Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O Estado de S. Paulo

GOVERNO
Luciana Nunes Leal

Após ganhar a confiança de Lula, Franklin conquista espaço e poder

‘O fato de não ser candidato a nenhum cargo nas eleições de 2010 e de não ter compromisso com partidos políticos tornou um já influente ministro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda mais atuante no primeiro escalão do governo. Franklin Martins, que comanda a Secretaria de Comunicação Social desde março de 2007, está entre os mais frequentes interlocutores do presidente, ao lado da chefe da Casa Civil e pré-candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, e do chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho.

Mais que conselheiro, Franklin, capixaba criado no Rio, de 61 anos, passou a ter atuação direta nas ações do governo. O caso mais emblemático aconteceu no dia 30 de agosto, durante jantar no Palácio da Alvorada do presidente com os governadores do Rio, de São Paulo e do Espírito Santo, na véspera do lançamento do projeto de exploração do pré-sal. Por pressão de Sérgio Cabral (PMDB), José Serra (PSDB) e Paulo Hartung (PMDB), o governo fez mudanças de última hora na proposta, garantindo a cobrança de royalties no pré-sal e a manutenção da distribuição privilegiada aos Estados produtores de petróleo.

Franklin fez o papel que caberia a Dilma, defendendo a ideia de que os royalties do petróleo do pré-sal, fosse qual fosse o modelo a definir pelo Congresso, deveriam ter uma distribuição mais igualitária entre todos os Estados e municípios. Ele esteve à frente da negociação e chegou a ter uma discussão ríspida com Cabral. Integrantes da equipe do governador fluminense saíram surpresos com a atuação de Franklin.

Foi a própria ministra quem avisou que não ficaria na linha de frente do embate com os governadores. Afinal, ela não é apenas a chefe da Casa Civil, mas a candidata de Lula à sua sucessão – não queria entrar em confronto com aliados como Cabral nem com Serra, muito provavelmente futuro adversário na disputa presidencial. Cada vez mais a ministra vai ‘fugir’ de brigas que, em um cenário não-eleitoral, compraria sem problemas.

A atuação de Franklin no jantar do pré-sal refletiu não apenas a decisão do presidente de confiar ao ministro uma tarefa que foi além da comunicação, mas também a proximidade cada vez maior do ministro com Dilma. Entre parlamentares e assessores do Planalto, não há dúvida de que ele terá papel relevante na campanha, mesmo sem se afastar do governo. ‘Franklin tem a percepção do governo, mas também uma análise política qualificada’, diz o líder do governo na Câmara, Henrique Fontana (PT-RS).

DEFINIÇÃO

A independência partidária permitiu que o ministro atuasse em um momento constrangedor para o líder do PT no Senado, Aloizio Mercadante (SP), que chegou a anunciar a renúncia do cargo em caráter ‘irrevogável’, no auge da crise que envolveu o senador José Sarney (PMDB-AP). Franklin participou da elaboração da carta do presidente pedindo a permanência de Mercadante, lida no plenário.

Outro episódio em que o ministro esteve presente foi a reação de Dilma diante das afirmações da ex-secretária da Receita Federal Lina Vieira de que a ministra pediu agilidade nas investigações referentes ao empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado. Franklin contrariou a prática de dar apenas informações de bastidores (em off, no jargão jornalístico) e concedeu entrevista dizendo que Lina estava ‘mentindo’. Franklin esteve ao lado da ministra quando ela assumiu publicamente o tratamento contra o câncer, em abril, e de lá para cá a relação entre os dois se estreitou.

‘Influente, porém discreto.’ A definição é recorrente nos comentários sobre a atuação do chefe da Comunicação. Ele participou como uma espécie de mediador nas discussões com os ministros da Defesa, Nelson Jobim, e da Secretaria de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, sobre as buscas pelos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, realizadas há dois meses. Havia um atrito sobre o comando da operação, que ficou sob responsabilidade da Defesa. Em parceria com Vannuchi, Franklin se encarregou da campanha institucional para estimular a entrega de documentos que levem a novas pistas sobre os guerrilheiros.

Os episódios até hoje obscuros do regime militar interessam particularmente ao ministro da Comunicação, que, muito jovem, militou na resistência à ditadura e em 1969 participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, solto em troca da libertação de 15 presos políticos. ‘Ele sempre teve muita capacidade de organização’, diz o jornalista Cid Benjamin, amigo desde o tempos do Colégio Aplicação, que militou com Franklin no movimento estudantil, no MR-8 e também atuou no sequestro do embaixador. ‘Quando vi que Franklin ia ser ministro, eu sabia que conquistaria um espaço maior’, diz Cid.

