CENÁRIOS
Associação mundial vê futuro nos jornais
‘Há 66 razões para o jornal sobreviver às inovações introduzidas no mundo da comunicação com a chegada da era digital. A Associação Mundial de Jornais (WAN) e a consultoria Kairos Future elaboraram cenários possíveis para a indústria dos jornais em 2020. Projetaram e descrevem quatro cenários para o futuro e apontam 66 tendências que resultam em impactos em jornais de todo o mundo. Entre elas, estão desde o predomínio do individualismo e a queda da audiência de massa, o que privilegiaria as edições hiperlocais, até o fato de que o interesse em grupos segmentados será maior do que a opinião pública geral.’
TECNOLOGIA
Microsoft desiste de comprar Yahoo
‘A Microsoft anunciou ontem que desistiu da proposta de aquisição do Yahoo, uma vez que não houve consenso entre as partes sobre o preço a ser pago pela companhia. As negociações fracassaram após um encontro na manhã de sábado, em Seattle, entre o presidente da Microsoft, Steven Ballmer, e o presidente e fundador do Yahoo, Jerry Yang, de acordo com uma fonte que foi informada das negociações.
Na reunião, da qual participou também um outro fundador do Yahoo, David Filo, e Kevin Johnson, da Microsoft, Ballmer aumentou a oferta da Microsoft para US$ 33 por ação. Entretanto, Yang disse que não venderia sua empresa por menos de US$ 37.
A decisão da Microsoft de desistir do negócio encerra uma novela de três meses que começou com uma oferta não solicitada para adquirir o Yahoo, em uma tentativa da Microsoft de se tornar mais eficiente na competição com o Google em sites de busca, publicidade e serviços na internet.
O Yahoo rejeitou a oferta por diversas vezes, afirmando que sua companhia estava subavaliada. A Microsoft chegou ameaçar algumas vezes de diminuir a oferta inicial, de US$ 44,6 bilhões, ou US$ 31 por ação.
Na noite de sábado, a Microsoft divulgou uma nota falando da desistência e também uma carta de Ballmer para Yang, na qual o presidente da Microsoft afirma que não faria sentido seguir numa disputa lenta e lançar uma campanha de procuração para conseguir apoio para uma fusão. ‘Nossas discussões com você nos levou a concluir que, nesse ínterim, você faria coisas que tornaria o Yahoo indesejável para a Microsoft’, escreveu Ballmer.
Na nota, Ballmer afirma que a Microsoft continuará a buscar sozinha seus objetivos para a internet. ‘Temos um time talentoso e um plano convincente para fazer o nosso negócio crescer por meio de serviços novos e inovadores e negócios estratégicos com outros parceiros’, afirmou o executivo. ‘Com o Yahoo teríamos acelerado essa estratégia, mas tenho certeza de que podemos continuar avançando em direção a nossos objetivos.’
A desistência da Microsoft deverá provocar dúvidas entre investidores sobre o que deverá ocorrer com as duas companhias. Quando a Microsoft fez sua primeira oferta, a empresa afirmou que o Yahoo era uma parte importante de sua estratégia para enfrentar o Google. Ao mesmo tempo, alguns acionistas da Microsoft contrários à oferta devem estar aliviados, e a expectativa é de que as ações subam.
Por outro lado, o fim da negociação deverá fazer as ações do Yahoo despencarem e provocar incertezas entre investidores. O Yahoo vem explorando alternativas à proposta da Microsoft, incluindo uma parceria com o Google, o que poderia valorizar suas ações.’
PREVISÃO
Internet pode entrar em colapso em dois anos
‘O mundo está diante de uma nova previsão catastrófica: a do colapso mundial da internet em 2010, feita pelo vice-presidente de assuntos regulatórios da AT&T, Jim Cicconi, ao falar há duas semanas no Westminster E-forum, em Londres.
‘A causa principal desse congestionamento brutal – disse Cicconi – é a massa crescente de downloads de vídeos combinada com a transmissão ou uploads de novos conteúdos de imagem que circulam na internet em todo o mundo. Em 2011, apenas 20 residências norte-americanas poderão gerar mais tráfego do que toda a internet mundial hoje.’
