ensinava Sexto Empírico, o cético pirrônico é levado a suspender o juízo (epokhé) diante da impossibilidade da escolha sobre argumentos equivalentes acerca de qualquer questão, para alcançar a tranqüilidade da alma (ataraxia). Olavo de Carvalho sofre demais com a indecisão numa recusa filosófica pela sabedoria. Se confiasse na filosofia um pouco mais teria aceitado que a hipótese de um desenhista inteligente é equivalente ao argumento de Santo Thomas de Aquino das provas da existência de Deus. Uma prova a piori. Chamada de Ontológica e desmascarada por Immanuel Kant (1724-1804), como ideias a priori ou estritamente racionais, diferente aos fatores a posteriori resultantes da experiência, que estamos tratando. David Hume (1771-1776), tinha ido muito longe quando reduziu todo conhecimento a elementos empíricos ou a posteriori. O argumento ontológico, encontrado em Santo Anselmo (1033-1109) e em Descartes, nos mostra Kant que a ‘existência’ é uma das categorias a priori do conhecimento. A existência é uma categoria aplicável às percepções sensíveis e, portanto, só é valida quando aplicada a objetos do conhecimento: o que é conhecido primeiro existe, a coisa é conhecida como existente, e não o contrário, isto é, existe porque imaginado. Aplicar as categorias de existência, de substância, de causa é o ato pelo qual estabelecemos os objetos a conhecer, os fenômenos. Não é suficiente ter a idéia de algo, há de se ter à percepção sensível correspondente, tê-la ou poder tê-la, e é isso justamente o que falta à idéia de Deus, a coisa à qual se aplique a categoria da existência. A idéia de um desenhista é a repetição exaustiva da explicação divina: a causa do movimento do rio, do ar, da criação da montanha, da doença, do vulcão. Uma explicação de uma causa a priori estabelecida irracionalmente e que se tenta, pela defesa da Bíblia, voltar à mesma inculta explicação dos povos primitivos.

Não faz sentido o apego a uma religião apenas para explicar uma coisa, quando outras religiões são compatíveis com os fatos científicos. O desenhista inteligente, além de se duvidar desta inteligência, não é uma explicação, mas justamente a falta dela. É melhor ouvir o cientista do que tirar dúvidas com o vizinho.

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Médico, Porto Alegre, RS