POLÍTICA NA REDE
O Estado de S. Paulo
‘Errei ao dizer que era irrevogável’, diz Mercadante na web
‘O senador Aloizio Mercadante (SP) admitiu na noite de ontem ter cometido um equívoco ao afirmar na quinta-feira que sua renúncia à liderança do PT não teria volta.. ‘Errei ao dizer que anunciaria uma renúncia irrevogável’, disse, no Twitter, na internet. Mercadante pediu aos leitores que vissem seu discurso de sexta-feira para que ‘conhecessem as razões mais profundas’ que geraram a sequência de ações contraditórias.’
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Roberto Almeida
Livre expressão no País é tema de reuniões na OEA
‘O Brasil está entre os quatro países das Américas que mais requisitam audiências sobre problemas com liberdade de expressão na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, braço da Organização dos Estados Americanos (OEA). Equipara-se a México, Venezuela e Colômbia na necessidade de esclarecer em âmbito internacional seus casos de censura, como a que atinge o Estado desde o dia 31 de julho.
Segundo a OEA, profissionais brasileiros de comunicação têm solicitado reuniões anuais para apresentar suas demandas à comissão. O intuito, em cada encontro, é detalhar os casos e pressionar o governo a oferecer uma resposta imediata, por meio de representantes designados para analisar e, se possível, atender às solicitações.
Em seu último informe anual para liberdade de expressão, divulgado em maio, a OEA reservou grande espaço para comentar a situação brasileira, considerada preocupante. A avaliação final, meses antes da censura ao Estado, era de que o País já não assegurava a livre expressão e seu Judiciário ainda aplicava sanções incompatíveis com a Convenção Americana, principal documento da organização.
Retrato disso é o levantamento realizado pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) sobre casos de censura a meios de comunicação no Brasil desde julho de 2008 até o mês atual. São 12 situações em que juízes de primeira instância decidiram proibi-los de divulgar algum tipo de informação – em maioria, referentes à atuação de autoridades públicas -, em todas as regiões do País.
A relatora para liberdade de expressão da OEA, Catalina Botero Marino, alerta para o problema desde que assumiu o cargo, em outubro do ano passado. Ela já prometia um programa para instruir juízes brasileiros a analisar casos envolvendo imprensa, a fim de melhorar o nível de compreensão sobre os princípios da liberdade de expressão..
Em sua análise sobre a censura ao Estado, a relatora mostrou-se impressionada com a possibilidade de magistrados contrariarem a decisão do Supremo Tribunal Federal, que havia derrubado a Lei de Imprensa.
Para ela, o Brasil havia avançado significativamente no tema. ‘É incompreensível que enquanto os mais altos tribunais do Brasil tenham tomado decisões exemplares em matéria de liberdade de expressão, ainda exista a possibilidade de que alguns juízes locais possam usar seu poder para censurar e impedir a divulgação livre da informação’, anotou Catalina.
A comissão considera a violação da liberdade de expressão uma violação dos direitos humanos, o que pode levar o País à Corte Interamericana da OEA. Sanções podem ocorrer, caso decisões como a que censurou o Estado não forem revertidas.’
Fausto Macedo
‘Um jornal não pode ficar sob censura’
‘O jurista Walter Fanganiello Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, defendeu uma emenda constitucional que garanta à imprensa sob censura uma via rápida para chegar ao Supremo Tribunal Federal – evitando agressões à cláusula pétrea, no caso o artigo 5º da Constituição, que assegura o direito à liberdade de expressão.
Maierovitch, de 62 anos, condena com veemência o fato de o País se preocupar com foro privilegiado para autoridades e políticos sob investigação perante os tribunais superiores, ‘ao passo que não dispõe de instrumento eficaz contra ofensas e violações à democracia, como a censura imposta ao jornal O Estado de S. Paulo’.
‘Como já ocorre em todos os países civilizados, o Brasil tem de adotar um mecanismo de proteção de cláusula pétrea, um meio célere e eficaz de se chegar ao Supremo Tribunal Federal, porque estamos tratando, nesse caso da censura ao Estado, de um sustentáculo da democracia que é a liberdade de imprensa’, alerta o jurista.
Presidente do Instituto Giovanni Falcone e consultor internacional para questões de direito penal e combate à criminalidade organizada, Maierovitch exerceu a magistratura durante 30 anos. É com indignação, ele diz, que vê ‘um Brasil atrasado, de mentalidade cartorial’.
