Wednesday, 04 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O Estado de S. Paulo

AI-5
Carlos Marchi

A liberdade assassinada

‘Há 40 anos, na tarde/noite da sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, sentados à mesa de jantar do Palácio das Laranjeiras, sede da Presidência da República no Rio, 25 membros do Conselho de Segurança Nacional – 15 militares e 10 civis – aprovaram o Ato Institucional nº 5 (AI-5), numa reunião que durou 2 horas e 10 minutos. O ato foi sugerido pelo próprio marechal-presidente Artur da Costa e Silva, sentado à cabeceira, e serviria para legalizar o arbítrio. Só um daqueles 25 homens votou contra, o vice-presidente Pedro Aleixo, embora estivessem na sala outros brasileiros de reconhecida tradição democrática.

Os atos institucionais vinham desde o começo do regime militar, em 1964. Eram leis que não passavam pelo Congresso. Os primeiros traziam um certo verniz de democracia, mas o AI-5 escancarou a ditadura. Nele, o marechal-presidente tinha poderes ilimitados. Podia legislar, cassar parlamentares e fechar o Congresso; suspender direitos políticos; mandar prender pessoas sem autorização judicial; nomear quem quisesse para governar Estados; censurar a imprensa para impedir a publicação de notícias que desagradassem ao governo, fosse uma crítica oposicionista ou um inesperado surto de meningite.

O Brasil daquela época tinha outra cara. Éramos mais de 90 milhões em ação estreitamente vigiada: só podíamos ouvir, ler, ver ou dizer o que o regime permitia. Os militares promoviam um culto exacerbado dos símbolos nacionais. A moeda se chamava cruzeiro novo, Pelé ainda jogava e nem tinha marcado o milésimo gol; as baladas eram chamadas de ‘bailinhos’, banhados a luz negra, e as meninas compareciam com bem penteados cabelos longos. Não havia cerveja ou refrigerante em lata; os carros da moda eram Fusca, Gordini e Aero-Willys. O computador pessoal ainda estava em testes e a internet não passava de um embrião de restrito uso militar, nos Estados Unidos. Ainda bem, para os militares linha-dura que conceberam o AI-5: como teriam feito para censurar a rede mundial de computadores?

Inspirada por modelos revolucionários – de Cuba ao Vietnã -, a esquerda radical encantou os estudantes com a utopia da luta armada. Mas havia outros estímulos para o confronto. O mundo vivia o apogeu da guerra fria, que criou um planeta maniqueísta, dividido entre EUA, à direita, e União Soviética, à esquerda. Se um era o bem, o outro representava necessariamente o mal – e isso se reproduzia no Brasil. Os estudantes também se empolgaram com o Maio de 1968, rebelião estudantil que começou reivindicando uma reforma universitária e acabou incendiando a França.

Nos primeiros meses de 1968, a escalada contra a ditadura chegou ao auge. Explodiu em março com a morte – num confronto com a polícia, no restaurante do Calabouço, no Rio – do secundarista Edson Luís de Lima Souto, cujo corpo foi transformado em ícone da luta política e mereceu um enterro-passeata com 50 mil pessoas. As ruas foram ocupadas nas principais capitais por sucessivas manifestações contra o regime, que perdia celeremente o apoio da classe média, conquistado no golpe contra o presidente constitucional João Goulart, quatro anos antes. Os dois extremos passaram a se retroalimentar – os estudantes protestavam, o regime endurecia. Espremidas entre os extremos, a esquerda democrática e a direita liberal perdiam espaço, embora a Passeata dos 100 mil, em junho, tivesse revelado que a oposição ao regime era bem maior que a esquerda radical e os estudantes.

A linha dura militar buscava pretextos para fechar de vez o regime. O motivo ideal se revelou num discurso tão despretensioso quanto inconseqüente do deputado Márcio Moreira Alves (MDB da Guanabara), de 32 anos. Às vésperas do 7 de Setembro, ele apelou da tribuna da Câmara para que as moças não namorassem jovens oficiais. O governo militar quis processá-lo, mas a Câmara negou a licença. A resposta foi o AI-5.

O Ato nº 5 devastou a vida política e cultural brasileira. Com base nele, 1.577 cidadãos foram punidos – 454 perderam mandatos políticos ou tiveram os direitos políticos suspensos, inclusive 3 ministros do Supremo Tribunal Federal; 548 funcionários civis foram aposentados, 334, demitidos e 241 militares, reformados. As Assembléias dos Estados da Guanabara e do Rio, então separados, São Paulo, Pernambuco e Sergipe foram postas em recesso. Foram proibidos mais de 500 filmes e telenovelas, 450 peças teatrais, 200 livros e 500 letras de música; o Estado e a Tribuna da Imprensa, que não admitiram censura prévia, receberam censores nas oficinas.

O AI-5 foi extinto em dezembro de 1978. O regime não sobreviveu muito tempo sem ele. Seis anos e um mês depois, ensarilhou armas e devolveu o poder aos civis. Dezesseis anos mais tarde, um dos punidos pelo AI-5 – o exilado Fernando Henrique Cardoso, que em 1968 foi aposentado da Universidade de São Paulo e teve os direitos políticos suspensos por 10 anos – chegaria à Presidência da República. Seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, amargara 31 dias de cadeia em 1979. Lula, por sua vez, poderá legar o poder a uma terceira vítima da ditadura. Os dois presidenciáveis mais destacados hoje são José Serra, presidente da UNE cassado em 1964, e Dilma Rousseff, militante da guerrilha, presa em 1970. Se um deles vencer, vítimas da ditadura terão ficado no poder 20 anos, exatamente o período que durou o regime criado pelo golpe de 1964.’

 

José Maria Mayrink

‘Estado’ liderou resistência à censura

‘A censura prévia começou no Estado de S. Paulo na noite de 12 de dezembro de 1968, véspera da edição do AI-5, que sufocaria a imprensa nos anos seguintes. Desde o golpe militar de 1964, houve muita pressão, ameaças e até atentados contra o jornal, mas os censores ainda não freqüentavam a redação. A repressão só chegou para valer quando a Câmara negou a licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, do MDB do antigo Estado da Guanabara, que fizera discursos considerados ofensivos às Forças Armadas.

No dia 12, o general Sílvio Correia de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo, telefonou para a redação do Estado para saber qual seria a manchete do dia seguinte. Aparentemente, deu-se por satisfeito quando o editor-chefe, Oliveiros S. Ferreira, leu o texto. ‘Câmara nega; prontidão’, informava a primeira página. Na manhã do dia 13, o jornal foi apreendido. O general liberou a notícia, mas não gostou do editorial Instituições em frangalhos, no qual o diretor do Estado, Julio de Mesquita Filho, o Doutor Julinho, denunciava a arbitrariedade e criticava o comportamento do presidente Costa e Silva. Era um texto duro e corajoso, que refletia a tradicional independência do jornal diante dos governantes.

