40 ANOS DE CEM ANOS DE SOLIDÃO
Ecos de Macondo
‘Colômbia – No dia 5 de junho de 1967 foram para as livrarias de Buenos Aires 8 mil exemplares da primeira edição de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, livro que encantou toda uma geração, inaugurou o ciclo do realismo mágico latino, indicou novos rumos à literatura da América Latina, foi traduzido para 40 idiomas, vendeu mais de 30 milhões de exemplares em todo o mundo e levou seu autor à conquista do Nobel.
O ano de 2007 marca grandes efemérides para García Márquez: no dia 6 de março, ele chegou aos 80 anos de idade; em setembro, transcorrerão 60 anos da publicação de seu primeiro conto, La Tercera Resignación; em dezembro, vão completar-se os 25 anos da conquista do Prêmio Nobel de Literatura. A Real Academia Espanhola da Língua acaba de lançar uma nova e rica edição de Cem Anos de Solidão com uma tiragem de 1 milhão de exemplares, com um texto aperfeiçoado por García Márquez.
‘Pensar que 1 milhão de pessoas pudessem ler algo escrito na solidão do meu quarto, com as 28 letras do alfabeto e dois dedos como todo meu arsenal, pareceria, a qualquer mortal, uma loucura’, disse ele, tenso, no discurso que leu no lançamento da edição, no Congresso da Língua Espanhola, em Cartagena, em presença do rei da Espanha, o ex-presidente Bill Clinton e os escritores Carlos Fuentes e Álvaro Mutis.
Cem Anos de Solidão eternizou Macondo, a vila fantástica onde se desenvolve a história. Mas seus personagens, cenários e histórias são todos inspirados na terra natal de García Márquez, Aracataca, no Caribe colombiano. Lá, os sinais, cenários e personagens elucidam Cem Anos de Solidão – as histórias recolhidas pelo escritor convivem com outras que poderiam perfeitamente integrar um de seus livros.
O avô que o criou, Nicolás Márquez, coronel da Guerra dos Mil Dias, é a encarnação terrena do coronel Aureliano Buendía em suas aventuras militares. As borboletinhas amarelas esvoaçam em Aracataca, prenunciando chuva. Mas a banana, em torno da qual se desenrolam as tragédias de Macondo, foi substituída, na economia do norte colombiano, pelo carvão mineral e pelo etanol da palma africana.
García Márquez virou um superstar na Colômbia. Originalmente um homem de esquerda, amigo de Fidel Castro, na Colômbia ele não fala de política. Aos 80 anos, recém-saído de um câncer linfático aparentemente controlado, ele continua um bom gourmet, embora já não beba as generosas doses de puro malte que bebia no passado. Mas continua dizendo aos amigos: ‘Escrevo para ser querido pelos amigos.’’
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Personagens mágicos e tragédias agudas
‘Chamava-se Academia de Bailes. Uma edificação em dois volumes, uns 150 metros quadrados, a papayera, orquestra de 12 a 24 músicos tocava ininterruptamente na Aracataca dos anos 20, epicentro da febre bananeira, onde se concentravam os bons partidos da Colômbia. As moças, esmeradas no vestido, nas jóias, na maquiagem e no penteado, sentavam-se em cadeiras alinhadas junto às paredes. Tomando uísque, os bons partidos fluíam de um lado para outro, mirando as señoritas.
De repente, o convite. Trêmula, a moça jogava no giro da roleta: daquela dança podia sair um casamento de ocasião ou a inevitável condenação à solteirice eterna ou à prostituição amaldiçoada – nenhum homem se casaria com mulher que já tivesse dançado com outro. A mesma construção centenária que abrigava a Academia de Bailes é hoje ponto de exercício do ócio; no lugar onde evoluíam os pares, jovens sem perspectiva jogam em oito mesas de sinuca, sintetizando a diferença entre a Aracataca fantástica do início do século 20, prenhe de fantasias, da Aracataca desesperançada do século 21.
Esta é uma história de Aracataca nunca contada por Gabriel García Márquez. Como ela, existem muitas outras, plenas de personagens mágicos e pontuadas por tragédias agudas. Como disse Carlos Fuentes, com indissimulada ponta de inveja, as histórias de Aracataca se apresentaram prontas – ‘Aqui estoy. Así soy. Ahora, escribeme.’ Gabo aceitou a oferta generosa e espontânea, acolheu uma parte delas para encorpar o realismo mágico e pavimentar a sua trajetória para o Prêmio Nobel. Nem todas as histórias – tantas eram – couberam em seus livros e ainda hoje permanecem virgens na cidade.
A INSPIRAÇÃO DE MACONDO
A 80 quilômetros de Santa Marta, capital do departamento de Magdalena, Aracataca tem hoje 52 mil habitantes, quatro vezes mais que os 12 mil habitantes de 1927, ano em que Gabo nasceu. À época, os trabalhadores sofriam os achaques da companhia bananeira; hoje, simplesmente não há empregos. Graças às patrulhas permanentes do Exército, a guerrilha das Farc já não seqüestra pessoas na estrada que vai de Santa Marta a Bosconia, que passa pela entrada da cidade. Mas os acampamentos guerrilheiros estão bem ali ao lado, nos altos da Serra Nevada, e no vizinho departamento do Cesar.
A inspiração de Macondo, no entanto, segue viva. A velha botica, na esquina da Avenida Monseñor Espejo com a Rua dos Turcos, a um quarteirão e meio da casa da família Márquez Iguarán (palco, em 1950, do momento em que Gabo decidiu contar as histórias da infância), está de pé, hoje desempenhando o simplório papel de armazém. Rústica, de madeira e zinco, a velha construção tem um estranho telhado alto e inclinado, não para escorrer uma neve que nunca cairá ali, mas para ‘quebrar’ o vento nas tormentas devastadoras de Aracataca.
Dentre todos os velhos mistérios de Macondo, a Rua dos Turcos perdeu o encanto. O seu comércio, florescente nas primeiras décadas do século 20 e palco de mistérios de Cem Anos de Solidão, hoje se resume a bares que só vendem cerveja e pobres tiendas para comercializar chamadas a partir de celulares, a 150 pesos (R$ 0,15) o minuto, revelando a indigência econômica da cidade. A única livraria faliu, constata Rafael Dario Jimenez, diretor da casa-museu Gabriel García Márquez.