Por que ainda se impõe censura à imprensa?
O Brasil mantém e convive com essa excrescência chamada foro privilegiado, um benefício para determinadas autoridades sob suspeita.. É o caso de deputados e senadores que têm foro perante o STF em questões criminais. É curioso como a preocupação do Brasil diz respeito à pessoa. Cria-se o foro privilegiado para cargos, mas não há foro privilegiado quando ocorrem atentados a cláusulas pétreas da Constituição. Não existem mais pessoas acima de qualquer suspeita. Precisamos de um Estado atento. Essa a grande diferença do modelo europeu, em que uma violência contra a liberdade de expressão é imediatamente rechaçada.
Como os países avançados tratam a questão?
Na Itália, uma consequência da Operação Mãos Limpas foi a criação do Tribunal da Liberdade, que está em pleno funcionamento. Mas aqui, no Brasil, não existe uma solução de via rápida contra essa violência. É uma situação que reputo de extrema gravidade. Porque está em jogo a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o direito de todo cidadão brasileiro à informação. E não há um único remédio que possa ser aplicado diretamente ao Supremo. Esse é o grande problema. O Supremo é o guardião maior da Constituição, cabe à corte preservar a integridade de cláusulas pétreas. É inadmissível que não tenhamos um instrumento que garanta a via direta ao STF em episódios como esse que atinge o Estadão.
Vê saída?
Precisamos imediatamente de uma emenda à Constituição que crie ação judicial destinada a conter esse tipo de agressão a preceito relativo a direitos e garantias individuais. O artigo 5º é o pilar de sustentação do Estado democrático. A emenda não seria para qualquer coisa, mas para preservar o artigo 5º. Se acaba a liberdade de imprensa, acaba o Estado democrático.
Acredita que o Legislativo adote iniciativa dessa natureza?
Devemos aproveitar essa oportunidade. Se o Congresso não se ergue contra a censura, a emenda pode partir constitucionalmente de várias instituições, a OAB, sindicatos. Com uma forte pressão popular sairia a emenda. Os parlamentares estão preocupados com o bolso, com a família e com o nepotismo. Com censura, não. O Brasil é um país difícil, atrasado, com mentalidade cartorial, onde o foro privilegiado existe, mas não para proteger cláusula pétrea. O Brasil criou o mandado de segurança, é uma construção nossa. Precisamos agora construir um mecanismo para ser empregado toda vez que houver violação ao artigo 5º da Constituição..
Na prática, como funcionaria?
Qualquer medida contra uma violência extraordinária como a censura seria apresentada diretamente ao STF, que é o tribunal constitucional. Todas as causas constitucionais chegam ao Supremo. Por que não se cria, por emenda, uma ação direta ao STF, sem outros caminhos, sem outras veredas tortuosas? Não precisaria mais ficar pulando etapas, percorrendo morosamente instâncias judiciais, o que agrava o dano. É exatamente isso que está ocorrendo com relação ao Estado a partir de uma decisão de alguém que está manifestamente impedido de apreciar a causa. A suspeição (do desembargador Dácio Vieira) é de clareza solar. Estamos tratando da democracia, do pilar do Estado de direito, do pilar de apoio ao sistema democrático, contra o qual não se pode criar empecilhos. Um jornal não pode ficar sob censura. Qualquer estudante de direito fica envergonhado. Tem foro privilegiado, mas não tem proteção contra censura a um veículo de comunicação.
Quem é:
Walter Maierovitch
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de SP
Presidente do Instituto Giovanni Falcone
Consultor em direito penal e combate ao crime organizado’
TELEVISÃO
Ethevaldo Siqueira
Tecnologia muda nosso jeito de ver televisão
‘Para onde caminha a televisão? Qual é o futuro desse meio de comunicação, diante de tantas mudanças de paradigmas, do processo de convergência digital, da fusão crescente com a internet, da popularização lenta das imagens de alta definição, das perspectivas da TV tridimensional (TV3D), da chegada dos Blu-ray discs, das novas e revolucionárias tecnologias para monitores, tornando-os cada vez maiores e com melhor qualidade?