Foi o último editorial de Julio de Mesquita Filho. Em sinal de protesto contra a censura, ele deixou de escrever na seção Notas e Informações, na página 3, que registra a opinião do Estado, sempre clara diante de fatos nacionais e internacionais. Revoltado com a apreensão do jornal, ele mandou o filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Sílvio que, em nenhuma hipótese, faria autocensura. Se o governo quisesse proibir alguma notícia, que pusesse censores na redação. Sua resistência custou caro.

‘O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai’, disse o jornalista Ruy Mesquita, em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Era um homem de boa saúde, mas caiu doente quando parou de escrever o editorial e morreu em julho de 1969, sete meses após a edição do AI-5. Revolucionário da primeira hora, havia conspirado para a deposição de João Goulart e apoiado o projeto do marechal Castelo Branco, acreditando em sua promessa de redemocratizar o País. Rompeu com o regime quando o governo militar baixou o AI-2 e cancelou as eleições presidenciais previstas para outubro de 1965.

Apesar do cerco policial, milhares de exemplares do Estado chegaram às ruas na manhã do dia 13. O pessoal da expedição armou uma operação de guerra. ‘Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos mais de 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição’, lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, no centro de São Paulo, onde ficava a sede do jornal.

Também o Jornal da Tarde, vespertino do Grupo Estado, foi proibido de circular e apreendido. Seus diretores se recusaram a trocar textos considerados ‘mais exaltados’, depois de terem publicado, no dia 12, um editorial sobre a crise política com o título Mais uma demonstração de inviabilidade do regime. Repórteres e editores fizeram um esquema semelhante ao do Estado para garantir a distribuição. Enquanto a polícia vigiava a Major Quedinho, 84.900 exemplares deixaram o prédio pelo outro lado, pela Rua Martins Fontes.

O general Sílvio ficou furioso. Percorreu as bancas do bairro de Higienópolis para recolher o JT pessoalmente. ‘Esse jornal traiu a Revolução’, gritava. Milhares de exemplares do Estado e do JT chegaram às cidades de Campinas, Sorocaba e Santos, num raio de 100 quilômetros. Os poucos que alcançaram outras cidades, como Rio, Salvador e Recife, eram disputados de mão em mão.

Na noite de 13 de dezembro, os censores se instalaram na redação, enquanto os jornalistas, atônitos, se agrupavam ao lado de um aparelho de TV para assistir ao anúncio do AI-5. No vídeo, o locutor oficial Alberto Curi leu o texto ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da Universidade de São Paulo. Era uma medida esperada, apesar de desmentidos de autoridades como o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, mas no primeiro momento ninguém sabia o que fazer.

Quando o jornal começou a rodar nas máquinas do andar térreo, um grupo de repórteres e redatores atravessou a Rua da Consolação para conversar num boteco. Alguns pensaram em reagir, mas não viam como. Outros tentaram negociar com os censores. A edição do dia 14 noticiou as agruras da véspera. ‘Novo ato; Congresso em recesso’, era esta a manchete do Estado. Nas colunas laterais da primeira página, detalhes sobre a apreensão dos jornais e um relato de Julio de Mesquita Neto sobre seu encontro com o chefe da Polícia Federal.

Os censores permaneceram no jornal até 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram, para só voltar em 24 de agosto de 1972. Nesse dia, correu o boato, em Brasília, de que o jornal publicaria um manifesto militar lançando a candidatura do general Ernesto Geisel, presidente da Petrobrás, para a sucessão do general Emílio Garrastazu Médici. Julio de Mesquita Neto ligou para o chefe da sucursal, Carlos Chagas, para saber o que estava acontecendo.’Esse manifesto aí é coisa de vocês?’, perguntou.

Não havia nada, mas o governo não se convenceu e decidiu fazer a censura prévia. No mesmo dia, os censores se instalaram no prédio da Major Quedinho. Ocuparam uma mesa ao lado dos editores, no 5º andar, mas logo tiveram de descer para a tipografia. Os jornalistas receberam os policiais com indisfarçável hostilidade. Decidiu-se então que o lugar dos censores seria ao lado das máquinas das oficinas, sem contato com a redação. Só se dirigiam ao secretário gráfico, para apontar o que estava proibido publicar.

Até a chegada dos censores, o jornal recebia da Polícia Federal telefonemas, bilhetes e comunicados com a relação dos temas vetados. Era obrigado a substituir a matéria censurada por outros textos, mas não fazia autocensura. A ordem de Julio de Mesquita Neto no Estado e de Ruy Mesquita no JT era para trabalhar como se não houvesse restrições.

‘Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem’, era essa a orientação.

Como os jornais se recusavam a substituir matérias vetadas e os censores não admitiam que se deixasse espaço em branco, recorria-se a textos aleatórios para que o leitor pudesse entender o que estava ocorrendo. Cartas inventadas na redação, tratados jurídicos e notícias sobre criação de animais e cultivo de flores apareciam com destaque nas páginas nobres do Estado, no lugar de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.

Quando, em maio de 1973, foi proibido publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. ‘Agora é samba’, dizia o anúncio, com grande impacto. Repetiu-se a dose no dia seguinte, quando foi publicada, no lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca. Legenda: ‘A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor.’

Na tentativa, sempre mais criativa, de deixar claro que o jornal estava sob censura, os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema, Y-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, saiu em destaque na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Outros poetas, como Castro Alves, Olavo Bilac, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, também colaboraram com seus versos para preencher o espaço aberto pela censura. Até textos latinos, como a Primeira Catilinária, de Cícero, foram publicados.

Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos deles telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo apoio dado à literatura e ao cultivo de flores. Um grupo de senhoras procurou o prefeito Figueiredo Ferraz para sugerir que ele apoiasse a suposta campanha do jornal para florir a cidade. Diante dessa reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura.

O redator Antônio Carvalho Mendes, que escrevia uma coluna sobre cinofilia e já era responsável pela seção de falecimentos, sugeriu que se publicassem versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Aceita a sugestão, o poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da Universidade de São Paulo, foram cortados 1.136 textos no Estado, de 29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura.

No Jornal da Tarde, Ruy Mesquita optou pela publicação de receitas culinárias, de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas. A reação foi parecida. Muitos leitores não percebiam a manobra e telefonavam para reclamar, pois as receitas não davam certo. Não era para menos, pois elas saíam aos pedaços, incompletas, na medida exata do espaço censurado. Quando descobriram a brincadeira, alguns leitores ligaram para perguntar o que havia sido proibido.

Os censores nem sempre tinham critérios para cortar informações, comentários e opiniões que consideravam prejudiciais ao governo. A transcrição de um discurso do professor Paulo Brossard, mais tarde senador e ministro, nas comemorações do cinqüentenário da morte de Rui Barbosa, em agosto de 1973, virou poema de Camões, porque lembrava ‘a luta de Rui pelos direitos humanos’. Até ministros e generais ligados ao regime foram censurados.

Além de cortar textos de editorais e reportagens, a censura investia contra jornalistas. Repórteres e correspondentes do Estado sofreram pressões e foram perseguidos por causa do seu trabalho ou de suas convicções políticas. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Geisel. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, também foi preso e torturado no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna(DOI-Codi), na mesma semana e no mesmo local em que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura.