Depois do sequestro, Franklin fez treinamento em Cuba, voltou ao Brasil, passou uma temporada na Europa, retornou em meados dos anos 70 e viveu escondido até a anistia, em 1979, quando passou a trabalhar como jornalista. Foi repórter, colunista, editor, diretor da sucursal do jornal O Globo em Brasília e, durante oito anos e meio, comentarista político nas TVs Globo, Globo News e Bandeirantes, de onde saiu para integrar o governo Lula.

PROJETO DA EBC

Além da rotina de conversas no início do dia, quando o ministro comenta com Lula os principais assuntos e discute o tratamento a ser dado a cada tema, Franklin é convidado para encontros no fim de semana, na Granja do Torto ou no Alvorada. Mesmo nessas situações, mantém a formalidade. É próximo, mas não é amigo. Trata Lula de ‘presidente’ e ‘senhor’.

‘Os convites para o Torto e o Alvorada acontecem com poucos. Tenho notado que o presidente cada vez ouve mais o Franklin em todos os assuntos. Houve uma empatia desde o início. Depois do Gilberto Carvalho, é a pessoa que passa mais tempo com o presidente’, diz o jornalista Ricardo Kotscho, ex-secretário de Divulgação e Imprensa da Presidência, amigo de Lula e participante de alguns encontros de fim de semana.

Próximo do presidente, mas reservado. Essa é outra característica de Franklin. A soma de poder e confiança do jornalista-conselheiro ficou patente quando o governo decidiu, no segundo mandato presidencial, que ia bancar a criação de uma emissora pública de TV. Do projeto nasceu a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que era para ser uma emissora ao estilo e imagem das TVs europeias, como a BBC inglesa.

Franklin capitaneou o processo, falou muito em ‘democratização da comunicação’, do padrão alternativo da EBC à programação de massa e aos interesses comerciais das redes privadas, pregou independência, mas o que restou mesmo foi a segurança política do Planalto. Criada em outubro de 2007, por medida provisória, a EBC é uma instituição anêmica (duas TVs e nove rádios), sob total controle da Secretaria de Comunicação. O Conselho Curador é decorativo e marcado por um rodízio que em menos de dois anos trocou 6 dos seus 15 conselheiros.

CONGRESSO VIGIADO

Embora dialogue com muitos parlamentares, Franklin não tem atuação na tramitação de projetos. Sua equipe, no entanto, acompanha os embates com a oposição na Câmara e no Senado. Algumas vezes, Gilberto Carvalho é acionado para entrar em ação e recomendar aos governistas uma atitude mais ofensiva.

À frente da Comunicação Social, Franklin mudou a relação de Lula com a imprensa. Nos três primeiros anos do primeiro mandato, a média anual de entrevistas do presidente foi de 41. Este ano, até sexta-feira, já foram 195, somando as exclusivas, coletivas e os chamados ‘quebra-queixos’, em que os repórteres aproveitam a presença do presidente e fazem perguntas sobre os temas relevantes do dia.’

 

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Para ministro, era ‘obrigação’ participar de debate do pré-sal

‘O chefe da Secretaria de Comunicação Social, ministro Franklin Martins, rejeita o rótulo de superpoderoso e diz que teve uma atuação ‘normal’ no jantar em que o presidente Lula e três governadores discutiram mudanças no projeto do pré-sal.

‘É minha obrigação me interessar por um assunto crucial para o governo. O pré-sal é a questão mais importante que o governo tem pela frente. Claro que eu tinha de participar, e participei’, diz o ministro. Ele não faz uma relação direta entre seu papel no governo e o fato de não ter ambições políticas nem militância partidária. Mas reconhece: ‘Talvez me dê uma certa liberdade de falar certas coisas. Não sou obrigado a agradar ninguém.’

Franklin nega intenção de assumir função operacional na campanha de Dilma Rousseff. ‘Evidentemente vou conversar com a Dilma, mas não dá para fazer a comunicação do governo e da campanha dela. Como não dá para ser candidata e ministra. Em algum momento, tem que separar.’