Sintetizo a seguir as respostas a essas perguntas, a partir de entrevista exclusiva feita com Romulo Pontual, um dos maiores especialistas do mundo na área de TV por assinatura, vice-presidente executivo e diretor de tecnologia da DirecTV, do Grupo Murdoch, engenheiro brasileiro radicado nos Estados Unidos há mais de 15 anos. Pontual esteve em São Paulo e falou no Congresso da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA 2009), de 11 a 13 de agosto.
Nos EUA, a DirecTV aposta na ubiquidade, ou seja, na possibilidade de recepção de conteúdos em qualquer lugar, via terminais e dispositivos portáteis, como celulares e laptops. Para Pontual, ‘é preciso levar o conteúdo Premium aonde o assinante estiver, mesmo que ele esteja longe do televisor’. Assim, assinantes que eventualmente tenham comprado o pacote de jogos da Liga de Futebol Americano (NFL, na sigla em inglês) poderão assistir aos jogos também em seus computadores, laptops ou celulares.
É quase certo que, a longo prazo, a TV paga tende a substituir a TV aberta, em especial nos países mais desenvolvidos. No Brasil, o fenômeno parece mais distante, pois a TV aberta ainda está presente em mais de 95% dos domicílios enquanto a TV paga está em apenas 10%.
BLU-RAY NÃO DECOLA
‘O Blu-ray não vai decolar nem, muito menos, reeditar o sucesso do DVD convencional, como produto de massa’, prevê Pontual. ‘Na melhor das hipóteses será incorporado aos home theaters de melhor padrão.’
Quase três anos depois de lançado, o Blu-ray ainda se mantém muito caro para a maioria dos consumidores de classe média, nos Estados Unidos. E não atrai a grande maioria dos consumidores, que preferem a TV de alta definição, seja por assinatura ou em TV aberta (broadcasting). A previsão do executivo é a de que, no futuro, o Blu-ray deverá ocupar apenas um nicho de mercado, na melhor das hipóteses.
HDTV E MONITORES
A tecnologia dos monitores de TV vem passando por transformações radicais e revolucionárias nos últimos anos, sendo a principal delas o televisor plano, de plasma ou de cristal líquido (LCD). ‘Com isso, explica Pontual, o consumidor tende a comprar o maior televisor que seu poder aquisitivo permitir. Se dispõe de R$ 3 mil, por exemplo, para comprar hoje um televisor de 42 polegadas, daqui a dois anos, com os mesmos R$ 3 mil, poderá comprar um de 50 polegadas. Além disso, a queda de preços é hoje bem mais acelerada do que no passado.’
O grande avanço atual de monitores e televisores decorre das novas tecnologias da imagem, como a de diodo emissor de luz (LED sigla de Light Emmitting Diode), que consome menos e tem maior contraste e luminosidade. Superior à TV de LED será a de LED orgânico (OLED, Organic Light Emmitting Diode).
3D NÃO SEDUZ
‘Pessoalmente, ainda não acredito no impacto nem no sucesso da televisão tridimensional (TV3D)’, afirma Pontual. ‘Falta maior volume de conteúdo para adultos, embora já surjam os primeiros filmes de boa qualidade com imagem em três dimensões. Diferente é o mercado infantil, com jogos em 3D que encantam a garotada, desenhos do tipo Godzilla, ou cartoons em que o garoto se sente parte do espetáculo. O uso de óculos especiais para assistir a filmes em TV3D não me parece ser um problema.’
Quanto à tecnologia disponível, não há dificuldade de transmissão nem de se oferecer conteúdo para TV paga em 3D hoje. Pontual afirma que, nas transmissões da DirecTV, certos tipos de programas são mais aceitos em 3D do que outros – especialmente os de ação, esporte ou desenhos de alto padrão.
WEB É COMPLEMENTO
As relações entre a TV e a internet se aprofundam a cada dia mais e ambos os setores podem fundir-se em diversos segmentos. A internet é um meio de comunicação com distribuição ponto a ponto. Seu custo de distribuição é maior do que os de broadcasting. ‘Vejo a internet como uma alternativa para mercados de nicho’, diz Pontual. E isso quando a tecnologia de banda larga permitir uma qualidade compatível com o nível de exigência do público.
É mais provável que a TV via internet venha a ser um complemento da televisão – tanto por assinatura quanto em broadcasting, como na recepção de eventos esportivos no celular. Esse é um dos filões oferecidos pela convergência – em especial a da mobilidade e da internet.