Oliveiros S. Ferreira, que como editor-chefe era o interlocutor do jornal com os responsáveis pela censura, teve de ir várias vezes à Polícia Federal e a unidades do Exército para explicar a publicação de temas proibidos que haviam escapado aos censores. Numa manhã em que um general mandou convocá-lo, após a divulgação de notícia sobre a invasão ou ‘estouro’ de uma gráfica clandestina, ele saiu de casa com a certeza de que seria preso. Levou escova, pasta de dente e um livro para passar algum tempo na cadeia. Seu depoimento durou horas e ele só foi liberado à noite, depois de telefonemas de Julio de Mesquita Neto a autoridades em Brasília.

O jornal deu toda a assistência a seus funcionários. Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita assumiam a responsabilidade pelas reportagens publicadas e mandavam que, quando questionados, os jornalistas dissessem que estavam cumprindo ordens deles. Isso ocorreu, por exemplo, em dezembro de 1972, com Chagas, da sucursal de Brasília. Ele foi intimado a depor no Exército para revelar quem tinha feito uma matéria sobre denúncia de seqüestro e tortura de um médico na capital.

Chagas alegou que o material saiu de Brasília, mas que a publicação era de responsabilidade do diretor do jornal, Julio de Mesquita Neto. Convocado, por precatória, a dar explicações na 2ª Região Militar, em São Paulo, o jornalista respondeu com ironia às perguntas de um major que o interrogava.

‘No jornal, o senhor ocupa que cargo?’, perguntou o oficial.

‘Eu sou diretor do jornal’, disse o jornalista.

‘Diretor responsável, não é, dr. Julio?’

‘Não, responsável pelo jornal é o professor Alfredo Buzaid, ministro da Justiça. Porque o responsável pelo jornal decide o que sai e o que não. No caso, depois da censura, quem decide o que sai ou deixa de sair no Estado é o professor Alfredo Buzaid. Portanto, ele é que é o diretor responsável pelo jornal’, respondeu Julio de Mesquita Neto. O advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que o acompanhava, aconselhou-o a mudar a resposta, mas o jornalista insistiu.

‘Não, e só saio daqui se ficar constando o que eu disse.’

Tanto Julio de Mesquita Neto como o editor-chefe Oliveiros S. Ferreira denunciavam sistematicamente, em telegramas ao ministro da Justiça e aos líderes dos partidos do governo e da oposição no Congresso, a censura de discursos e documentos oficiais que tinham de ser substituídos por versos de Camões. No JT, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que ele mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a Polícia Federal baixou novas normas de censura à imprensa.

Dizia o texto: ‘Senhor ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura…Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castelo Branco, para enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas…’

As normas de censura que deixavam Ruy Mesquita humilhado, como ele disse ter ficado, proibiam ‘críticas, comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações’, não importando de onde partissem. ‘As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas’, dizia o comunicado da Polícia Federal. Era citada explicitamente a proibição de uma entrevista do economista Roberto Campos, ex-ministro do governo Castelo Branco.

‘O grande papel na luta contra a censura foi do Estado, que assumiu toda a responsabilidade, e eu tenho orgulho de ter participado disso’, afirmou o jornalista Fernando Pedreira, que na época da ditadura, sob vigência do AI-5, foi chefe da sucursal do Rio e diretor do Grupo Estado em São Paulo. ‘Acho que o Estado foi o único jornal diário que sofreu censura prévia. Exatamente porque o Estado não fazia autocensura, houve a censura prévia’, acrescentou.

O jornal enfrentou muita dificuldade para cobrir, com a possível objetividade, episódios como a morte de Carlos Marighella, a opção pela guerrilha de Carlos Lamarca e sua morte e os seqüestros de diplomatas. Os repórteres, que só tinham acesso às versões oficiais dos órgãos de segurança, tinham de se arriscar ao recorrer a outras fontes. No caso do seqüestro do cônsul japonês Nobuo Okushi, em março de 1970, em São Paulo, os seqüestradores utilizaram o Estado como intermediário. Faziam suas exigências em cartas deixadas em caixas de correspondência e avisavam o jornal sobre sua localização.

Oliveiros S. Ferreira enfrentou um dilema. ‘Aviso o Exército e perco a carta ou pego a carta e o Exército fica bravo comigo?’ Mandou um repórter buscar a carta e, 15 minutos depois, telefonou para um coronel. ‘Há uma carta em tal endereço. Mandei pegar. Vamos ver quem chega primeiro.’ E assim foi ao longo do dia, pois as cartas continuaram chegando até a noite. ‘Às vezes eu chegava primeiro, às vezes o Exército chegava.’ O editor-chefe tirava cópias das cartas antes de entregá-las aos militares. O Estado funcionou como um centro de distribuição, porque outros jornais e agências de notícias internacionais ficaram sabendo e pediam cópias das cartas. O Estado foi proibido de publicar as cartas, mas a imprensa do Rio publicou todas.

A lista de temas vetados pela censura incluía tudo que pudesse ser interpretado como crítica ao regime militar. Constavam da relação conflitos de terra, questões indígenas, protestos de intelectuais e pronunciamentos da Igreja Católica. Os censores proibiram até um discurso do papa Paulo VI, no qual ele se referia ao desrespeito dos direitos humanos no Brasil. Os nomes dos bispos d. Helder Câmara e d. Pedro Casaldáliga não podiam ser citados. Um comunicado da Polícia Federal, sem timbre e sem assinatura, vetou qualquer referência à peça Calabar, o Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra.

A censura só acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário de O Estado de S. Paulo. Era o cumprimento de um compromisso assumido por Geisel meses antes de assumir a Presidência da República, em março de 1974. Depois de sua posse, os censores continuaram nas oficinas do jornal. Apesar da promessa do ministro da Justiça, Armando Falcão, de que o governo acabaria logo com as restrições, a repressão endureceu quando começou uma epidemia de meningite. Era proibido falar na doença, que fez milhares de vítimas.

Apesar do levantamento da censura, interpretado como uma deferência de Geisel ao centenário do jornal, as dificuldades continuaram nos anos seguintes, até o fim da vigência do AI-5, em dezembro de 1978. Um período particularmente difícil foram os últimos meses de 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi preso e assassinado nas dependências do DOI-Codi. A tensão político-militar que o governo enfrentou na época se refletiu na imprensa, pois aumentaram as pressões, embora não houvesse mais versos de Camões e receitas culinárias nas páginas do Estado e do JT.

Além de protestar com as autoridades, o Estado recorreu aos tribunais contra a censura. ‘A chance de levar a censura à Justiça veio com a queda de Cirne Lima, quando foi proibido publicar a carta de demissão do ministro da Agricultura’, disse o advogado Manuel Alceu, que entrou com a petição inicial em 15 de maio de 1973. Ele ganhou a causa em primeira instância três anos depois, mas enfrentou recursos e contestações até agosto de 1980, quando o Tribunal Federal de Recursos condenou definitivamente o governo a pagar a indenização.