O ministro não gosta de dar entrevistas, porque não quer que suas opiniões sejam interpretadas como o pensamento do presidente. Porém, na tarde de sexta-feira, falou de suas atribuições e de outros temas relacionados ao governo.

Na última semana, durante a viagem de Lula aos Estados Unidos, Franklin e ele se falaram por telefone sobre a permanência do presidente deposto Manuel Zelaya na embaixada brasileira em Honduras. Na avaliação do ministro, Zelaya, logo depois de instalado na embaixada, poderia ter agido de maneira mais discreta. ‘Acho que, num momento de tensão, ele foi um pouco além. O próprio presidente Lula disse que poderia dar margem a uma reação’, observou. ‘Não somos mediadores. Não temos nenhuma condescendência com o golpismo.’

As conversas matinais com o presidente, garante Franklin, ‘não duram mais que 15 minutos’ e tratam de ‘três ou quatro assuntos’. ‘Longe de mim dizer o que o presidente deve falar ou não’, minimiza.

Candidato a deputado federal em 1982 pelo PMDB, ele conta que se arrependeu no meio da campanha. ‘Não sei pedir voto. Não sei responder a um eleitor que pede uma vaga no hospital. Político manda uma carta para o diretor do hospital.’

Apesar da admiração pela colega, Franklin diz não ter intenção de trabalhar em um eventual governo Dilma. ‘É uma pessoa da minha geração e para mim é especialmente importante o fato de ser mulher. A ditadura fazia a desqualificação permanente das mulheres. Não a conheci na época, mas Dilma lutou aquela luta’, elogia.’

 

LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Moacir Assunção

‘Atitude de censurar jornal é injustificável’

‘O episódio da censura ao Estado demonstra, para o cientista político Humberto Dantas, conselheiro do Movimento Voto Consciente, que para boa parte da sociedade, e até mesmo do Congresso, a democracia ainda não é um valor universal, que deve ser defendido a todo custo.

‘A censura é lamentável, em um país que se pretende democrático, mas onde faltam postura e atitude democráticas. O papel da imprensa é, justamente, correr atrás da informação e, uma vez obtida, publicá-la, o que torna injustificável a atitude do desembargador que censurou o jornal’, disse.

Desde 31 de julho, o Estado está proibido, por decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), a pedido do empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), de publicar reportagens sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que investiga os negócios da família Sarney. O desembargador que proferiu a decisão, Dácio Vieira, foi afastado do caso por seus pares, mas sua decisão continua em vigor.

APATIA

Dantas considera que, para além da censura, a apatia de boa parte da sociedade em relação a episódios semelhantes ao do Estado, ocorridos em todo o País, nos quais juízes censuram jornais, representa algo grave. ‘Não tenho visto uma grande reação da sociedade civil, como seria de se esperar em um caso com essa gravidade. Talvez tenha gente que ache que isso está dentro da normalidade’, lamentou.

Na opinião do cientista político, o que permite que abusos contra a liberdade de expressão continuem ocorrendo, mesmo em um regime formalmente democrático, é a própria cultura política do brasileiro. ‘No Brasil, tendemos a aceitar a verticalização do poder. O Legislativo, por exemplo, que deveria representar o povo, está sempre a reboque do Executivo e nós gostamos da frase, profundamente autoritária, segundo a qual manda quem pode e obedece quem tem juízo’, afirmou.

O reflexo desse tipo de comportamento das instâncias de poder, para o pesquisador, são os baixos níveis de aprovação de políticos em geral e de instituições democráticas, em detrimento das Forças Armadas e da Polícia Federal, órgãos marcados pelo uso da força. ‘Embora uma pesquisa recente demonstre que o Senado ainda conta com níveis razoáveis de aprovação, seus índices são muito inferiores aos do Exército e da Polícia Federal.’

O poder de Sarney no Senado, para Dantas, demonstra que a instituição vive um momento antidemocrático. ‘As ligações telefônicas divulgadas demonstram que há uma família que se considera dona do País, o que conspira contra a democracia’, disse.’

 

LITERATURA
Francisco Foot Hardman

Euclides da Cunha, com rigor e leveza

‘A impressão forte que fica da leitura deste Euclidiana é a de um largo memorial que sedimenta a trajetória da pesquisadora Walnice Nogueira Galvão nas trilhas no mais das vezes imprevistas dos estudos que foi acumulando em torno do criador de Os Sertões.