A interatividade avançada na TV parece ter poucas perspectivas de sucesso nos próximos 10 anos, na opinião de Pontual. Hoje, uma das formas incipientes de interatividade é a do acesso às grades de programação e às informações sobre conteúdo da própria TV por assinatura ou TV digital aberta.’
INTERNET
Ubiratan Brasil
Páginas de literatura digital
‘A literatura definitivamente já navega na era digital – depois do megassucesso O Código Da Vinci, o escritor americano Dan Brown anunciou que seu próximo romance, The Lost Symbol, será lançado no dia 15 de setembro tanto na versão impressa como na eletrônica, no formato e-book. Com isso, a primeira edição será de 5 milhões de exemplares. Já a canadense Margaret Atwood divertiu-se ao participar de uma experiência inusitada, no ano passado: autografar um livro a distância. Para isso, utilizou um novo aparelho, LongPen, no qual ela escreveu com uma caneta especial, stylus, que transmitiu por internet sua assinatura. Detalhe: Margaret estava em Toronto, no Canadá, e o livro autografado em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Uma brincadeira, é verdade, mas que pode funcionar como metáfora das inúmeras possibilidades oferecidas à literatura pelas novas tecnologias.
O futuro multimídia do mundo dos livros sacode o mercado, que já discute como ficará a página impressa. Afinal, só neste ano surgiram vídeos online dramatizados, histórias desenvolvidas no Twitter, sites que abrigam diversos escritores e suas tramas variadas, além de novos dispositivos de leitura como os da Amazon, Samsung, Fujitsu e também da Sony, que formou parceria com o Google para obras que estão em domínio público e não contam mais com a proteção dos direitos autorais.
A corrida tecnológica, aliás, começou com a indústria responsável pelos novos formatos de leitura, os já conhecidos e-books. Além daquelas empresas, a Netronix, de Taiwan, promete para o fim do ano modelos com telas sensíveis a toques. Também a holandesa Polymer Vision planeja um leitor eletrônico portátil com tela que pode ser enrolada. ‘São formas do século 20 que, num sentido prático, foram ativadas pelo computador e permitem ao leitor avançar mediante uma interface, em vez de virar as páginas ou ouvir alguém lendo’, comenta Nick Montfort, professor de mídia digital do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e autor de ficção interativa.
Com o surgimento dos equipamentos eletrônicos, que já provocam uma reconsideração sobre o tipo de experiência que os livros ainda poderão trazer, o mercado se mobiliza, inclusive no Brasil. ‘Todos, editores e autores, devemos descobrir nosso novo papel em meio aos avanços tecnológicos’, comenta Rosely Boschini, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). ‘E logo’, arremata. A pressa se justifica: as editoras nacionais comemoraram, há duas semanas, o anúncio de crescimento em 9,7% em 2008 (a arrecadação atingiu R$ 3,3 bilhões ante R$ 3,01 bilhões de 2007), segundo pesquisa anual sobre Produção e Venda do Setor Editorial Brasileiro, encomendada à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da USP. Mas os empresários daqui não foram afetados pela mesma dor crônica que atacou outros segmentos, provocada pela crise econômica global. ‘E a situação em 2010 pode não ser tão confortável’, alerta Leda Maria Paulani, coordenadora da pesquisa.
Por conta disso foi criada, na CBL, a Comissão do Livro Digital, com o objetivo de mapear o mercado, estabelecer convergências e antecipar problemas com direitos autorais e questões de toda a ordem com o governo – tributárias, por exemplo. Divididos em três grupos, os membros vêm se reunindo desde o início de agosto e, no dia 6 de outubro, deverão apresentar seus relatórios finais. ‘Queremos deixar o terreno preparado para os avanços digitais’, comenta Rosely Boschini.
Na verdade, o processo já é desenvolvido em território nacional. Chama-se Mix Leitor D o primeiro leitor eletrônico de livros com tecnologia de software totalmente brasileira e patente requerida no segmento de e-readers. Depois de um ano de pesquisas, o aparelho foi criado pela Mix Tecnologia, empresa do polo digital do Recife, e pela Carpe Diem Edições e Produções, editora de livros e produtora da Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto).
Segundo os fabricantes, os primeiros modelos deverão ser comercializados a partir de junho de 2010 e o destaque será uma ferramenta educacional que proporá perguntas sobre o assunto que estiver piscando na tela. Também será possível baixar livros disponíveis na rede, em repositórios abertos – como o site Domínio Público.