O Rio Aracataca mantém suas ‘águas diáfanas’ (menos na estação das chuvas, a partir de maio, quando elas descem amarronzadas da serra Nevada), com suas inconfundíveis pedras redondas e brancas, tal qual um inesgotável ninho de ovos pré-históricos, como o rio de Macondo. Os ciganos têm vindo pouco; quando vêm para negociar cavalos, são mal recebidos pelos cataqueros, que os têm na conta de ladrões. Os circos sumiram; vez por outra chegam parquinhos mambembes. Mas a gallera (rinha de galos) mantém a tradição que vem do início do século 20, quando Gabo nasceu.
AS BORBOLETINHAS DA CHUVA
A cidade, chame-se Aracataca ou Macondo, cresceu mas ainda encarna um museu mitológico de Cem Anos de Solidão. É inevitável, por exemplo, emocionar-se com o sobrevôo errático das borboletinhas amarelas, que evoluem em nuvens para anunciar as chuvas. Ainda hoje o imaginário popular tem como certo que casar primo com prima gera filho com rabo de porco. ‘Claro que nasce com rabo de porco’, assegura Maria Magdalena Bolaños, a Mamá.
Mamá, que faz 90 anos no dia 22 de julho e já programou que no dia vai juntar os 15 filhos, 48 netos, 15 bisnetos e 5 tataranetos para uma festa digna de Macondo, deixou de ser babá de Gabo há 74 anos para tornar-se prostituta, até que um homem a tirou da vida para casar. Diz ter saudades de Gabo, que viu pela última vez quando visitou Aracataca, há mais de 20 anos, depois de ganhar o Nobel. Na época, não teve coragem de abordá-lo. Morrendo de saudade, olhou de longe e lembrou do ‘menino travesso e esperto’.
A siesta continua sendo um ato de sobrevivência. Ao calor estridente do meio-dia, é impossível quedar-se ao sol. Apenas as crianças arriscam correr nas ruas; quem precisa caminhar, protege-se com um guarda-chuva, útil também na estação das chuvas. Os moradores escancaram portas e janelas das casas e se deixam cair ao chão, esfregando-se nos ladrilhos para esfriar o corpo, numa lerdeza paralisante.
As plantações de banana não são mais o epicentro da economia do norte colombiano; de tanto ser garroteada, a United Fruit Co., que chegou à região no início do século 20 e virou vilã anônima de Cem Anos de Solidão, mudou o nome para Chiquita Brands. As enormes casas dos gringos que a dirigiam estão abandonadas, com as velhas piscinas vazias e carcomidas. No lugar da banana, a economia do norte da Colômbia volta-se hoje para a extração de carvão mineral e para o cultivo de palma africana, fonte do etanol colombiano.
Na cidade, o tradicional vallenato (ritmo parecido com forró), que Gabo canta tão bem, perdeu espaço para uma música pop sofrível – algo assim como uma música sertaneja colombiana -, tocada em altíssimo som nos incontáveis pequenos bares, onde os jovens cataqueros jogam sinuca e bebem quantidades industriais de cerveja para rebater o calor aplastante – uma permanente sensação térmica de uns 45°C.
De todos os cenários de Cem Anos de Solidão, apenas o massacre de trabalhadores bananeiros, que no livro acontece na praça de Macondo, não ocorreu em Aracataca, mas na estação de Ciénaga (a 25 quilômetros de distância), a 1 hora da madrugada do dia 6 de dezembro de 1928, quando Gabo tinha 1 ano e 9 meses. Há um número oficial de 9 mortos, a imprensa da época falou em 100, mas a imaginação popular delira até hoje com milhares de trucidados, ao gosto do realismo mágico, versão que Gabo incorporou.’
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Casa em que viveu García Márquez será reconstruída
‘A casa da família Buendía, tal como descrita em Cem Anos de Solidão, era, sem tirar nem pôr, a casa da família Márquez Iguarán, construída no início do século 20, em madeira ceiba roja, com telhado de zinco – um grande forno para cozinhar pessoas sob o calor saárico de Aracataca. Quando Gabriel García Márquez nasceu, em 1927, um cômodo coberto de sapé, que servia como quarto de hóspedes, tinha sido destruído por um incêndio.
A ala principal começa por um intrigante jardim de inverno – que inverno, onde? -, seguido por quatro quartos enfileirados: o primeiro deles era do avô Nicolás Márquez e da avó Tranquilina Iguarán; o segundo, dele, Gabo; o terceiro, das tias solteiras; e o quarto, o quarto dos baús, que escondia os mistérios. Na outra ala ficavam sala de jantar, cozinha, quarto de hóspedes e o taller de platería (oficina de prataria), onde o avô fabricava os peixinhos de prata.
No quarto dos baús, o menino Gabo encontrou uma edição sem capa das Mil e Uma Noites, a primeira leitura que o maravilhou. Só descobriria o título daquele livro mágico muito tempo depois, quanto teve coragem de confessar que entrara no quarto e lera o alfarrábio quase ininteligível que foi, muito possivelmente, a fonte primária que lhe deu uma visão mágica do mundo e que potencializou as fantasias sobre as histórias contadas pelo avô Nicolás.
Entre as duas alas, ficava uma passagem coberta – ao qual a família deu o antológico apelido de ‘corredor das begônias’, celebrizado no livro. Num quarto, no fundo do quintal, viviam os três índios guaiús – Apolinar, Remedios e Alírio – que Nicolás comprou por 300 pesos e que tinham tratamento afetuoso da família. Eles foram homenageados no livro: o corregedor de Macondo é Apolinar Moscote; a personagem encantadora que sobe ao céu é Remedios, a Bela; e o médico de Macondo é Alírio Noguera.
Hoje sede da casa-museu Gabriel García Márquez, a casa – abalada por cupins e pelas raízes de um pivijay (ficus) – foi posta abaixo há dois meses e será reconstruída, igualzinho era antes de 1925, graças a uma verba de US$ 528 mil do governo colombiano. Pouco importa que vá parecer fake: o que os cataqueros mais temiam é que ela desabasse, transformando em pó o patrimônio cultural que fez a cidade famosa e que talvez venha a lhe emprestar vocação turística.’