São 16 artigos distribuídos entre quatro seções temáticas e uma apresentação, abarcando um longo intervalo de 25 anos, desde seu ensaio seminal sobre a formação intelectual de Euclides da Cunha em seus anos de Escola Militar, saído numa antologia coordenada por Florestan Fernandes, em 1984 – ao contrário do que se poderia supor, a grade curricular da instituição era bem abrangente, generalista, e abrigava as humanidades com destaque, para além das ciências e engenharia -, até seu recente Euclidianos e Conselheiristas: Um Quarteto de Notáveis, saído ainda agora em número especial da Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, em homenagem ao centenário da morte do escritor. Nesse texto, Walnice homenageia Antonio Houaiss, Franklin de Oliveira, José Calasans e Oswaldo Galotti (fundador, não da Semana Euclidiana, em 1912, como afirma a autora, mas da Maratona Euclidiana, em 1939), numa mesa-redonda quase mitológica em torno de seus próprios fantasmas sobre a obra do escritor, ali pelos idos de 1986.

Porque aqui se trata um pouco de famílias. E de manias. Das grandes, evidentemente. Pode-se reclamar com a autora o fato de ser bem mais generosa com os ancestrais dessa linhagem de estudiosos do que com os descendentes. Mas talvez essa ordem, às vezes algo hierática e reverencial, seja algo inevitável. Seu mérito, sem dúvida, é de abrir diálogo com zonas esquecidas, mas fundamentais de uma fortuna crítica secular, que já vai somando referências aos milhares. E as parcerias que adotou são meio raras no ambiente acadêmico estreito atual, especialmente da academia paulista. Foi assim, por exemplo, que se juntou a Oswado Gallotti e nos brindou com a Correspondência de Euclides da Cunha (1997), que permanecia extremamente lacunar e dispersa por quase 90 anos. Foi também assim que, em colaboração com Fernando Peres, que guarda, no Centro de Estudos Bahianos da UFBa, o acervo de José Calasans, editou este precioso Breviário de Antônio Conselheiro (2002).

Pois Walnice, mulher de múltiplos talentos, entre os quais o de sempre dizer o que acha, o que já lhe valeu mal-entendidos e desafetos – até Roberto Schwarz tremia de medo, quando ela assumiu um lugar na comissão julgadora do concurso de sua titularidade na Unicamp, em 1992, como suplente de Antonio Candido, momentaneamente impedido -, soube transitar com maleabilidade entre as tribos de euclidianistas e conselheiristas, tornando-se amiga do maior expoente dessa última ‘escola’, o historiador baiano Calasans. Para ele, haveria que contrabalançar o peso quase monopólico do texto de Os Sertões na construção da memória de Canudos com pesquisas arqueológicas e historiográficas que dessem voz ao testemunho de sobreviventes e à história material do cenário do conflito. Embora permanecendo fiel à linha mestra dos estudos literários e filológicos textuais, Walnice passou a incorporar como valor inestimável as pesquisas de campo, o levantamento de fontes primárias e a história oral. Sua notável livre-docência, No Calor da Hora (1975), trabalhando com os registros da Guerra de Canudos na imprensa nacional e regional, foi marco premonitório isolado no campo da teoria literária, décadas antes de que as relações entre literatura e história se convertessem em modismo acadêmico, muitas vezes dando ótimos frutos, e outras tantas resultando em crônicas deslumbradas, mas descosidas, em narrativas descompromissadas com a interpretação dos processos culturais.

O leitor terá uma amostra significativa do universo de preferências temáticas de Walnice nesse Euclidiana. Dos prefácios a vários de seus 12 livros sobre Euclides – entre eles uma versão resumida da introdução que preparou para sua edição crítica de Os Sertões (1985; 2ª ed., 1999), bem como a que fez em Os Autos do Processo, que precede a publicação integral mais recente (2007) das peças do julgamento de Dilermando de Assis, após a tragédia do subúrbio de Piedade – a resenhas e artigos jornalísticos, como o belo A Águia e o Condor (2002), justa homenagem a Victor Hugo e sua presença na literatura de Castro Alves e Euclides, o roteiro todo vai revelando uma ensaísta erudita, de estilo escorreito, sem prejuízo da mordacidade e ironia. Muitos deles publicados inicialmente em jornais e revistas de grande circulação, seus textos, de ótima qualidade, demonstram à larga a grande estupidez que representa, para as humanidades, a implantação de critérios rígidos de avaliação da produção acadêmica por índices inspirados nas ciências da natureza, como o duvidoso sistema Qualis da Capes. Já que a heterogeneidade, a surpresa, a polêmica e o transitório do ‘calor da hora’ são tantas vezes índices insubstituíveis da chave de qualquer comentário, interpretação ou juízo crítico dignos do nome, não se adaptando à tábula rasa de formatos mais padronizados ou estilisticamente neutros. Mas ali se encontram igualmente ensaios de fôlego, como Polifonia e Paixão e Anseios de Amplidão, que reinserem Euclides no universo da melhor tradição literária ocidental, antiga e moderna.