Embora essa comparação pareça exagerada, os especialistas dizem que não há como refutar os argumentos de Cicconi e demonstrar que o mundo não corre o risco de um congestionamento gigantesco. Para eles, o ritmo de crescimento do tráfego da internet é cada dia mais preocupante.
A cada minuto são armazenadas oito horas de vídeos no YouTube. Este é, no entanto, apenas um dos aceleradores do crescimento inimaginável do volume de informações que entra na rede. Outro fator de risco é o crescimento mundial das transmissões da TV digital, pois, com ela, milhões de clippings de vídeos de alta definição serão postados na web, exigindo de 7 a 10 vezes mais banda de freqüência do que os vídeos atuais.
No médio prazo, tudo tende a se agravar. Segundo prevê Jim Cicconi, a demanda por banda larga requerida pelos novos serviços em 2015 será 50 vezes maior do que em 2010. Além disso, países como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China (os Bric) terão mais de 400 milhões de pessoas conectadas à internet nos próximos 2 anos.
SOLUÇÃO: US$ 130 BI
A única solução para se evitar o congestionamento total da rede mundial, segundo o executivo da AT&T, será investir cerca de US$ 130 bilhões na infra-estrutura, pois a atual arquitetura da rede deverá atingir os limites de sua capacidade em 2010.
Demi Getchko, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, considera alarmistas e exageradas as advertências do vice-presidente da AT&T. ‘Essas previsões me lembram as do Bug do Milênio, no final da década passada. Mas ninguém pode negá-las de forma categórica.’
Assim, por mais dúvidas que tenhamos sobre os riscos anunciados, é bom que o mundo invista adequadamente na infra-estrutura da rede. O mesmo ocorreu com o Bug do Milênio, que nos prometia quase o fim do mundo. A abreviatura Y2K (do inglês Year 2000) virou uma espécie de logotipo do apocalipse, previsto para ocorrer na passagem de 31 de dezembro de 1999 para o dia 1º de janeiro de 2000. Em poucas horas, o mundo viveria o colapso de milhões de sistemas computadorizados e bancos de dados e todas as suas conseqüências.
O milênio chegou e nada aconteceu. É claro que, diante de advertências tão dramáticas, repetidas ao longo de três anos, com insistência e sensacionalismo, o mundo acabou investindo não apenas na conversão de dois para quatro dígitos a representação do ano, mas, principalmente, na revisão dos sistemas de segurança ligados ao registro cronológico dos computadores.
Entre os especialistas, a preocupação varia, mas são raros os que vêem o futuro com otimismo. Depois de um alerta tão dramático, no entanto, o mundo talvez acorde em tempo e evite o pior em 2010, fazendo os investimentos necessários antes que ocorra o colapso.
TI VERDE
O bom senso não tem sido uma virtude coletiva da humanidade. O aquecimento global, a destruição das florestas tropicais, o esgotamento das fontes de água potável e os problemas decorrentes da poluição são exemplos da baixa capacidade de resposta de governos e países aos maiores desafios à sobrevivência do homem. Em sentido mais amplo, o que tem faltado é planejamento, visão de longo prazo e a consciência do uso adequado dos recursos.
Uma reação positiva, no entanto, parece estar chegando ao setor de tecnologia da informação (TI) com a chamada TI Verde ou, na expressão inglesa, Green IT, também chamada Computação Verde. Seus objetivos básicos são: reduzir o consumo de energia dos equipamentos eletrônicos, baixar as emissões de carbono no processo de fabricação, evitar a contaminação do meio ambiente com materiais altamente poluentes e assegurar a sustentabilidade da infra-estrutura de informática e de telecomunicações.
Em eletrônica, um dos aspectos essenciais é o da reutilização de aparelhos por escolas e entidades filantrópicas, com a reciclagem e o recondicionamento de equipamentos de áudio, vídeo, computadores, celulares e toda a parafernália digital de nossos dias. Numa reação recente, esses sistemas de TI verde levam em conta, também, três grandes aspectos: o homem, o planeta e a continuidade das atividades humanas.
Para debater temas como esses, será realizado em São Paulo no dia 29 de maio o seminário Green IT Brasil 2008, cujo foco principal será mostrar ‘Como as Empresas podem obter ganhos de eficácia com a adoção de políticas de TI’ (informações no site www.interchangeRH.com.br).’