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Trajetória marcada sempre pela sorte
‘A despeito do seu imenso talento, Gabriel Garcia Márquez não pode se queixar da fortuna, um anjo da guarda sempre presente, a lhe indicar os mais bem traçados caminhos. Começou por ter nascido num lugar mágico, cheio de histórias, personagens e situações fantásticas. Sua segunda sorte derivou do que seria um desconforto infantil: ser criado pelo avô Nicolás, um veterano da Guerra dos Mil Dias, fonte dos inesgotáveis relatos de rebeliões armadas que enriqueceu os livros de Gabo.
Mas dichas se sucederam, vida afora. Aos 17 anos, a leitura de um livro, A Metamorfose, de Franz Kafka, presenteado por um amigo, o convenceu a ser escritor. Com o Bogotazo, a grande revolta popular de Bogotá, em 1948, teve de abandonar o curso de Direito e fugir para Cartagena. Sem trabalho, recebeu um convite de Clemente Savala, chefe de redação do El Universal, que por acaso lera o seu primeiro conto, La Tercera Resignación, e lhe atribuía talento. Aos 20 anos, ganhou uma coluna de crônicas, Punto y Aparte.
A sorte o seguiu. O poeta Gustavo Ibarra lhe deu a obra completa de Sófocles. Pouco depois se mudou para o El Nacional, de Barranquilla, com seu amigo Álvaro Cepeda, que lhe emprestou Luz de Agosto, de William Faulkner – que, segundo Gabo, o ensinaria a dominar o estilo. Em 1949, outro amigo lhe presenteou A Senhora Daloway, de Virginia Woolf, cuja leitura lhe ensinou a dominar o fluxo da linguagem, segundo ele próprio.
Mas o presente vital veio na forma de dois livros – Pedro Páramo e El Llano em Llamas (O Chão em Chamas), ambos de Juan Rulfo, matrizes do que depois se chamara realismo mágico – dados por seu eterno amigo Álvaro Mutis. ‘Ouvi ele contar que esses livros o tiraram de uma encruzilhada e apontaram o seu caminho literário’, conta Eric Nepomuceno, tradutor de Gabo no Brasil e seu amigo há mais de 30 anos.
TUDO POR UM LIVRO
Com Álvaro Cepeda (que morreria precocemente), German Vargas, Alfonso Fuenmayor (todos personagens de Cem Anos de Solidão) e o pintor Alejandro Obregón, Gabo formou o Grupo de Barranquilla, cujo principal ponto de encontro era a livraria Rendón, que pertencia ao catalão Ramon Vinyes (e que, em Cem Anos de Solidão, aparece como a ‘livraria do sábio catalão’).
Sua última grande sorte foi, já morando no México, onde tentava sem êxito ser roteirista de cinema, fazer uma aposta radical para escrever Cem Anos de Solidão – e vencer. Resolveu parou de trabalhar, disse à mulher Mercedes que enchesse a geladeira de suprimentos e passou 18 meses escrevendo. Quando a situação piorou, Mercedes pediu empréstimos aos amigos; depois, levou as jóias de família a um penhor; o homem examinou tudo com uma lente e decretou: ‘É tudo vidro’, relataria Gabo depois.
Em junho de 1966, Mercedes convenceu o dono do apartamento onde viviam a receber o aluguel depois que ele fizesse sucesso. E marcou data: disse que pagaria tudo em 7 de setembro de 1966 – três meses depois – confiando apenas num primeiro contato da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires, que se interessara pela obra. O locador topou. A sorte de sempre seguiu ajudando: o primeiro cheque da Sudamericana chegaria em 4 de setembro.
Gabo não usava papel carbono para não gastar mais papel. Fazia uma primeira revisão com caneta de tinta preta e uma segunda em vermelho. Tudo era datilografado pela mecanógrafa Esperanza Araiza, a Pera, que tinha trabalhado com Carlos Fuentes, Juan Rulfo e Luiz Buñuel. Num dia de chuva, Pera desceu do ônibus e os únicos originais de Cem Anos de Solidão caíram numa poça d’água. Ela catou folha por folha, por sorte sem perder nenhuma, e levou aquele bolo encharcado para casa, passando cada página a ferro.
Recentemente, a sorte pareceu abandoná-lo. Gabo foi alvejado por um câncer linfático. Tratou-se num oncologista de Los Angeles que tem uma enfermeira colombiana. ‘Ele está muito bem agora’, disse ao Estado, em Cartagena, seu irmão mais novo, Jayme García Márquez. Embora com alta, volta ao médico a cada quatro meses para novos exames. Os resultados demoram 48 horas para ficar prontos: ‘A cada vez’, contou ao amigo Eric, ‘essa espera de 48 horas é uma tortura’. Mas as notícias seguem oportunamente boas.’
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Multidão cerca escritor em sua volta à cidade natal
‘Quem volta à terra natal já velho vem para se despedir, profetiza a tradição popular colombiana. Por isso Gabriel García Márquez não voltava a Aracataca, garantiam seus conterrâneos – se voltasse, sinalizaria a sua morte. Mas o velho artífice de mitos voltou inesperadamente esta semana, depois de 20 anos ausente. Chegou às 15h15, num trem com locomotiva amarela, e foi embora às 17h30, depois de percorrer a cidade numa carroça vermelha, puxada por um cavalo e protegida por soldados do exército.
Nas duas horas em que esteve lá, foi sufocado por um rio de gente, conta Rafael Darío Jimenez, diretor da casa-museu Gabriel García Márquez, uma multidão de jovens que não havia nascido quando ele esteve na cidade pela última vez. Passou pela rua dos Turcos, visitou a Biblioteca Remedios La Bella, conheceu a Escola Gabriel García Márquez, sempre acompanhado pela ministra da Cultura da Colômbia, Paula Marcela Moreno Zapata, e pelo cantor Rafael Escalona, conhecido intérprete de vallenatos, seu velho amigo. Parecia bem-humorado: fez até careta para os fotógrafos.
Esse tipo de coisa acontece porque em Aracataca e na Colômbia existem dois deuses, o do céu e um outro na terra. O da terra chama-se Gabriel García Márquez e cumpre o papel de máximo herói nacional – a cantora pop Shakira e o meia-atacante Carlos Valderrama, ídolos da música e do futebol, não lhe fazem sombra. Recentemente se queixou a um amigo de Barranquilla: não ia a Aracataca porque as pessoas lhe atribuem poderes celestiais e pedem de tudo, de dinheiro emprestado à operação de milagres.