Walnice, que já nos deu mais de um Saco de Gatos, sabe bem disso e pratica uma prosa das mais despojadas que, em muitas passagens, aproxima-se do coloquial, mantendo, embora, a abstração do argumento e a posição crítica. Aquela que um dia já se insurgiu contra a ideologia do ‘dia de amanhã’ na música popular brasileira, pode, sem susto, trazer Euclides para o dia de hoje. E, para além da efeméride, perscrutar os sentidos ocultos de sua leitura do Brasil e as razões da permanência de sua arte literária. Que hoje trafega com incrível desenvoltura, até maior que a obra de Machado, por quadrantes que vão de São José do Rio Pardo a Cantagalo, de Paris a Berlim, de Amsterdã a Varsóvia, de Austin a São José do Paiaiá, de Caracas a Manaus, de São Paulo a Madri, de Berkeley ao Rio de Janeiro. Walnice, como poucos, mostra-se em dia com essa itinerância.

Francisco Foot Hardman é professor titular do programa de teoria e história literária da Unicamp e autor, entre outros, de A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna (Unesp)’

 

Antonio Gonçalves Filho

A aventura do romance

‘Quando o professor italiano de literatura Franco Moretti começou a organizar o primeiro dos cinco volumes que compõem a coleção O Romance, cujo primeiro (A Cultura do Romance) está sendo lançado pela Cosac Naify (1.120 págs., tradução de Denise Bottman, R$ 130), sabia que contava para o monumental projeto com estudiosos não necessariamente alinhados com sua visão – a de que o modelo interpretativo de análise literária isolada de obras (o chamado ‘close reading’) está ultrapassado. Pluralista, Moretti defende um novo modelo analítico, transformando a crítica num verdadeiro laboratório, em que o cientista literário terá de dominar várias disciplinas – da antropologia à geografia, passando pela biologia – para evitar o vício canônico de um Harold Bloom. Sobre ele e sua coleção, cujos próximos volumes serão lançados um a cada semestre, Moretti, cujo sobrenome trai seu parentesco com o irmão cineasta Nanni Moretti (O Quarto do Filho), falou pelo telefone com o Estado, destacando a participação de dois dos seus colaboradores brasileiros, Roberto Schwarz e Luiz Costa Lima.

São nomes estelares numa constelação de críticos e escritores entre os 178 colaboradores de 99 instituições do mundo inteiro. A lista impressiona: fazem parte do comitê científico que supervisiona a coleção o peruano Mario Vargas Llosa, colaborador do Estado, e o crítico literário norte-americano Fredric Jameson. Entre os outros colaboradores, destacam-se o teórico e romancista italiano Umberto Eco, o poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger, o antropólogo inglês Jack Goody, o escritor italiano Claudio Magris e a crítica argentina Beatriz Sarlo. Talvez seja o suficiente para convencer o mais cético dos leitores sobre a proposta de fazer dessa uma obra de referência para a atual e as próximas gerações de estudiosos.

Originalmente publicada em italiano pela Einaudi, entre 2001 e 2003, a coleção teve uma versão reduzida (dois volumes) lançada na Inglaterra há três anos e foi saudada pelo crítico David Trotter, do London Review of Books, como um marco entre os estudos literários. Com justiça. O gênero romance é dissecado no ‘microscópio’ de Moretti não só por especialistas em literatura como por antropólogos, sociólogos e filósofos. Num mundo globalizado, que ignora peculiaridades locais e em que cada vez mais fica difícil distinguir entre literatura francesa, angolana ou brasileira, Moretti propõe um seminário de crítica menos parecido com um simpósio da academia platônica e mais próximo de seu laboratório, em que bancos da dados críticos possam suprir as necessidades teóricas dos estudiosos.’

 

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