LINUX
Empresa se rende ao software livre
‘O laboratório da Microsoft no Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) trabalha com software livre e desenvolve sistemas para permitir que o Windows trabalhe com o Linux. O mais recente, chamado interop router, tem como objetivo fazer com que clusters (grupo de computadores que trabalham em conjunto) funcionem de forma integrada nos dois sistemas.
‘Tudo começou em 2002, com uma doação da Microsoft dos Estados Unidos’, diz o professor Sandro Rigo, responsável pelo projeto. ‘Em agosto de 2006, fechamos um acordo com a Microsoft Brasil, e criamos o laboratório.’
O Linux é hoje o principal concorrente do Windows, que domina o mercado de sistemas operacionais. Trata-se de um software livre que pode ser usado, copiado e modificado sem pagamento de licenças. Muitos dos desenvolvedores do Linux trabalham sem receber nada por isso, pelo objetivo de ter um software melhor para usarem.
O Windows, que tem código fechado e cobra pelas licenças, está em 97% dos computadores das empresas brasileiras, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ou seja, a participação do Linux é muito pequena. Nos servidores, porém, a situação é outra. O Windows tem 65% e o Linux, 17%.
Esse cenário explica por que é importante para a Microsoft se aproximar da comunidade de software livre. Primeiro, por uma questão de imagem da empresa. Segundo, por uma questão de mercado, pelo fato de várias empresas já terem servidores com Windows e com Linux. Terceiro, porque é importante conhecer o concorrente.
O laboratório da Unicamp tem quatro bolsistas financiados pela Microsoft. São alunos de engenharia da computação. laboratório já desenvolveu um software de autenticação cruzada. Serve para que empresas com vários servidores, em Windows e Linux, possam oferecer a seus usuários um nome e uma senha unificados, que sirvam para todos os programas.’
LIVROS
A nova velha Europa
‘O inglês Tony Judt é um historiador meticuloso – durante anos, buscou traçar os destinos da Europa depois da 2ª Guerra Mundial. Afinal, se a 1ª Guerra destruiu a velha Europa, o conflito seguinte criou condições para um novo continente. ‘Pós-nacional, praticando o Estado previdenciário e a cooperação, a Europa pacífica não nasceu do projeto otimista, ambicioso e progressista imaginado com bons olhos pelos idealistas que hoje defendem o euro. A Europa foi filha insegura da ansiedade. Oprimidos pela história, os líderes europeus implementaram reformas sociais e criaram instituições de caráter profilático, a fim de acuar o passado’, afirma ele, autor do portentoso Pós-Guerra (tradução de José Roberto O’Shea, 880 págs., R$ 80), lançado agora pela Objetiva.
Para ele, a Europa, após a guerra que vitimou 36 milhões de pessoas e desalojou outras 30 milhões, é como um edifício imponente assentado sobre um passado indizível – formada por 500 milhões de pessoas que vivem livres e prósperas , a União Européia revela ainda uma certa incapacidade de aprender com os crimes passados (especialmente com o Holocausto), buscando disposição para encarar um futuro multicultural. Convidado da próxima Flip, Judt falou com exclusividade ao Estado.
Por que o período após a 1.ª Guerra Mundial foi diferente, na Europa, do depois da 2.ª Guerra?
Creio que o motivo principal estava na lembrança, ainda muito vívida, da tragédia deixada pelo primeiro conflito, especialmente entre as pessoas que eram crianças naquela década de 1910. Havia, portanto, uma consciência de que a situação não podia se repetir. Outro detalhe importante foi a inesperada escala de recuperação econômica, a explosão demográfica, a prosperidade, a despolitização que tomou conta da Europa depois de 1945, quando as pessoas, escaldadas pela 1ª Guerra, esperavam por uma depressão econômica e uma política radical que levasse ao extremismo como foram o nazismo e o fascismo. As pessoas sabiam o que devia ser evitado, mas desconheciam como fazê-lo.
Que fato mais inesperado aconteceu durante o pós-2ª Guerra?
Foram dois: primeiro, como disse antes, a recuperação econômica, tão rápida e tão pungente. Esperava-se que isso só acontecesse depois de muitos anos – na França, por exemplo, a previsão era de, no mínimo, 30 anos. Em segundo lugar, a estabilidade política, que não apenas permitiu aquele boom econômico como evitou situações desastrosas como a de 1937, quando o fracasso da política alimentou o crescimento do nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália. A democracia havia falhado, o que não se repetiu depois de 1945.