‘É um valor quase simbólico (a indenização, que ainda não foi paga, seria de R$ 101.223,00 em julho de 2008), levando-se em conta os danos materiais e morais sofridos pelo Estado e pelo Jornal da Tarde em 10 e 11 de maio de 1973’, disse Manuel Alceu. ‘Acho que esse dinheiro, o valor da indenização, não tem grande importância para o jornal, pois a preocupação dos Mesquitas era outra, quando entraram com a ação’, observou o juiz federal aposentado Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, que julgou a ação procedente em março de 1976.’

 

Luiz Zanin Oricchio

Cultura de resistência

‘A onda artística que veio se quebrar contra a muralha do AI-5 já estava em formação havia muitos anos. Mesmo antes de 1964, surgiram núcleos de renovação estética, como a bossa nova, o Cinema Novo, os Teatros de Arena e Oficina, os Centros Populares de Cultura, a poesia concreta.

Após o golpe, o poder mostrou-se incapaz de controlar essas manifestações. Filmes como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra, e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, foram concebidos ainda em 1963, no governo Goulart, mas desenvolveram suas carreiras no ano seguinte. Morte e Vida Severina, peça baseada no poema de João Cabral e musicada por Chico Buarque, era assistida no Tuca, em São Paulo, como cerimônia de indignação cívica. O contraponto carioca era o show Opinião, levando a platéia a um transe contestador. No teatro, o transe dava-se no Arena, com a peça Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri. As canções de Chico e de Geraldo Vandré embalavam toda uma geração que pedia reformas sociais.

Como o enfrentamento entre sociedade e governo acirrou-se em 1967 e 1968, tal fato não poderia deixar de refletir-se nas artes. Em 67, aparecia um filme genial e desesperado, Terra em Transe, de Glauber. Os festivais ferviam, e músicas como Disparada, de Théo de Barros e Vandré, diziam o que parte significativa da sociedade, na oposição, queria ouvir. No teatro, a releitura radical de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, fazia de José Celso Martinez um dos principais nomes da época. Na literatura, Quarup, de Antonio Callado, discutia a opção armada na contestação ao regime. E, nas artes plásticas, Hélio Oiticica inaugurava Tropicália, ‘ambiente instalação’ que iria ter grande influência no desenvolvimento da música popular. Inspirou o Tropicalismo, movimento contestador em termos comportamentais, que rompia com o discurso estético (e político) da esquerda tradicional, mas incomodava profundamente a direita.

Depois do AI-5 a censura se torna absoluta e a perseguição ganha ares de ‘legalidade’. Muitos dos artistas mais incisivos seguem para o exílio, como Glauber, Caetano, Gil, Chico, Vandré, Zé Celso, entre outros.

O desafio passou a ser ‘driblar’ a censura, passando mensagens cifradas que poderiam ser compreendidas pelo destinatário avisado. No sambão Aquele Abraço, Gil falava do exílio. Em Alfômega, murmurava, entre os dentes, o nome de Carlos Marighella. Mas o hino da resistência veio mesmo com Chico e Apesar de Você, cujos versos ‘Apesar de você/Amanhã há de ser outro dia’ falavam da inevitável transitoriedade histórica da ditadura.

O cinema valeu-se de um barroquismo alegórico para passar pela censura. São os casos de Azyllo Muito Louco, adaptação de Nelson Pereira dos Santos para O Alienista, de Machado de Assis, Pindorama, de Arnaldo Jabor, e tantos outros. Alguns cineastas encontraram meios diferentes para evitar a censura. Joaquim Pedro, em Os Inconfidentes, usa o texto dos Autos da Devassa da Inconfidência para, de esguelha, refletir sobre o momento político. São Bernardo, de Leon Hirszman, recorre a Graciliano Ramos para conduzir sua reflexão anticapitalista. O cinema dito ‘marginal’ gera um grito de desespero, criativo porém politicamente inarticulado, e busca no deliberado mau gosto expressão para o momento de sufoco social – casos de Bang Bang, de Andrea Tonacci, e Matou a Família e Foi ao Cinema, de Julio Bressane. No teatro, a censura continuava atenta e uma peça como Calabar, de Chico e Ruy Guerra, esbarrou em seu veto.

A chegada de Geisel ao poder dá início à política de distensão. Com a criação da Embrafilme, remanescentes do Cinema Novo voltaram-se para a produção de filmes de sucesso. São da década de 70 os maiores êxitos de público do cinema brasileiro, como Dona Flor e seus Dois Maridos, Xica da Silva e A Dama do Lotação. Muitos interpretam essa domesticação do cinema, sob a guarida do Estado, como mais eficaz que qualquer lei de censura.

O fato de a produção artística ter se mantido, ainda que precariamente, na década de 70, e produzido algumas grandes obras pode ser considerado quase um milagre. A música de Milton Nascimento, Caetano e Chico, livros como Reflexos do Baile, de Callado, peças como Gracias Señor, no Oficina, eram atos de desobediência civil. Mas já não atingiam a sociedade como antes, e nem poderiam fazê-lo, pois se vivia um tempo de medo antes que a abertura se completasse.

Acreditava-se que, após o AI-5, jorrariam obras deixadas no fundo da gaveta. Engano. Com notáveis exceções, a década de 1980 foi das mais medíocres no plano artístico, embora embalada pelas Diretas-Já. Algo se quebrara ao longo da fase feroz da ditadura. A atividade artística nunca mais seria a mesma dos anos 60, mesmo porque o tempo já era outro. No silêncio da história, a presença da indústria cultural havia se intensificado, e a ‘arte para o mercado’ surgia como a fórmula mais eficaz para a esterilização da arte contestadora e radical.’

 

Rui Nogueira

‘Aprendemos na carne o valor da democracia’

‘Quarenta anos atrás a estudante mineira Dilma Vana Rousseff Linhares ganhou um presente macabro e antecipado de aniversário. Ela completava 21 anos e tomava café da manhã na lanchonete Torre Eiffel, na Rua Espírito Santo, Belo Horizonte, quando foi avisada por um colega da Faculdade de Economia que, na noite anterior, 13 de dezembro de 1968, o governo baixara o AI-5.

A filha de emigrantes búlgaros (ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula desde junho de 2005), é testemunha do efeito violento do AI-5 naquela geração. Dilma escolheu o caminho da luta armada para fazer oposição aos generais – integrou a VAR-Palmares -, participou de assaltos a bancos e quartéis, acabou sendo presa (1970-1973) e torturada.Como assessora número 1 do presidente, quase uma ‘primeira-ministra’, Dilma é hoje a mais alta autoridade do governo a ter sofrido nas mãos dos torturadores nos porões da ditadura.

Refletindo a experiência passada à luz da vida democrática de hoje, Dilma tenta sintetizar a herança daquele período: ‘A minha geração aprendeu com a dor na carne a importância da democracia.’ Veja a seguir o depoimento que a ministra concedeu ao Estado na quinta-feira sobre os 40 anos do AI-5:

‘O AI-5 alijou a minha geração da política, proibiu-a de fazer discussões, exercitar a divergência, criticar, de, enfim, pensar politicamente pela sua cabeça. A juventude daquela época vinha de um processo acelerado de politização, que não tem as características do momento que vivemos hoje, numa democracia. As coisas hoje são mais lentas, mas, na minha época, a política era muito acelerada. Os estudantes faziam política e viam trabalhadores fazer as primeiras greves, de Osasco e Contagem, pós-golpe de 64.