Há meses, uma roda de conversa em Cartagena se espantou ao ouvir Gabo dizer aquilo. ‘Se vocês souberem por aí que eu estou surdo ou gagá, não se espantem. Sou eu que ando espalhando o boato’, dissera ele. E explicou aos interlocutores, entre eles o jornalista paulista Ricardo Viveiros: era um hábil ardil para fugir dos pedidos, na rua, nos eventos, nas aparições públicas, sem que lhe acusassem de grosseria.
No último dia 3 de abril, em Cartagena, ele ligou para a chefatura de polícia e pediu para ser recebido pelo chefe. Ia pedir mais segurança para sua casa-fortaleza, na praia de Marbella, recentemente assaltada por ladrões que arrombaram o cofre e lá encontraram, em vez da esperada montanha de dólares, apenas a escritura do imóvel.
A casa, à Calle del Curato, tem duas magníficas amendoeiras na frente, lembrando Macondo. É o refúgio cartagenero de Gabo e a única construção moderna junto à magnífica muralha histórica da cidade – beneplácito de que só ele, deus na terra, consegue desfrutar, já que ninguém em seu país sabe lhe dizer ‘não’. Cercada por muros de 4 metros de altura e agora guardada por seguranças com escopetas, a casa virou referência turística da cidade.
Quando chegou à chefatura de polícia, Gabo encontrou uma multidão de policiais com a nova edição de Cien Años de Soledad nas mãos, uma mesa pronta para os autógrafos, recepção com salgadinhos, refrigerante e ampla cobertura da imprensa. A mulher de um policial pediu-lhe ajuda para a Associação dos Policiais local; ele negou a ajuda, mas deu os autógrafos.
Bem longe vão os tempos em que, acusado pelo governo colombiano de envolvimento com o M-19 e expulso do país, ele foi buscar proteção diplomática do México para ter onde morar.’
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‘Sem ele, isso não existiria’, diz morador
‘Antonio Jaramillo, líder de grupo musical da região, relembra o Gabo menino
Bem que o atual alcalde (prefeito) de Aracataca, Pedro Javier Sanchez, tentou substituir esse nome disfônico por Macondo. Em junho de 2006 promoveu um plebiscito para votar a mudança. Dos 22 mil eleitores, só votaram 3.596 ; 93% foram favoráveis a mudar o nome, mas os dois terços que a lei exige (7.400 votantes) não foram alcançados. O prefeito, então, mandou colocar um enorme cartaz na entrada da cidade, nomeando-a na marra Aracataca-Macondo.
Desde 1982, quando o Nobel de Literatura consagrou definitivamente Gabriel García Márquez, Aracataca flutuou no julgamento de seu filho mais ilustre. Primeiro, caiu de amores por ele; depois, o sufocou de pedidos e cobranças na visita que fez à terra em 1987. Como ele reagiu mal e prometeu não voltar, Aracataca deu-lhe a recíproca: passou a falar mal dele.
Os versos do paseo-vallenato Aracataca Espera, do compositor Armando Zaballeta, desancam Gabo. ‘É capaz de não fazer nada por sua terra, está deixando cair a casa onde nasceu’, dizem. Mas já não repercutem na cidade. O prefeito decretou que 2007 é o ‘Ano García Márquez’. ‘Pedem tudo a ele, mas quem tem de fazer as coisas é o governo’, diz Sanchez.
Alfredo Correa, irmão do maior amigo de Gabo, Luiz Carmelo, critica: ‘Pedem tudo a Gabo, como se ele fosse deus.’ Nicolás Ricardo Árias, de 71 anos, primo-irmão de Gabo, dono da tienda El Tauro, defende o parente ilustre: ‘É só por causa dele que a cidade é conhecida no mundo inteiro’, afirma. Alfonso Orozco Villero, 74, cujo avô esteve na Guerra do Mil Dias, tem orgulho por ser conterrâneo de um Nobel : ‘Ele não poderia fazer mais do que já fez.’
Antonio Jaramillo, o Perro Negro, líder do melhor grupo musical da cidade, o defende: ‘Sem ele, isso aqui não existiria’, diz. Ele é um personagem típico de Macondo: aos 78 anos, tem 39 filhos de 8 mulheres e 120 netos e bisnetos. Vivia ao mesmo tempo com três mulheres, mas uma morreu e agora, inquieto, ele procura uma substituta. Lembra de Gabo menino e, modesto, afirma que nunca foram amigos. Mas admite que só foi convidado para lançar um disco em Bogotá porque é de Aracataca.’
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O dia em que gabo conheceu o gelo
‘INSPIRAÇÃO: O alongado trem de 120 vagões da mineradora Drummond, movido por três locomotivas – como o trem de 200 vagões, igualmente acionado por três máquinas, que em Cem Anos de Solidão leva os milhares de mortos do massacre dos trabalhadores – passa muitas vezes ao dia em Aracataca, cruzando os 163 quilômetros entre as minas de carvão mineral de Cerrejón e o porto de Ciénaga.
As rodas crepitam sobre os trilhos a poucos metros do imenso barracão da Empresa Electrificadora de Aracataca. Foi a esse barracão imenso que, no início da década dos 30, o avô Nicolás levou Gabo a conhecer o gelo – artigo de imperiosa necessidade na terra -, ali fabricado com água retirada do rio desde 1921.
Nicolás era sócio da empresa. No livro, o fundador José Arcadio Buendía se desconcerta com a novidade: ‘É o maior diamante do mundo’, afirma perplexo aos filhos, sendo corrigido pelo cigano Melquíades: ‘Não, é gelo.’ Em Aracataca todos sabem: quem confundiu gelo com diamante foi mesmo o menino Gabo, então corrigido pelo avô e coronel Nicolás Márquez, que o criou na primeira infância. Hoje o barracão abriga a oficina de tratores de José Gómez Arron Nuñez, um mecânico que nunca leu um livro de Gabo.
O avô Nicolás, coronel na Guerra dos Mil Dias (1899-1902), entre liberais e conservadores, inspirou Gabo na criação de pelo menos dois personagens. Nicolás perdeu a guerra dos Mil Dias; o coronel Aureliano Buendía, as 32 rebeliões armadas. Nicolás cunhava peixinhos de prata; Aureliano, de ouro. Nicolás chegou a Aracataca fugido, depois de matar Medardo Pacheco en La Guajira; José Arcadio, o iniciador da estirpe, fugiu de Riohacha depois de matar Prudencio Aguilar, após uma desavença numa gallera, e foi fundar Macondo.’