Mas o que dizer da Guerra Fria? Não foi um fato maléfico?
Foi maléfica por utilizar armas atômicas como forma de pressão. Na época, ainda era misterioso o valor da potência desse armamento, o que o tornava estratégico, mesmo com a crença geral de que nenhum dos países detentores dessa arma iria utilizá-la. Mas, na minha opinião, a Guerra Fria não foi tão perigosa a ponto de afetar o ilusório senso de segurança dos europeus até o impasse entre os Estados Unidos de Kennedy e a União Soviética de Kruchev envolvendo Cuba. Hoje sabemos que a pressão sobre os dois líderes para que atuassem de forma enérgica era muito forte. Tanto Kennedy como Kruchev queriam evitar nova guerra, mas a questão vital era como evitar o confronto. Creio que ali o perigo passou a existir de fato. Outro fator essencial era o mal-entendido existente entre os dois grandes lados. A União Soviética de Stalin, por exemplo, estava convencida de que seria atacada pelos americanos. E a paranóia do comunismo realmente amedrontava os Estados Unidos – em Washington, havia uma certeza de que Stalin usaria da agressão para consolidar o comunismo pelo mundo. Ou seja, os dois lados temiam um ataque iminente, que não era verdadeiro, como também comprovam os documentos soviéticos da época, revelados há pouco tempo.
A Guerra Fria teria terminado finalmente com a aposentadoria de Fidel Castro em Cuba?
Bem (rindo), acho que podemos ver a questão de dois modos. De um lado, a Guerra Fria pode não ter definitivamente acabado, pois foi reativada por Putin e Bush, que alimentam conflitos internacionais motivados pelo temor do crescimento do poderio do outro. Por outro lado, podemos também afirmar que a Guerra Fria terminou de fato com Mikhail Gorbachev e o que veio em seguida foi uma nova configuração mundial de conflitos, o que também é perigoso. Não acredito que o declínio de Castro tenha grande significado. Hoje, Cuba é uma pequena ditadura sem o peso político internacional de antes, sendo usada pelos Estados Unidos apenas em questões domésticas
Quem mais se destacou no mundo, depois de 1945?
Bem, a lista seria grande. Entre os americanos, todos envolvidos na guerra e no período seguinte: Harry Truman, George Marshall e George Kennan tiveram enorme influência. Falando de europeus, Charles De Gaulle, sem dúvida alguma, teve uma importância enorme. Na Europa Oriental, não diria nenhum nome em particular, mas a geração do partido Solidariedade, na Polônia, que soube apontar para uma mudança de regime de forma pacífica; e, inquestionavelmente, Gorbachev. Aliás, se fosse necessário apontar apenas dois nomes, eu apontaria De Gaulle e Gorbachev como os mais importantes desse período.
Qual é o maior desafio para a Europa neste início de século?
Creio que são três desafios. Primeiro, a imigração, não apenas no seu sentido restrito, mas no que concerne às relações sociais: hoje temos grandes comunidades discriminadas por cor ou religião, que vivem nos grandes países como Inglaterra, Itália, França. Ou seja, como fazer essas pessoas se sentirem europeus sem perderem suas conexões originais? O segundo desafio diz respeito à Turquia, país cuja população em sua maioria é muçulmana: se o país for realmente aceito pela Europa, será um grande passo em direção à paz religiosa. Se rejeitarem os turcos, os europeus serão identificados como antiislâmicos, reforçando o radicalismo, o que seria catastrófico. E o terceiro desafio não diz respeito à coesão interna, mas como combinar autonomia nacional com instituições transnacionais. Hoje são países de língua e culturas distintas que se unem em uma comunidade transnacional. Assim, o desafio está em valorizar seu papel internacional, ou seja, olhar mais para fora que para dentro.’
