Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo

LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Mario Vargas Llosa

Em defesa do direito de mentir

‘Por maioria esmagadora e com apenas duas ou três abstenções, o Parlamento Europeu declarou que é um delito passível de punição a negação do Holocausto, ou seja, a matança de 6 milhões de judeus perpetrada pela Alemanha de Hitler nos campos de extermínio criados nos anos 30 e 40 na própria Alemanha e nos países da Europa Central ocupados por nazistas. Este acordo dos parlamentares europeus responde a tentativas esporádicas, porém ruidosas, de historiadores de extrema direita que, nos últimos anos, tanto na Alemanha quanto na França e na Inglaterra, procuraram negar ou reduzir a importância daquele genocídio. Responde também aos surtos de anti-semitismo que, de uns tempos para cá, ocorrem com freqüência alarmante na União Européia.

Por que, depois de ler a notícia, fiquei incomodado com a medida adotada pelo Parlamento Europeu? Obviamente, não é por cultivar a mais mínima dúvida sobre a horrenda carnificina cometida pelos nazistas contra o povo judeu. Li muito a respeito e senti náuseas visitando alguns dos lugares onde se perpetrou a matança, como Auschwitz e Buchenwald, e senti que me escorriam as lágrimas ao percorrer o sóbrio e aterrador museu de Yad Vashem, em Jerusalém, e o de Washington, nas duas ou três vezes em que lá estive, tanto que não guardo a menor suspeita sobre a verdade dessa matança, um dos mais vergonhosos crimes contra a humanidade, com a agravante, neste caso, de que os criminosos pertenciam a uma das sociedades mais cultas do mundo.

Mesmo assim, vejo um risco muito grande para a liberdade intelectual e para a liberdade política no reconhecimento da faculdade dos governos ou parlamentos de determinar a verdade histórica, castigando como delinqüente quem se atrever a impugná-la. Por mais que tenha uma pura origem democrática, como é o caso do Parlamento Europeu, quem detém o poder político não está em condições de decidir, com a objetividade, o rigor científico e o distanciamento moral exigidos por uma atividade intelectual responsável, a natureza e o significado dos fatos que compõem a história. Democrático ou autoritário, o poder funciona sempre dentro de coordenadas nas quais razões de atualidade, patriotismo, oportunidade, ideologia ou fé ofuscam freqüentemente o juízo e podem desfigurar a verdade.

O patriotismo, por exemplo, é arriscado em termos científicos porque, como disse Borges, dentro dele ‘só afirmações são toleradas’. Por isso, na Turquia é constitucionalmente proibido mencionar o genocídio de cerca de 2 milhões de armênios cometido por este país, assunto que, só por ser mencionado, levou recentemente aos tribunais vários jornalistas e intelectuais, entre eles o romancista Orhan Pamuk, premiado com o Nobel. E a Turquia, lembremos, é uma democracia, ainda que imperfeita.

As verdades oficiais são um traço característico das sociedades autoritárias, sem dúvida, mas não deveriam ser um traço das democracias. Por acaso na Rússia de Vladimir Putin, ex-funcionário da KGB, os historiadores podem investigar livremente a função desempenhada por esse sinistro corpo policial no envio de milhões de vítimas ao Gulag siberiano? Como o país continua admitindo o princípio das verdades oficiais, é provável que os jovens russos desta e das futuras gerações nem sequer cheguem a suspeitar que, durante o stalinismo soviético, vários milhões de seus compatriotas pereceram sob as torturas e a fome nos campos de extermínio para dissidentes criados pelo poder. E que muitos desses supostos dissidentes não eram outra coisa que inimigos pessoais dos donos do poder, ou seja, inocentes segundo a própria legalidade soviética, sacrificados por razões de mera rivalidade ou intriga pessoal. Como a mentalidade chauvinista vigente na Rússia atual não tolera atitudes antipatrióticas, os historiadores russos não poderão investigar e elucidar, em toda sua crueldade ofuscante, o fenômeno que Soljenitsyn denunciou no Arquipélago Gulag, até que a Rússia, desafortunado país, seja algum dia uma verdadeira democracia.

E quanto às vertiginosas matanças multitudinárias da ‘revolução cultural chinesa’ desencadeadas por Mao? Calcula-se que pelo menos 5 milhões – talvez até 20 milhões ou mais – tenham desaparecido nessa orgia demencial desatada pelo líder da China Popular em seu esforço para – como o Calígula de Camus – ‘acabar de uma vez por todas com as contradições da sociedade’. A verdade oficial do atual ou de qualquer governo chinês futuro, mesmo que seja democrático, dificilmente admitirá um crime coletivo dessa dimensão, pois consideraria desonroso e desmoralizador o reconhecimento de semelhante ignomínia. E nenhum governo quer semear entre os governados a vergonha e a desonra. Por isso, nas sociedades livres, quem se encarrega de trazer à tona esses depósitos de lixo são os historiadores, não os políticos. Aqueles podem investigar com a devida calma, revisando documentos, testemunhos, ponderando as informações quase sempre tingidas de partidarismo ou preconceito e, sobretudo, divergindo entre si, pois a comparação e o contraste de conclusões podem nos aproximar das verdades históricas, muitas vezes escorregadias e confusas.