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Por um engano, editor recebeu o final do romance
‘Tudo começou em 20 de fevereiro de 1950, uma segunda-feira, quando Gabriel García Márquez acompanhou a mãe numa ida a Aracataca para vender a casa da família. Na esquina da Rua dos Turcos, doña Luisa Santiaga entrou na velha botica para falar com a botiqueira, sua velha amiga, que bordava: ‘Como vai, comadre?’ As duas se abraçaram e choraram durante meia hora, sem dizer palavra. Aquele silêncio comovente e expressivo fez Gabo perceber a importância de relatar as ricas histórias que ouvira na infância, diria ele tempos depois.
A primeira versão do que mais tarde seria Cem Anos de Solidão nasceu no início da década dos 50, era intitulado A Casa e, prudentemente, nunca foi publicada. Com o exemplo na algibeira, já consagrado, Gabo diria a seu amigo Ruy Guerra que um romance começa a ser escrito 30 anos antes. Nos anos 80, ele contou a Ruy que guardava até aquela época muitas anotações que fizera em 1958 para um romance que ainda não tinha conseguido começar.
Quando voltou a Aracataca com a mãe, em 1950, encontrou outros sinais de luz. Próximo à cidade, passou por uma finca (sítio) chamada Macondo, por conta da árvore plantada no meio do pasto, e anotou o nome; ainda hoje o enorme macondo está lá, majestoso entre as árvores menores, uns 20 metros de altura. A palavra já lhe era familiar: macondo é também um jogo de dados praticado na região bananeira do Caribe; nele, vencia quem conseguisse jogar o dado e fazê-lo cair com a face onde estava gravada a imagem da árvore para cima.
NASCE UM LIVRO
Cem Anos de Solidão começou a ser escrito no começo de 1965. Gabo distribuiu tarefas: pediu ao poeta José Emílio Pacheco para estudar os segredos da pedra filosofal; a Juan Vicente Melo, que estudasse os efeitos das plantas medicinais; um estudante de História escreveu-lhe um resumo da história colombiana dos séculos 18 e 19. O amigo Álvaro Mutis contribuiria com linhas poéticas e, num outro extremo, mais pragmático, a captar dinheiro que o sustentasse por dois anos.
Na sua casamata literária, o apartamento da Calle Loma, 19, no bairro de San Angel, Cidade do México, batizada por ele como Cueva de la Mafia, Gabo trabalhou entre seis e sete horas diárias, até agosto de 1966, para gestar um livro cujo título foi retirado das duas últimas linhas dos originais – Cem Anos de Solidão. Nesse entremeio, ele, Mercedes e os filhos tiveram uma vida monástica, provida por uma poupança prévia, empenhos e empréstimos de amigos.
Numa sexta-feira de agosto de 1966, Gabo e Mercedes foram a uma agência de correio na Cidade do México com 53 pesos no bolso e um pacote grande nas mãos, que seria enviado à Editorial Sudamericana, em Buenos Aires, interessada em editar a novela. O funcionário pesou o pacote, contendo as 590 folhas datilografadas dos originais de Cem Anos de Solidão, e sentenciou: ‘São 82 pesos.’ Gabo e Mercedes resolveram mandar só a metade inicial dos originais. Mas se confundiram ao refazer o pacote e, em vez do começo, mandaram ao editor a parte final da novela. Com o fim do dinheiro, Mercedes blasfemou: ‘Ahora solo falta que el libro sea una mierda’, contou Gabo recentemente.
Estava dada a partida para a primeira edição do livro que apenas alguns meses depois encantaria o mundo, provocaria o boom do realismo mágico latino-americano e mudaria os rumos da literatura da América Latina. O primeiro sucesso veio na forma de um cheque de US$ 500 enviado pelo editor Paco Porrua: com o adiantamento, ele e Mercedes pagaram o aluguel atrasado e a postagem do começo da história. Chegava ao fim o aperto dos 18 meses.
Uma segunda cópia dos originais foi levada a Buenos Aires pouco depois por seu amigo Álvaro Mutis. Uma terceira cópia circulou entre amigos no México (leu-a Carlos Fuentes) e depois foi enviada aos amigos colombianos do Grupo de Barranquilla – Alfonso, Álvaro e Germán. A filha de Álvaro, Patrícia, até hoje a exibe ‘como un tesoro’. Com o adiantamento, Gabo tirou cópias de vários capítulos e os mandou para várias publicações, em diferentes países.
El Espectador, de Bogotá, publicou o primeiro capítulo no primeiro domingo de maio de 1967. Nos meses seguintes, como havia somente a edição argentina, outros capítulos seriam veiculados por publicações literárias em Paris, Lima, Bogotá e Cidade do México, para incentivar novas edições. Pelo contrato, a Sudamericana deteria os direitos da novela para todo o mundo hispânico, exceto Colômbia. Depois do sucesso, a agente literária Carmen Balcells mudou o contrato: hoje a Sudamericana tem apenas os direitos para a Argentina. Na época, Gabo pediu à Sudamericana, apenas, que a capa fosse feita pelo artista plástico mexicano Vicente Rojo.
Porrua marcou o dia 29 de maio de 1967, uma segunda-feira, para a chegada dos exemplares às livrarias portenhas. O principal suporte do lançamento seria um texto de capa da revista Primera Plana, então importante semanário argentino, dirigida por Tomás Eloy Martínez. Em cima da hora, decidiu aumentar a tiragem inicial de 5 mil para 8 mil exemplares. ‘Apostamos no êxito do livro, se bem que nunca imaginamos que seria tão fabuloso’, diz, de Buenos Aires, Gloria Rodrigué, que em 1967 era assistente de Porrua na Sudamericana.
Na semana do lançamento, a iminência da Guerra dos Seis Dias mudou a capa de Primera Plana e obrigou Porrua a adiar a chegada às livrarias. Com isso, o livro foi para as livrarias argentinas no dia 5 de junho de 1967, outra segunda-feira, ao preço de capa de 650 pesos. A criação de Vicente Rojo não chegou a tempo e foi substituída por uma capa improvisada, com o desenho de um galeão espanhol sobre uma selva, ao fundo.
A primeira edição esgotou-se em 15 dias e logo o livro se multiplicaria em sucessivas traduções, correndo mundo com a velocidade que a água desce da serra Nevada de Santa Marta. De desconhecido autor colombiano vivendo no México, sem agente e sem dinheiro para pagar aluguel, Gabo se tornou um autor solicitado em todas as partes do mundo. O sucesso, afinal, se anunciava como o galope veloz do cavalo do cigano Melquíades.’