Ricardo Lísias
Testemunha do tempo e das pessoas que passam
‘A Alma Encantadora das Ruas, coleção de textos de João do Rio publicada em charmosa edição de bolso pela Companhia das Letras, oferece uma excelente possibilidade de reflexão, além do enorme prazer de uma leitura saborosa e instrutiva. A organização impecável de Raul Antelo dividiu os textos em cinco partes, conforme a temática, criando uma espécie de encadeamento que começa na ‘rua’ como espaço de convívio, passa pela deterioração social até chegar a um inventário de personagens e, por fim, uma espécie de evocação lírica e, ao mesmo tempo, analítica da cultura popular.
Os textos têm um tema e um momento histórico bem definidos: a urbanização que a cidade do Rio de Janeiro viveu no início do século 20. Tratava-se de um projeto deliberado de fazer o município entrar no circuito das cidades modernas, até, caso houvesse sucesso na empreitada, equiparar-se à cidade das cidades, Paris. Claro que as coisas foram feitas um tanto ao nosso modo, por assim dizer: mendigos sendo varridos do centro, o embelezamento artificial escondendo os descalabros sociais e uma espécie de higienização subfascista limpando a calçada dos lugares onde a classe média pretendia passear nos finais de semana. O município de São Paulo vive o mesmo fenômeno hoje, uns cem anos depois, com a diferença de que não temos um escritor como João do Rio para percebê-lo…
Ao contrário do que pode parecer a princípio, os textos de A Alma Encantadora das Ruas não podem ser considerados crônicas, ao menos segundo a definição tradicional do gênero. Alguns são muito extensos e chegam a apresentar esboços de análise, muito embora mantenham a linguagem leve e elegante que caracteriza a literatura de João do Rio. Distantes da crônica, aproximam-se de uma espécie de antropologia urbana, o que torna a coleção de textos um ótimo conjunto de documentos para o historiador atento.
Além dos aspectos pitorescos, às vezes bizarros e outros líricos, da transformação urbana que a cidade, meio meteoricamente, vinha sofrendo, João do Rio capta bem a cultura popular, oferecendo desde exemplos de canções até descrições de pequenos e efêmeros fatos artísticos. Os textos procuram atingir o lugar de observadores do momento histórico. A janela, como observou muito bem Antelo, torna-se uma das principais imagens, tanto no que ela tem de passagem quanto de olho. Combinados os dois símbolos, chega-se à intenção dos textos: olhar os que passam no lugar de passagem do que está se passando.
Cem anos depois, os textos soam às vezes ingênuos e, de resto, muito evocativos. Talvez o leitor sinta saudades de um tempo que não viveu. Fiquei com vontade, depois de fechar A Alma Encantadora das Ruas, de ler possíveis documentos do desenvolvimento histórico de avenidas e bulevares. Pelas ruas cariocas passou não apenas a mão modernizadora dos prefeitos do começo do século 20. Por elas desfilaram blocos carnavalescos e depois os revoltosos do forte. Nelas Getúlio Vargas calou o país. Depois, as ruas da capital da nação foram para outra cidade, mas sobrou o olhar triste das favelas crescendo (aqui é possível lembrar, não sem surpresa, de uma espécie de continuação privilegiada, de outra natureza, da obra de João do Rio: o Paulo Lins de Cidade de Deus!), depois os arrastões para chegar à degradação contemporânea absoluta.
O movimento do progresso que João do Rio testemunhou tomou caminho inverso – ou seguiu o mesmo rumo do Brasil inteiro – e perdeu o sentido do desenvolvimento incipiente que se esboçava, fazendo as ruas passarem de lugar de passeio para verdadeiras praças de guerra. Da pretensa Paris, o espaço urbano carioca, ou melhor, o brasileiro como um todo, tornou-se cindido entre os mal protegidos bunkers, como a cidade de Jerusalém, e a Faixa de Gaza, aliás nome popular de uma rota urbana do Rio de Janeiro, onde só mora gente pobre, é claro. Os ricos ficam por trás dos muros dos condomínios, frágeis e ilusórios, tanto é que vivem sendo atravessados por bala perdida. É como no Oriente Médio mesmo. Hoje estou me expressando mal: é como no resto do mundo…
Aqui chego à minha conclusão. Observar o caminho que as vias públicas tiveram em um século vai revelar o tanto que nos rebaixamos. Falo no sentido global mesmo. O Rio de Janeiro se esforçou por ser Paris, mas cem anos depois é Paris que luta para não virar o Rio de Janeiro. E não está conseguindo. A Faixa de Gaza é o mundo.