O pré-AI-5 é um momento em que aconteciam todas as modificações. Havia uma efervescência que se manifestava mais fortemente na cultura, com o Arena, os shows. Isso tudo era uma ponte com o pré-64, uma efervescência absolutamente incompatível com o pensamento político dominante do governo. O AI-5 chega e é o fim de todas as liberdades. Desde a mais primária, o habeas-corpus. O Congresso se torna absolutamente lateral, o AI-5 emascula o Legislativo.

Com a decretação do AI-5, sentimos que qualquer opositor à ditadura corria grande risco. Lembro que na véspera do AI-5 todo mundo dizia que o fechamento do regime viria depois que a rainha Elizabeth (da Inglaterra) deixasse o Brasil. Passei a dormir fora de casa por achar que seria presa depois que a rainha fosse embora. Mas como isso não aconteceu logo, eu voltei.

Sentimos que caiu sobre o Brasil uma nuvem negra e se especulava sobre toda sorte de possibilidades. Desde a idéia de que o Brasil viraria uma grande Indonésia, com pressão e mortes até o fechamento do Congresso. Foi esse clima que moldou a consciência política de uma geração inteira. Isso ocorre em 1968 e vai num ritmo de definição por todo ano de 1969. Estabeleceu-se um imenso descrédito na possibilidade de luta política legal.

No pré-64 todo mundo acreditava que haveria avanços democráticos sucessivos, que o País seria transformado, que as reformas seriam feitas e seria construída uma nação desenvolvida. Essa história de que todos pensavam num Estado marxista-leninista era conversa de generais, fazia parte da acusação de que o governo Jango (João Goulart) instalaria uma república sindical. Os estudantes, na rua, com idades entre 16 e 20 e poucos anos, não tinham muito claro essa idéia de Estado marxista-leninista. A reforma era a visão predominante. O golpe de 64 passa a mensagem de que a democracia seria uma democracia para poucos. E ficou patente o processo conservador e concentrador de renda.

Quando se instaurou socialmente a ditadura, o pior efeito foi a descrença na possibilidade da democracia. E começa a haver uma grande crítica aos chamados reformistas, ao pessoal que achava que podia mudar o Brasil por meios pacíficos. Mas antes do AI-5, e como a vida é mais complexa, há um período, o pós-64, em que se fazem grandes passeatas, ainda se fazia política, reclamava, protestava. Quando fecha por completo, vem a sensação de impotência diante da ditadura.

Hoje, valorizamos a democracia. Quem respira não fica dizendo todos os dias que o ar é ótimo. Você está simplesmente acostumado a respirar. Hoje, a democracia é que nem o ar que a gente respira, mas, na minha geração de estudante e luta política não era assim. Vivi uma época em que a minha existência era simplesmente negada. Não era só o processo de repressão, tortura e morte, mas também o não reconhecimento de um estado de exceção, como essa coisa de não haver preso político no Brasil estando eu numa cadeia rodeada de presos políticos.

A sociedade estava proibida de reconhecer o estado de exceção e isso gera fenômenos como o que o jornalista Elio Gaspari descreve, o fenômeno do porão. A instituição (Exército) diz que nada tem a ver com o porão, não reconhece a situação, mas, estranhamente, a instituição é contaminada pelo que ‘não existe’, o porão. A verdade é que houve uma relação dos setores privados com isso. Asseguro que a comida que comíamos na prisão, a quentinha fornecida aos presos políticos que não existiam, era fornecida por uma empresa privada. A Operação Bandeirantes (Oban, que estruturou a repressão) teve financiamento privado.

O pós-AI-5 contamina tudo, corrói o Estado. O mesmo que acontece em Guantánamo e aconteceu am Abu Ghraib, as instituições corrompidas. A tortura contamina tudo e ninguém, depois, protege essas cosias impunemente. Aquilo que Hannah Arendt dizia: você não mata 6 milhões de judeus sem cumplicidade. O AI-5 instaura esse processo.

Temos de entender que, desse período, herdamos um apoliticismo que é muito reservado na cultura brasileira. O que é bom é técnico; o ruim é o político. Isso deriva da ditadura, que precisou desconstruir a política como instância legítima e democrática para a disputa e a formação dos consensos. Foi preciso acabar com a política e, para isso, criou-se uma instância tecnocrática, que era justa, correta, que desmoralizava a política e dizia que ela era algo ruim, corrupta e perversa.

Esse é um processo que, de certa forma, ainda mantemos hoje. Muitas vezes me perguntam: ‘A senhora é técnica, não é?!’ Como se fosse algo justo ter de ser técnico para assumir cargo no governo. Sempre conto uma historinha a propósito disso: ao final de uma reunião, na Bolívia, num governo passado (antes de Evo Morales), perto do final de ano, perguntei ao ministro das Minas e Energia se ele ia para casa e onde ele era, se em La Paz ou Sucre. Ele me respondeu que sim, que ao final da reunião ia para casa… em Miami. ‘Eu moro em Miami, sou um técnico.’

Quem não tem raiz no país, quem não defende pelo menos um dos lados possíveis do debate, não tem compromisso com o país. A minha sorte tem de ser a sorte do país. Tem de ter lado, tem de fazer política no país. Há sempre escolhas a fazer. Um governo pode ser tudo, menos um governo de tecnocratas. Até porque nunca houve, literalmente, governo de tecnocratas. Os governos dos ditos técnicos não eram neutros, serviram a alguém, fizeram uma política conservadora, elitista e autoritária.

Hoje, 40 anos depois do AI-5, podemos dizer que o nosso processo democrático é muito mais profundo do que a gente pensa. Quantas eleições já fizemos… Somos, talvez, a democracia mais estável entre os países emergentes, uma conquista imensa – até porque a minha geração tem clareza do que significou o outro momento. Nós aprendemos, da pior forma possível. As novas gerações estão aprendendo da melhor forma possível, que é exercendo a democracia. Naquele tempo, fazer greve era uma tarefa difícil, a greve comprometia o Estado. Onde já se viu! A minha geração aprendeu na carne a importância de democracia. E tem de brigar pela institucionalização da democracia. A luta na clandestinidade não é legal.

Naquela época, de 1969 a 1972, tivemos poucos caminhos. E foi uma época que produziu os ‘arrependidos’, uma das coisas mais graves feitas pela ditadura, que foi obrigar algumas pessoas a irem à TV e se declararem arrependidas. Isso não se perdoa.’’

 

SATIAGRAHA
Roberto Almeida

PF liga contratos publicitários da BrT a esquema do mensalão

‘A Polícia Federal está convencida de que as agências de publicidade DNA e SMP&B, de Marcos Valério, firmaram contratos sem concorrência no valor de R$ 50 milhões com a Brasil Telecom, e a verba foi desviada para alimentar o esquema do mensalão. O ex-presidente da BrT, Humberto Braz – condenado com o banqueiro Daniel Dantas por corrupção ativa – intermediou o negócio. A companhia, à época, estava sob comando do Opportunity.