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O homem por trás da primeira edição de Cem Anos
‘Quando leu os três livros anteriores de Gabriel García Márquez, em meados de 1966, o editor Francisco (Paco) Porrua, diretor da Editorial Sudamericana, de Buenos Aires, teve uma convicção premonitória. Escreveu àquele autor de quem nunca ouvira falar até uns meses antes e ouviu dele uma sugestão: editar ‘uma novela’ que ele estava terminando. A novela tinha o título de Cem Anos de Solidão. O livro foi para as bancas de Buenos Aires em 5 de junho de 1967, uma segunda-feira. Desde então, vendeu mais de 30 milhões de exemplares em todo o mundo.
Hoje, aos 84 anos, vivendo em Barcelona, o catalão Paco Porrua saboreia as delícias de seu portentoso vaticínio. Para ele, Cem Anos de Solidão foi uma tomada de consciência de que a América Latina tinha uma literatura à altura de qualquer continente. A fama o envolveu: ‘Hoje eu não sou só Paco Porrua’, diz divertido. ‘Aqui todos me chamam de Paco Porrua, o editor de Cem Anos de Solidão.’ Ele saiu da Argentina no momento de maior terror, em 1977, fundou sua própria editora Minotauro, a qual vendeu há alguns anos. De Barcelona, falou ao Estado por telefone:
Como o sr. soube da existência de Cem Anos de Solidão?
Eu nunca tinha ouvido falar dele, mas um amigo chileno me emprestou três livros de Gabo e eu me entusiasmei. Eram Os Funerais da Mamãe Grande, La Hojarasca e, sobretudo, Ninguém Escreve ao Coronel. Eu mandei uma carta a Gabo, propondo editar esses livros na Argentina. Na resposta, ele me perguntou se eu me interessava por uma novela que ele estava terminando de escrever, sem explicar o que era. Eu disse que tinha interesse.
Ele então lhe enviou os originais.
Ele me mandou os originais, eu li, percebi que estava diante de uma obra de uma qualidade literária muito evidente e fechei um acordo com ele. Mandei-lhe imediatamente US$ 500 como adiantamento. Publicamos o livro. Mas o que aconteceu em seguida foi algo inesperado. Naquele momento havia uma grande efervescência cultural na Argentina, sobretudo em torno da literatura e da pintura. Nós, editores, estávamos seguros de que o livro teria êxito. Mas o que aconteceu superou todas as nossas expectativas.
Por que à ultima hora o senhor ainda decidiu aumentar a tiragem da primeira edição?
Eu acreditei no clima efervescente de Buenos Aires. Para mim, a qualidade da obra era muito evidente. Nesse contexto, 8 mil exemplares não era muito. Mas de todas as maneiras, nós esperávamos que essa edição se vendesse em quatro ou cinco meses – e já estaria muito bom -, mas nunca que se esgotasse em 15 dias, como aconteceu. O entusiasmo na cidade foi notável. Quando Gabo esteve lá, as pessoas o interpelavam na rua – e ele não era um autor conhecido algumas semanas antes.
Como foi que reagiram os críticos literários no lançamento?
Sem nenhuma exceção, os críticos de Buenos Aires foram muito elogiosos. É que Cem Anos de Solidão é uma obra incomparável e tem uma característica singular, alguma coisa própria da mitologia. Aqueles personagens, como o coronel Aureliano Buendía e suas mulheres, eles são uma família arquetípica, não? Isso me tocava, porque em Buenos Aires as pessoas diziam: ‘Ah, o coronel Aureliano Buendía é igualzinho ao meu avô.’ Todo mundo tinha uma espécie de mitologia familiar na qual os personagens de Gabo se encaixavam perfeitamente.
Como foram suas reações com García Márquez depois do sucesso?
Nós nos vemos muito pouco, às vezes se passa um ano sem que nos vejamos. Mas cada vez que nos vemos há uma grande emoção, creio, da parte de nós dois. Eu sinto que o destino nos uniu. Afinal, eu sou o editor que deu uma nova direção à sua carreira. Quando nos vemos, realmente nos sentimos muito felizes, há muito afeto e muito carinho de ambos. Mas minha relação com Gabo não é só a relação de um autor com seu editor. Quando falam de mim, aqui na Espanha, ninguém fala apenas de Paco Porrua; todos falam ‘Paco Porrua, o editor de Cem Anos de Solidão’. O livro virou um sobrenome para mim. Eu devo dizer que isso me faz imensamente feliz.
Como leitor privilegiado, qual é a sua avaliação de Cem Anos de Solidão 40 anos depois? Trata-se de um livro seminal?
Foi o livro que provocou o boom da literatura latino-americana e isso indica que foi, também, uma espécie de tomada de consciência do valor da literatura latino-americana, incluída aí a literatura brasileira. Tomada de consciência de que havia, realmente, uma literatura independente que tinha uma relação equilibrada com a literatura européia e com a literatura mundial. Cem Anos mostrou aos leitores que essa literatura latino-americana tinha muita qualidade, que podia se comparar à que se fazia em outros continentes. Isso já tinha começado a acontecer com O Jogo da Amarelinha (de Cortázar), com Os Chefes (primeiro livro de Mário Vargas Llosa), mas aconteceu de forma muito mais notável com Cem Anos de Solidão.
Em que plano o sr. situa Gabriel García Márquez na literatura mundial do século 20?
Eu o situo como um grande novelista latino-americano. E mais não digo, porque, como falei antes, resisto a fazer comparações em literatura. Além do mais, Gabo tem um universo próprio, que não cabe comparar com nenhum outro.’
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Entre a amizade com Fidel e o fascínio pelo poder
‘O mínimo que se espera de um escritor é que seja um rigoroso guardião da liberdade de expressão. Mas Gabriel García Márquez sempre colocou sua amizade com Fidel Castro acima disso. Seus amigos se desdobram em explicações para o seu compadrio com Fidel. Admitem que Gabo tem fascinação pelo poder, mas essa admiração se bifurca, ora atende a critérios político-ideológicos, ora obedece ao mando dos afetos pessoais. Fidel, dizem, está nessa segunda conta.