Nas mãos dos políticos, a história deixa de ser uma disciplina acadêmica e se transforma num instrumento de luta política, para ganhar pontos contra o adversário ou promover a própria imagem. É compreensível que aqueles que vivem acossados e escravizados pela urgente atualidade e as obrigações do poder careçam da mínima disposição de espírito e da serenidade intelectual necessárias para chegar a julgamentos aceitáveis sobre assuntos precisos do suceder histórico.

Uma sociedade democrática que acredita na liberdade não deve impor limites às idéias, nem mesmo às mais absurdas e aberrantes. E deve autorizar que os historiadores se enganem ou tropecem, sustentando por exemplo que a Terra é quadrada, a Igreja Católica nunca queimou as bruxas ou as guerras napoleônicas não existiram. Negar o Holocausto é, sem dúvida, uma estupidez monstruosa. Mas as possíveis conseqüências criminais desta negação devem ser decididas pelos tribunais caso a caso, de maneira concreta, pois de outro modo o precedente criado pelo Parlamento Europeu poderá encorajar muitos políticos e politiqueiros ávidos por popularidade, amparados neste exemplo, a promover em seus próprios âmbitos a aprovação de leis equivalentes defendendo verdades menos evidentes que o Holocausto e, às vezes, não verdades, e sim essas mentiras que o patriotismo, a fé ou a ideologia querem fazer passar por verdades.

De resto, já sabemos que as coisas costumam se transformar segundo o ângulo de observação. Em muitos casos, as verdades históricas são relativas e admitem interpretações ou questionamentos dentro de contextos variados. Não nego que existam uma verdade e uma mentira, e sim que a fronteira que as separa possa ser determinada pelo poder político numa sociedade livre. Precisamente, o que diferencia uma sociedade aberta é que as verdades estabelecidas são sempre submetidas ao exame e à crítica, para ser confirmadas, matizadas, aperfeiçoadas ou retificadas pela livre investigação. Ninguém pode duvidar das boas intenções que levaram os parlamentares europeus a declarar a negação do Holocausto um delito. Com isso, eles tentam resistir de algum modo ao renascimento do anti-semitismo, câncer que desgraçadamente volta a mostrar a cabeça na Europa, onde já era considerado quase extinto. Mas é uma ingenuidade acreditar que, pela declaração de ilegalidade, pode-se combater com eficácia o preconceito, a estupidez ou qualquer outra manifestação intelectual da irracionalidade e da crueldade humanas. Pelo contrário, a imposição de uma verdade histórica a partir do poder cria um perigoso antecedente e pode justificar futuras limitações da liberdade intelectual.

Nas democracias, as idéias falsas geralmente são derrotadas e eliminadas graças à liberdade de crítica e ao debate intelectual, e a verdade científica vai assim abrindo caminho num bosque de confusão e equívocos. Mas nem mesmo as sociedades livres são isentas de ter amparado enormes erros e falsidades históricas. Para corrigi-las não há outra fórmula além de manter acessível a todos os cidadãos a livre expressão do pensamento, estimulando o debate e a divergência, e a existência das ‘verdades contraditórias’, como Isaiah Berlin as chamava.

Combatamos o anti-semitismo e todas as expressões do racismo e da xenofobia com toda a severidade da lei, levando aos tribunais e às prisões quem traduz essas perversões ideológicas em atos concretos, mas deixemos aos historiadores a tarefa de diferenciar as verdades das mentiras históricas. Os políticos têm problemas mais urgentes a resolver.

TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA’

MEMÓRIA / OCTAVIO FRIAS DE OLIVEIRA
O Estado de S. Paulo

Missa de 7.º dia reúne parentes e amigos

‘Parentes, amigos e admiradores prestaram homenagem ontem a Octavio Frias de Oliveira, em sua missa de sétimo dia. O publisher do Grupo Folha morreu no último domingo em São Paulo, aos 94 anos. A cerimônia, na Igreja Santuário Nossa Senhora do Rosário de Fátima, no bairro do Sumaré, foi realizada por d. Manuel Parrado Carral, bispo auxiliar de São Paulo.’

RC vs. PLANETA
Daniel Piza

Tomando ciência

‘‘Recolher os exemplares do livro de Paulo César de Araújo sobre Roberto Carlos é ato de censura’

POR QUE NÃO ME UFANO

Se Roberto Carlos se sente difamado por revelações ou falsas revelações sobre seus casos amorosos, que entre com uma ação e ela seja julgada e, se for o caso, que haja retratação e/ou erratas em futuras edições. Mas recolher os exemplares do livro de Paulo César de Araújo – que é cheio de informações e argumentos sólidos e até exagera em sua exaltação do ‘rei’ – é um ato de censura, um atentado à liberdade de expressão. Não é coisa de país sério.’

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Folha de S. Paulo – 1

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O Estado de S. Paulo – 2

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