Ricardo Lísias é escritor, autor de, entre outros, Anna O. e Outras novelas’
O Estado de S. Paulo
Gravuras mostram o Brasil de d. João VI
‘O livro da pesquisadora Renata Santos mostra como a gravura se tornou um instrumento político e um meio de difundir conhecimento, quando da chegada da família real portuguesa ao Brasil. Essa transferência provocou muitas mudanças, e a produção de imagens as retratou. O País tinha sido retratado por pintores viajantes, mas com a instalação de dom João VI em terras brasileiras houve a criação de imagens próprias. Renata não analisa as gravuras como se fossem obra de arte, mas como imagens puras, a partir das quais extrai informações históricas. Valendo-se de impressos, mapas e estampas de propaganda, etc., ela compõe um rico mosaico da primeira metade do século 19.’
REVISTA
As relações baseadas no poder da palavra
‘A literatura e a psicanálise podem ser consideradas irmãs. São bem parecidas, mas não chegam a ser gêmeas, e, apesar dos momentos de harmonia, têm lá os seus desentendimentos. Segundo o dossiê da edição 473 da Le Magazine Littéraire (98 págs., 5,80) – Os Escritores e a Psicanálise -, desde suas origens, a arte literária e o exercício psicanalítico têm ligações inescapáveis. Com o passar do tempo se evidenciaram as influências mútuas, como no novo romance de Henry Bauchau, ‘psicanalista por necessidade’, ‘escritor por convicção’.
Como se fosse ‘uma viagem em torno de um divã’, uma série de textos demonstra essa forte identidade, que se deve a um motivo fundamental: a origem da narrativa calcada no uso destemido da palavra.
Deitado em um divã, o paciente tece uma narrativa que o libera, o organiza e o repara. Sentado numa cadeira, o escritor se liberta também, enquanto faz uma reconstrução narcisística de si mesmo e consolida a afirmação de sua identidade.
Tanto numa situação como noutra, o que está em jogo é a revelação profunda da psique humana. E o exorcismo de um passado que pode ser tanto criado a partir de memórias reais, as de fato vividas, pertencentes à existência única de um indivíduo, como construído naquela memória ancestral, que se confunde com a própria condição humana. Quem poderá negar que muitos livros nasceram da necessidade brutal de um homem de entender uma perda irreparável, um amor extremo ou a inevitável finitude? O dossiê traz uma seção que fala da cura como centro da literatura e que faz uma análise histórica de, entre outros escritores, Georges Bataille, Samuel Beckett, Raymond Queneau, Georges Perec.
Sigmund Freud (1856-1939) alertou para a existência daquilo que até então se fazia um mistério impenetrável: o inconsciente. Depois desse alerta, a humanidade não seria mais a mesma. Nem a literatura seria a mesma: é só lembrar as experiências da escrita livre – o literato devia se render ao fluxo sem contenções do que vinha à sua consciência. Até hoje a crítica cultural possui forte lastro psicanalítico. No começo do século 20, a psicanálise não pode ser negada como influente parâmetro em diferentes áreas do saber.
Na virada do século 19 para o 20, Freud comentava com discípulos a semelhança das características de um romance e dos efeitos do ofício clínico. Ele dizia construir dentro do espírito narrativas romanescas, apoiado em sua experiência com os pacientes. A Wilhelm Stekel ele admitiu ter vontade de se tornar um romancista no futuro.
Um dos ensaios, que abre o dossiê e foi escrito pela filósofa Catherine Clément (autora de Les Fils de Freud Sont Fatigués), afirma: os herdeiros de Freud são romancistas. Ela cita como um fracasso o encontro ocorrido em 1921, na Áustria, entre Freud e André Breton. Diz que os relacionamentos entre escritores e psicanalistas principiaram conturbados para, com o tempo, se transformarem.
Aqueles que se ocupam da escrita se tornaram os melhores aliados dos que se ocupam da palavra. A essa altura convém questionar o peso atual da psicanálise sobre o escritor. Depois da produção de obras literárias declaradamente psicanalíticas durante o século passado, o que a psicanálise tem a oferecer à literatura, além das narrativas que não passam de uma bem elaborada confissão pessoal?’
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