Também se espera de um escritor que tenha sensibilidade humanista. É esse manto que abriga hoje um Gabo bem menos à esquerda do que em tempos passados. Amigo de Fidel, sim, mas sem esquecer a demissão atribulada da agência noticiosa cubana Prensa Latina em 1961, porque seus textos desagradavam a Havana. Demitido, nunca receberia a indenização. Sem dinheiro, foi de Nova York à Cidade do México de ônibus. O único lenitivo foi conhecer, da janela do ônibus, o sul dos EUA, cenário das novelas de William Faulkner, sua influência. Se não doeu na alma, ele confessa aos amigos que doeu no corpo chegar à Cidade do México com mulher, dois filhos pequenos e apenas US$ 200 no bolso. Doeria na alma, após a fama, descobrir que os textos que redigira para a Prensa Latina tinham sido expurgados do arquivo da agência, em Havana. Mesmo assim, a amizade com Fidel frutificou.
O jornalista Flávio Tavares encontrou-o com os filhos, em 1963, na sala de espera do pediatra Amador Pereira, um espanhol que atendia os filhos dos esquerdistas na Cidade do México. Na ocasião, Gabo contou-lhe que tinha sido demitido da Prensa Latina em Nova York porque os cubanos achavam que ele escrevia textos notoriamente ‘burgueses’. ‘Parecia magoado’, rememora Flávio.
Gabo já singrou muitos espectros ideológicos. A formação original é conservadora. ‘Cem Anos de Solidão é uma saga de autoritários e conservadores’, observa Gustavo Tatis, editor cultural de El Universal, o principal jornal de Cartagena. Depois caminhou para a esquerda; perdeu ímpeto após sair da Prensa Latina; depois derivou novamente para a esquerda. Em 1981 foi acusado de envolver-se com a guerrilha do M-19 na Colômbia e expulso do país.
A seu antigo editor brasileiro, Alfredo Machado, confessou certa vez que era um ‘comunista aristocrático’, conta o filho Sérgio Machado. Adora os valores da vida burguesa: boa comida, charutos e uísque puro malte. Hoje, na Colômbia, não fala de política: nunca elogiou a guerrilha e, em 1998, apoiou em público o candidato Andrès Pastrana, do Partido Conservador.
O político por quem teve maior afeto foi o ex-presidente do Panamá, Omar Torrijos, cujo marco ideológico era o antiamericanismo. Quando Torrijos morreu num acidente aéreo suspeito, disse a amigos que não foi ao enterro porque não agüentava ‘enterrar os amigos’. A partir daí, aproximou-se de Fidel, com quem fala muito sobre livros, comida e conspirações.
FIDEL, SÍ; CHÁVEZ, NO
Um amigo atalha: se a proximidade com Fidel tivesse razões ideológicas, ele seria também um admirador de Hugo Chávez. No entanto, Gabo nunca nutriu a menor admiração pelo venezuelano ou seus parceiros da aventura bolivariana. Até os anos 90, ‘cumpriu tarefas’ para Fidel: deu ‘recados’ para o mundo, serviu de intermediário de mensagens a Bill Clinton, de quem é amigo pessoal.
Também tem forte ligação afetiva com o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe González, um socialista moderado. Guarda uma amizade de 60 anos com o escritor colombiano Álvaro Mutis, que como ele mora na Cidade do México e que, mais que conservador, é monarquista. ‘Nós nos queremos muito. Nunca tivemos uma mínima rusga. Juntos, passamos momentos duros e alegres’, disse ao Estado, pelo telefone, com imensa doçura, Mutis.
Mas as ‘tarefas’ que os amigos mais exaltam são as intervenções humanitárias. Em 1980, quando Fidel liberou as saídas de cubanos para os EUA em Puerto Mariel, Gabo internou-se no Hotel Riviera, em Havana, para negociar a liberação de intelectuais presos entre os 125 mil cubanos que optaram por Miami. Também mediou secretamente a libertação de alguns seqüestrados pela guerrilha colombiana. Amigos garantem que no período duro da revolução cubana – o ‘qüinqüênio gris’ -, nos anos 70, ele operou para amenizar a censura.
Recebeu como tarefa o pedido do escritor chileno António Skármeta para escrever o livro-documentário A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile. Produziu, com Littín, que à época passava por grandes dificuldades financeiras no exílio, uma peça instigante. Mas, para desespero do chileno, doou os direitos autorais integrais à escola de cinema de San Antonio de los Baños, que tinha criado em Cuba. E não era pouco: US$ 750 mil.
Em março de 1974, escreveu um livro sobre os últimos dias do ex-presidente Salvador Allende – Chile, el Golpe y los Gringos – com o jornalista brasileiro Eric Nepomuceno e prometeu não escrever mais novelas enquanto Augusto Pinochet mandasse no Chile. Os direitos foram doados a grupos que defendiam a redemocratização chilena.
Odeia ‘gringos’, mas não se incomodou quando o ex-presidente Bill Clinton o encontrou, na homenagem que o rei da Espanha lhe prestou há três meses, em Cartagena, e lhe espetou na lapela um button da campanha de sua mulher Hillary à Presidência dos EUA. Poucos perceberam, mas a foto de Gabo com aquele button na lapela foi multiplicada na imprensa latina dos EUA. Não há dúvida: Gabo é um formidável formador de opinião em comunidades latinas de qualquer latitude.’
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Ficcionista inventa histórias para (e com) os amigos
‘IMAGINAÇÃO: Em seu livro Crônicas, lançado recentemente no Brasil, Gabriel García Márquez conta uma cena dantesca que viveu em Moçambique, ao lado de Ruy Guerra. Eles estavam juntos numa localidade, num fim de tarde, quando um grupo de ‘amigos cubanos’ lhes ofereceu um jantar cuja peça de resistência era, supostamente, uma gazela. Mais tarde os dois perceberam que, na verdade, tinham comido um cachorro vira-latas que rondava as cercanias, na véspera.
O lado disgusting da cena desaparece em meio a uma gargalhada de Ruy, que desmonta a história: nunca esteve com Gabo em Moçambique. A cena narrada nunca aconteceu – nunca houve cachorro vira-lata à guisa de gazela, nunca houve grupo de ‘amigos cubanos’. ‘Aliás, eu devo dizer que Gabo nunca foi a Moçambique’, diz Ruy. ‘Tudo isso saiu da imaginação dele.’