Documentos apreendidos pela Operação Satiagraha que estão sendo periciados por técnicos da PF revelam que tanto DNA como SMP&B ‘conquistaram’ a conta de R$ 25 milhões ao ano, mais R$ 187,5 mil mensais, da Brasil Telecom sob a única justificativa de ‘proporcionar uma opção de qualidade e custo’.

De acordo com depoimentos colhidos pelos federais, o material publicitário produzido pelas agências de Valério não foi entregue ou tinha baixa qualidade, o que não justificava os valores contratuais.

A relação entre Braz e Valério, considerada suspeita pela PF, é esmiuçada pelos agentes, que cruzaram as informações dos contratos e de outros documentos apreendidos, como a agenda de compromissos do ex-presidente da companhia.

O resultado mostra que Braz se reuniu com Valério ou funcionários das agências pelo menos seis vezes entre abril e outubro de 2004. Naquele período, a conta publicitária da Brasil Telecom ainda era de outra agência, a Toró Propaganda.

Apenas seis meses depois, em abril de 2005, a companhia dispensou a Toró e assinou com DNA e SMP&B. Os contratos foram firmados pela então presidente da companhia, Carla Cico, e por Luciano José Porto Fernandes, amigo de Humberto Braz, indicado por ele para o cargo de diretor de materiais e serviços. A celebração não contou com a anuência da diretoria de marketing da BrT.

Em depoimento ao delegado federal Ricardo Saadi, que prossegue com as investigações da Satiagraha, Fernandes disse que foi contratado em julho de 2004, mas ficou em ‘stand by’ até janeiro de 2005.

Nesse período, recebeu o que ele considera um altíssimo salário para não fazer nada. Assim que efetivamente passou a trabalhar, Fernandes participou da assinatura dos contratos com as agências, os quais ele considerou ‘fora da rotina da companhia’ porque ‘não passaram por procedimento licitatório’.

Valério está preso na penitenciária de Tremembé (SP) acusado em processo sobre corrupção ativa – teria participado de esquema de suborno de delegados federais para abertura de inquérito contra fiscais da Fazenda, conforme apurou a PF durante a Operação Avalanche.

Braz e Dantas foram condenados na terça-feira a 7 anos e 10 anos de prisão, respectivamente, além de pagamento de multa pelo juiz Fausto De Sanctis, da 6ª Vara Federal. Eles recorrem em liberdade.

?REQUENTADO?

O Opportunity, que então geria a Brasil Telecom, não comentou a contratação das agências de Valério e indicou que a melhor pessoa a ser consultada seria o advogado de Braz, Renato de Moraes.

Moraes tratou o assunto como ‘requentado’. ‘A CPI avaliou a documentação, quase uma tonelada de papéis, e nenhum diretor ou o gesto foi envolvido no inquérito do mensalão’, ressaltou.

Sobre a contratação das agências de Valério por parte da BrT, Moraes sublinhou que ‘empresas privadas podem contratar prestadoras de serviço sem licitação’. A respeito da agenda de Braz e das reuniões com Valério, Moraes anotou que a relação entre os dois era ‘estritamente profissional’ e ‘a agenda reproduz exatamente a verdade’. ‘Isso é reflexo da falta de acusação séria dessa nova fase da Satiagraha. Você começa a resgatar assuntos porque geram polêmica’, disse.’

 

Fausto Macedo

Depoimento sugere que juíza foi alvo de grampo ilegal

‘O delegado Protógenes Queiroz, mentor da Satiagraha, depôs à Corregedoria da Polícia Federal e negou que tenha pedido autorização para interceptar ligações telefônicas da desembargadora federal Cecília Mello, do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF 3), e do criminalista Nélio Machado, defensor do banqueiro Daniel Dantas. A informação de Protógenes reforça suspeita da PF de que Cecília e mesmo a corte onde ela trabalha foram vítimas da ação clandestina de arapongas estranhos aos quadros da PF na Operação Satiagraha.

Protógenes prestou depoimento ao delegado Nilson Souza, que conduz sindicância administrativa para identificar o vazamento da operação. Ele afirmou que só fez contato com jornalistas após a deflagração da Satiagraha, em 8 de julho. A sindicância da Corregedoria da PF apura suposta falta funcional de Protógenes.’

 

CRISE
O Estado de S. Paulo

Crise coloca à venda jornal ‘Miami Herald’

‘A companhia de mídia americana McClatchy Co. estuda vender um de seus principais jornais, o Miami Herald, segundo informações divulgadas pelo New York Times. O Herald é um dos jornais de maior circulação entre os 30 títulos da McClatchy, com média diária de 210 mil exemplares. É também um dos de maior prestígio – já ganhou o Pulitzer, principal prêmio do jornalismo nos Estados Unidos, 19 vezes. Segundo o New York Times, no entanto, não está claro quem poderia se interessar pelo jornal, uma vez que esse mercado passa por uma retração no país. A McClatchy tem uma dívida de aproximadamente US$ 2 bilhões.’

 

TELES
Ethevaldo Siqueira

A incrível carga fiscal das telecomunicações

‘Se o leitor tem alguma esperança ou ilusão nas perspectivas da reforma tributária, em discussão no Congresso, sugiro que reflita sobre os fatos que relato a seguir. O Fisco brasileiro retira anualmente quase R$ 40 bilhões de nossos bolsos, sob o título de ICMS, PIS, Cofins e outros tributos incidentes apenas sobre serviços de telecomunicações. Sim, apenas sobre telecomunicações.

Além desses tributos pagos por todos nós, usuários, as empresas operadoras recolhem anualmente cerca de R$ 3,6 bilhões para três fundos setoriais, assim distribuídos: R$ 800 milhões para o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), R$ 300 milhões para o Fundo de Tecnologia de Telecomunicações (Funttel) e R$ 2,5 bilhões para o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (Fistel), embora só 20% desse total se destinem ao orçamento da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Em resumo: do total de R$ 3,5 bilhões arrecadados nesses fundos, o governo federal só aplica efetivamente R$ 600 milhões no setor, via Anatel. Os R$ 3 bilhões restantes são puramente confiscados.

É provável que a grande maioria dos brasileiros minimamente escolarizados reconheça a importância das telecomunicações no processo de modernização da economia do País, bem como no aumento da produtividade, na elevação da qualidade de vida, na geração de negócios, na circulação de notícias e na inclusão digital.

Com uma visão bem diferente do papel das telecomunicações, os governos oneram seus serviços com a mesma carga fiscal aplicada a bebidas alcoólicas, perfumes, carros importados ou iates de luxo. Verifique em sua conta telefônica, leitor: nela, os tributos equivalem a mais de 40% do valor dos serviços. Em resumo, o Brasil é o país campeão mundial na tributação das telecomunicações, com o dobro do porcentual do segundo colocado.

Para o Estado brasileiro, as telecomunicações não passam de uma fonte de arrecadação sem limites, que, depois de sua privatização, em 1998, recolheram mais de R$ 250 bilhões de impostos e taxas. Além desses recursos, as empresas operadoras recolheram ao Tesouro Nacional o total de R$ 15 bilhões em nome de três fundos setoriais, desde 2001. O Fust acumula hoje o montante de R$ 6 bilhões desde a sua criação, sem ter tido uma única aplicação na universalização dos serviços. O Funttel não investe nem um terço de seu total em pesquisa tecnológica. A cada ano, o Tesouro embolsa 80% do Fistel – ou quatro orçamentos anuais da Anatel.