Eric Nepomuceno conta que uma das diversões preferidas de Gabo é contar a interlocutores o ‘novo livro’ que ele está escrevendo. E tome invenção. Em 1997, ele contou a Eric que no primeiro capítulo de Viver para Contar ele usaria o artifício de dar a palavra do relato de sua vida a um velhinho que ainda trabalhava numa redação. O livro saiu e nada de velhinho, que só apareceria, afinal, dois anos depois, em Memórias de Minhas Putas Tristes.’
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Afetos duradouros, mesmo com soco de Vargas Llosa…
‘Gabriel García Márquez é um homem de afetos duradouros. Embora sua biografia seja pontuada por citações de libertinagens na juventude, ele se tornou um homem rigorosamente fiel – embora siga sendo um galanteador incorrigível até hoje – desde que se casou com Mercedes Barcha, em 1958, aos 31 anos, ao contrário do pai, Elígio, que namorou até morrer.
A única desconfiança a pesar-lhe foi o soco demolidor que Mário Vargas Llosa lhe aplicou em fevereiro de 1976, num cinema mexicano, quando Gabo o recebia de braços abertos para estreitá-lo num abraço. Eles eram muito amigos até que Vargas Llosa ficou transtornado com a ‘assistência psicológica’ que Gabo, numa crise do casamento, teria dado a Patrícia, então mulher de Vargas.
Depois do soco, nunca mais. Numa exposição em Barcelona, Mercedes puxou Gabo para a saída ao ver Vargas entrar. Agora, Vargas autorizou a publicação de um resumo de seu magistral ensaio História de um Deicídio, considerado a melhor interpretação de Cem Anos de Solidão, na nova edição do livro feita pela Real Academia Espanhola da Língua. Os amigos interpretaram a autorização como um aceno para a retomada da antiga amizade.
Do outro lado, uma de suas maiores admirações, o escritor mexicano Juan Rulfo, igualmente tímido, afastou-se quando Gabo ganhou o Nobel. Gabo ficou procurando uma forma de se reaproximar suavemente. Um dia Rulfo estava na casa de Eric Nepomuceno, na Cidade do México, quando se deu a cena: sem ter sido convidado, Gabo desembarcou do carro dirigido por Mercedes, levando nas mãos uma enorme panela de massa que tinha comprado num restaurante italiano. Juntos, eles comeram, riram e falaram mal de meio mundo.
Rulfo mereceria dele uma singela homenagem. Depois de receber o Nobel, Gabo decidiu recusar toda e qualquer honraria, mas foi receber a Aguila Azteca, a mais alta condecoração mexicana, concedida antes do grande laurel literário. Quando, num rito protocolar, o presidente José López Portillo lhe perguntou se aceitava a condecoração, Gabo disse que não, a não ser que seu amigo Juan Rulfo estivesse a seu lado. Quebrado o protocolo, Rulfo se levantou na platéia e foi sentar-se ao lado de Gabo e do presidente.
Ele é assim – dá um valor quase mítico à amizade. ‘Ele entende a amizade com o sentido estrito de uma máfia, em que todos atuam juntos, um protege o outro’, explica o cineasta Ruy Guerra. Por isso, só continuaram sendo amigos dele os que entenderam esse conceito, como Álvaro Mutis, Carlos Fuentes e Juan Rulfo, enquanto viveu. Vargas Llosa não teria entendido – e por isso todos os que conhecem Gabo asseveram: como era antes, nunca mais.
Com o pai, don Gabriel Eligio, sempre foi cerimonioso. Numa conversa com ele e sua mãe, em Cartagena, a conversa fluía mineiríssima. De repente, Gabo contou que estava escrevendo um livro com um personagem ‘parecido’ com o pai. E tascou-lhe a pergunta, na lata: ‘Você ainda transa com a minha mãe?’ Don Gabriel, aos 87 anos, garantiu-lhe: ‘Não imaginas como e quanto.’ Gabo saiu felicíssimo, eufórico, tendo à mão um certificado de verossimilhança para o desempenho sexual que emprestou ao personagem de O Amor nos Tempos do Cólera.
Todos concordam que ele tem um ego monumental e que parece arrogante, porque sempre impera sobre as conversas. Ruy Guerra relata que uma vez eles contaram e concluíram que Gabo tinha 11 casas ao redor do mundo. Hoje, são 7: na Cidade do México, em Cuernavaca, em Havana, em Cartagena, em Bogotá, em Paris e em Barcelona. Considera-se moderno: usa computador desde 1989, quando aposentou a companheira das velhas lides – uma Smith Corona mecânica.
Há oito anos ele soube que seu dentista em Cartagena, Jayme Gazabón, ia batizar o filho e foi o primeiro a chegar à igreja de Santa Cruz de Manga, em Cartagena, mesmo sem ter sido convidado. Disse ao padre que seriam padrinhos, ele e Mercedes. Foi a maior surpresa da vida de Gazabón e sua mulher Angela. ‘Nem conversei. Pedi desculpas aos padrinhos convidados e dei meu filho para Gabito batizar’, contou ele.
Seguro do ato, Gabo levou até presente para o afilhado – três CDs com cem vallenatos, com dedicatória e tudo. Depois, foi à comemoração, no salão de festas do edifício onde moram os Gazabón e comandou a festa. Gazabón diz que empacou quando Gabo quis saber qual seria o peso de uma enorme ponga (uma espécie de baobá colombiano) plantada no jardim.
O Nobel deu-lhe fama mundial, mas nada tocou mais seu coração, garante Gustavo Tatis, do que receber o bastão-símbolo de palavrero (o líder que resolve tudo com palavras) da etnia wayúu (guaiú), do departamento de La Guajira, onde nasceu seu avô Nicolás (o coronel da Guerra dos Mil Dias, que fugiu de Riohacha para Aracataca após matar Medardo Pacheco, tal como José Arcadio Buendía, que fundou Macondo depois de matar Prudencio Aguilar Riohacha). A mãe Luisa Santiaga nasceu em Barrancas, um lugar típico dos guaiú.
Numa cerimônia em La Guajira, em março de 2003, o antropólogo Weildler Guerra Curvelo, um mestiço guaiú, entregou-lhe o bastão-símbolo e fez-lhe uma homenagem em idioma guaiú. Quem presenciou disse que o mestiço guaiú Gabo ficou circunspecto e emocionado. É bem possível que, para ele, aquela honraria tocasse mais que o Nobel, por revolver as mais convincentes reminiscências das profundezas de onde brotaria Macondo.’
CONTINUA…