DESINFORMADOS

Fiquei desencantado depois de conversa informal com uma dúzia de deputados e senadores, ao perceber que a maioria deles não tinha a menor idéia do problema tributário das telecomunicações. Pior: muitos deles ignoram até que pagam elevados impostos em suas contas telefônicas. Que esperar, então, de um Congresso tão desinformado?

Mais grave é a inconsciência do cidadão brasileiro, que, quase sempre, ignora seus direitos, como contribuinte, porque não percebe, de forma clara, o quanto paga de impostos, seja na conta telefônica ou no preço da gasolina, do transporte, do leite ou do remédio. Seria hora de publicar, com destaque, nas notas fiscais de todos os produtos ou nas contas de serviços a parcela de impostos ali embutidos?

MALÍCIA

O problema começa com o método malicioso e desonesto chamado de cálculo ‘por dentro’ – de aplicação das alíquotas no cálculo de impostos, criado exatamente para esconder o tributo. O golpe é o seguinte, leitor.

Tomemos o exemplo de uma conta telefônica imaginária em que o valor dos serviços tenha sido de R$ 75 e o único tributo a ser cobrado seja o ICMS, com a alíquota de 25%. Num critério honesto, matemático, ‘por fora’, o consumidor pagaria os R$ 75 acrescidos de R$ 18,75 (25% de R$ 75), perfazendo o total de R$ 93,75.

Mas o Fisco calcula diferente, caro leitor. No critério ‘por dentro’, o valor do tributo será de 25% sobre o total da conta, incluindo o próprio imposto. Veja o golpe: o valor total da conta vai para R$ 100 e o valor do ICMS será, então, de 25% sobre R$ 100, ou seja, R$ 25. Pelo critério ‘por dentro’ pagaremos, assim, R$ 6,25 a mais. E, em lugar de 25% sobre o valor dos serviços, estaremos pagando 33,3% (R$ 25 sobre serviços de R$ 75).

Tudo indica que a nova reforma tributária manterá esse método de cálculo que contraria a própria matemática.

A VACA LEITEIRA

Nos 10 anos que decorreram após da privatização das telecomunicações, a base instalada de telefones no Brasil saltou de 24,5 milhões para mais de 180 milhões, entre fixos e móveis. Com esse crescimento explosivo, o volume arrecadado de ICMS sobre as telecomunicações cresceu, no mínimo, 600% em relação a 1998. O mais justo seria baixar as alíquotas do ICMS – sem nenhum prejuízo para Estados e municípios -, estimulando a inclusão digital, tão decantada por todos os governos.

Mas as coisas não vão ficar assim. Vão piorar muito, se for aprovado o substitutivo da reforma fiscal do deputado Sandro Mabel (PR-GO). Aí, então, um ministro vai gritar: ‘As tarifas telefônicas estão muito elevadas.’’

 

LIVROS
Ronaldo Correia de Brito

Vidas secas

‘Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas, Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:

– Acredita na permanência de sua obra?

E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e sempre brigou com as palavras, convencido de que essa era uma briga essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:

– Não vale nada; a rigor até já desapareceu…

Nos 70 anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos romances de Graciliano, escrito sob o signo do silêncio como se tudo nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa cartilha de concisão. Permanência atestada não apenas na escritura do livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e que se beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de romance, como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo próprio, a linguagem trabalhada até a última possibilidade de apuro, mas sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à impostura do convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao naturalismo. Moderno, mas não ?modernista?, na conotação que ganhou o termo com os modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Quando Vidas Secas – que acaba de ganhar nova edição pela Record, com fotos de Evandro Teixeira (Record, 208 págs., R$ 99) – foi publicado em 1938, a técnica do escritor chegara ao máximo de pessoal, em quatro romances diferentes nos temas e na construção, mas que mantinham o mesmo estilo, ‘a mesma atitude filosófica perante o Homem, matéria-prima da ficção’, como observou Wilson Martins. De romance para romance – Caetés/1933; São Bernardo/1934; Angústia/1938 -, Graciliano se desfaz gradualmente da carga de subjetivismo e angústia que o caracterizam, até que em Vidas Secas, que mais parece um livro de crônicas ou contos, alcança um alto grau de serenidade no estudo psicológico dos personagens: de Fabiano, de Sinhá Vitória, dos meninos, de Baleia e do soldado amarelo. A paisagem sertaneja, quando descrita, é apenas para realçá-los. Ela só agrava o pessimismo do autor em relação ao mundo; acentua o silêncio das pessoas, que desaprenderam os modos de falar, único jeito de se livrarem de suas memórias. Os entraves de Fabiano, questionando a necessidade da fala, recriminando-se quando comete excessos, nada mais são que os questionamentos de Graciliano em torno da própria escrita, obcecado pela depuração, convencido de que o escritor luta menos com idéias do que com palavras. E que apenas por meio delas pode livrar-se do sofrimento da memória, mergulhando no esquecimento ao escrever.

Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do País com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo o que ficara para trás, condenando por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a desconcertante franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se era um ?modernista?: ‘Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão.’ Se o regionalismo criado por Gilberto Freyre em reação aos ?modernistas? ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que nunca se desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.

Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de vocábulos próprios do Nordeste – que não poderiam ser outros, pois falsificariam Vidas Secas -, para datar o romance ou classificá-lo como regionalista, num sentido que diminui sua grandeza. Desde o manifesto escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de toda espécie de tradicionalismo e de toda forma de regionalismo, confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que escrevem fora da latitude sudeste, principalmente nordestinos, desde que refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança. Mesmo morando no Rio de Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade grande, e o contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado.

Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma, convencido de que não há talento que resista à ignorância da língua, deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um difícil exercício de construção em meio ao silêncio. Preocupou-se com o estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar comparações, pois acredito que os movimentos literários surgem como sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os aproxima. Essa analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda no seu livro Sob o Signo do Silêncio. Ele escreve: ‘Não cabe inquirir influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio; Graciliano é já maduro quando conhece Camus.’ No entanto, ambos captam as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e antecipam mudanças no espírito literário.

Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70 anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase estereótipo referir a exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às frases, a escolha certa das palavras, a eliminação de tudo o que não é essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em que é possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se literatura.

Ronaldo Correia de Brito, médico e escritor, é autor de Faca, Galiléia e Livro dos Homens’

 

Vilma Arêas

Herança ‘escrita em brasileiro’

‘‘Bagaceira’ significa lugar onde se põe o bagaço da cana, depois de triturada. Trata-se de atividade do ‘brejo’ ou ‘agreste’, região fértil do Nordeste, ligada à agricultura. A relação senhor/cabras do eito (trabalhadores braçais) é semelhante à escravidão, que naturaliza a exploração, arrastando a decadência moral. A tal espaço se opõe o ‘sertão’, região da pecuária longe da costa e atingida pela seca. A partir principalmente do começo do século passado, o sertão passou a ser lido literariamente como o espaço nacional em estado puro, onde os sentimentos de honra e liberdade são preservados.

Adiantando e resumindo muito, essa oposição sustenta A Bagaceira, de José Américo de Almeida, cujo personagem central, conforme afirmou Rachel de Queiroz com acerto, é o meio físico e social do brejo, essa estranha terra de Canaã onde se passa fome, dominada pelas leis brutais do latifúndio corruptor da honra sertaneja.

É por esse viés que o autor abala os fundamentos folhetinescos do enredo, a que não faltam nem o sinistro, nem triângulos amorosos incluindo pais e filhos, envoltos em semelhanças que criam equívocos e peripécias. Desmistificado o idílio, o estupro de Soledade, símbolo do sertão conspurcado pelo brejo, se equipara ao açoitamento e prisão de Xinane, por ter roubado do que plantara, após ser arbitrariamente expulso da terra. Em ambos os casos, o agente é Dagoberto, o ‘homem-máquina’ dono do engenho, que confessa logo no primeiro capítulo lucrar com as secas.

Esta 43º edição nos 80 anos de A Bagaceira (José Olympio, 294 págs., R$ 34), com ‘Introdução’ de Cavalcanti Proença, ilustrações de Poty e várias informações bibliográficas úteis, testemunha o interesse do livro. A verdade é que José Américo de Almeida realiza até hoje o prodígio de fundamentar tanto as críticas quanto os louvores que lhe foram feitos, desde seu surgimento em 1928. Neste mesmo ano, Macunaíma, de Mário de Andrade, Laranja da China, de Alcântara Machado, e Martim Cererê, de Cassiano Ricardo foram publicados. Apesar de diferenças profundas, os livros atestam que o período apostava na renovação literária vinda de 1922. No Nordeste, a nova orientação datava do Manifesto Regionalista de 1926.

No número 6 da Revista de Antropofagia (1928), José Américo faz uma profissão de fé. Afirma a importância de pensar no Brasil com objetividade e discernimento, de ‘escrever em brasileiro’ e abandonar ‘o paradoxo, a ironia e todas as deformações de sentido’. Confessa em seguida que a aplicação do método é ‘dificílima’. Sem dúvida, e ele é a melhor prova. Assim como é difícil estabelecer uma filiação para o livro, pois A Bagaceira se situa no limite cruzado de estilos opostos: a verbosidade do passado – pensemos em Os Sertões – versus a literatura nova da redescoberta do Brasil; a marca erudita com resquícios clássicos unindo-se ao vocabulário regional; e o cientificismo misturando sermão com naturalismo, além de críticas à fragilidade do intelectual. (Um personagem explica a própria incoerência como ‘contrapeso da hereditariedade promíscua.’)

Se passamos ao enredo, ele também exige do leitor discernimento no cipoal de equívocos e reflexos verdadeiros e enganosos, que rebatem simbolicamente numa paisagem pintada com o capricho de um colorista e a insolência moderna: ‘A noite nua sem o maillot das nuvens…’ ou ‘zoava no mato um jazz-band de chocalhos’.

No prefácio (Antes Que me Falem) José Américo toca em algumas dessas questões: ‘Há muitas formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira’; ‘Valem as reticências e as intenções’, frase que nos convida a ‘ver bem’, isto é, a ‘ver o que os outros não vêem’. Afinal, quem se reconheceria ‘se se encontrasse em pessoa’?

Em entrevista ao Estado, citada por Ângela M. Bezerra de Castro (Re-Leitura de A Bagaceira), o próprio José Américo se explica: ‘Quis fazer uma obra diferente, daí a estrutura do livro que pode parecer arbitrária, tudo salteado, tudo cinematográfico, pois eu não me preocupava com a ação, ou melhor, com o enredo clássico.’

Segundo penso, Antonio Candido (Formação da Literatura Brasileira) compreendeu melhor que ninguém as dificuldades de nosso romance regionalista, se comparado com o indianista. Este contava com modelos anteriores, e a diversidade das culturas em confronto abria espaço à fantasia; no romance regionalista não havia tal modelo e o dado real, próximo do escritor, cortava rente o elemento de arbitrariedade necessário à ficção. O problema não era o dado real, fácil de perceber, mas a ‘situação narrativa’. Daí a excessiva adesão a motivações ideológicas e os tateios de execução que observamos no gênero e em A Bagaceira, pois José Américo errou a mão em muitos momentos. Mas acertou quando transformou tais ‘tateios’ em pregnância de sentido e em jogo de reticências, espalhando zonas opacas na transparência solar do agreste.

Certamente essa construção antitética e esse apagamento de rastros foi herança preciosa para os que vieram depois.

Vilma Arêas, professora de literatura brasileira da Unicamp, é autora de Clarice Lispector – Com a Ponta dos Dedos, Na Tapera de Santa Cruz, Trouxa Frouxa, entre outros’

 

REVISTA
Francisco Quinteiro Pires

Um não ao homem que vegeta

‘O exemplo atrai mais do que a ideologia. Essa é a constatação de Massimo Borghesi em O Mundo Após A Crise das Utopias, palestra pronunciada no Instituo Internacional de Ciências Sociais, em outubro, e publicada pela Dicta&Contradicta (edição 2, 218 págs., R$ 22,50). Professor de Filosofia da Universidade de Perugia, Borghesi analisa o que resta de dois anos fundamentais – 1968 e 1989.

Embora Borghesi fale da necessidade da volta da religião a um mundo como o atual, onde se realiza ‘o cinismo em massa’, suas reflexões sobre o resgate dos símbolos a uma vida esvaziada do seu sentido sagrado se perdem num beco escuro. É sabido que, nas condições vigentes, a vida que se leva é a que vegeta e não a que se afirma.

Borghesi diz que os eventos europeus de 68 são reflexo do que ocorria nos anos 60 nos EUA, como a oposição à guerra do Vietnã. Ao suceder o cristianismo, o marxismo originaria a rebeldia – apostava-se na violência contra os poderes instituídos e a solidariedade cristã.

A culpa pelo desencanto atual acharia explicação no uso vão da força por quem acreditou na utopia da liberdade, segundo Borghesi. A queda do Muro de Berlim, depois de reveladas as atrocidades do stalinismo, daria musculatura à ideologia do fim da história. Não adianta evocar Jürgen Habermas, como fez Borghesi, para dizer que ‘o pensamento laico democrático’ deve considerar ‘a dimensão religiosa’ para reconstituir a solidariedade perdida, elemento fundamental ao exercício da democracia. ‘O cristianismo corresponde às exigências do tempo sem, no entanto, conformar-se a ele.’ Será?

No fim do século 19, Friedrich Nietzsche afirmava que o homem é capaz de ser dono de si mesmo. O desejo de estabilidade teria uma face anti-humana. Não era mais preciso algo maior como Deus. O valor simbólico precisa, de fato, ser recuperado. Mas não para manter engessados os valores de uma civilização burguesa e cristã que tenta inutilmente conter as contradições humanas. O exemplo pertence ao futuro criado pelo homem que se liberta.’

 

 

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