Com o desenvolvimento das ferramentas a todo vapor, resta a questão sobre a produção propriamente dita de literatura – ou, para usar um termo mais adequado a estes tempos, do ‘conteúdo’. Diversos escritores já se aventuram em formatos diferentes. Possivelmente, em breve teremos um novo Pen Club: o Pen Drive Club. No início do mês, por exemplo, a escritora e editora Heloisa Buarque de Holanda lançou o site Enter – Antologia Digital (www.oinstituto.org.br/enter), que reúne o trabalho textual e audiovisual de 37 escritores, como Marcelino Freire e João Paulo Cuenca. Lá, além da leitura, também é possível visualizar o autor em ação.
Criativa, uma comunidade de poetas americanos criou o chamado spoem, forma de construção poética a partir de restos de e-mails, o conhecido spam. O resultado lembra mensagens poéticas cifradas, como mostra o site www.spoem.com. Segundo seus seguidores, spoem pode ser considerado evolução do sistema de elaboração de poesia criado por William Burroughs, o cut up (cortar). ‘Trata-se de um exercício não de criatividade, mas de treino do olhar para algo inesperado’, diz o texto de abertura do site.
No Brasil, vingaram experiências como o SD8, em que o carioca Claudio Soares adaptou seu livro Santos-Dumont Número 8 (Digerati) para o Twitter. Não traz a versão integral, mas trechos que permitem uma personalização da leitura.
Nem todos, porém, aprovam inovações. O inglês Andrew Keen, por exemplo, virá para a Bienal do Livro do Rio, em setembro, para promover o livro O Culto do Amador (Jorge Zahar), no qual prega que a internet piora a qualidade da informação e ameaça a cultura.. Para ele, a distinção entre especialista e amador torna-se cada vez mais ambígua na rede mundial.
Já a CK-12 Foundation, organização sem fins lucrativos, busca estabelecer padrões para e-books usados por estudantes até 12 anos. Um de seus projetos, a ferramenta FlexBooks, cria livros didáticos eletrônicos que podem receber modificações tanto de professores como de alunos. O debate – e as oportunidades – estão abertos.’
***
Tecnologia pode redefinir ato de criar
‘O americano Nick Montfort cultivou a paixão pela literatura ao mesmo tempo em que descobria os mistérios da computação. O cruzamento de interesses tornou-o professor de mídia digital do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Lá, pesquisa ficção interativa, como o projeto Implementation, pequenos romances impressos em adesivos e colados em vários locais do planeta (aeroportos, bancos de praça, etc.). Para ele, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar já experimentavam literatura sequencial, como conta na seguinte entrevista, realizada por e-mail.
Como explicaria seu trabalho?
Meus principais interesses são computação e linguagem. Por isso, muitas vezes escrevo programas de computador que tratam da linguagem de uma maneira criativa em certos aspectos. Alguns desses programas são ficções interativas que simulam mundos, representados em um texto. Na realidade, estou concluindo um sistema de desenvolvimento de ficção interativa chamado Curveship. Em outros programas, tento explorar como um programa de computador pode ser simples e ainda gerar contos e poemas. Alguns se assemelham mais a documentos digitais – hipertextos, vídeos digitais e poemas que se libertaram da página impressa e podem ser encontrados em e-journals. Escrevo também textos ‘convencionais’ empregando muitas vezes formas inusitadas (por exemplo, o enigma literário ou a mensagem SMS de celular) e restrições e técnicas originárias da vanguarda que são matemáticas ou computacionais.
De que modo a narrativa e novas formas de comunicação que apresentam as possibilidades dos hiperlinks assemelham-se à ficção interativa?
Hipertexto e ficção interativa assemelham-se de certo modo. São formas do século 20 que, num sentido prático, foram ativadas pelo computador, e permitem ao leitor avançar mediante uma interface, em lugar de virar as páginas ou ouvir alguém lendo. Evidentemente, há consideráveis diferenças em termos formais e em seu conteúdo. O hipertexto conecta um texto numa nova superfície estranha, uma maravilhosa oportunidade para os escritores que estão interessados no jogo da linguagem nesse nível. A ficção interativa proporciona uma simulação subjacente, como uma simulação científica ou o videogame, e oferece muitas possibilidades para os que querem criar novos sistemas estranhos subjacentes. Mas ambos fazem parte do projeto da literatura eletrônica e do uso do poder do computador para tentar levar a literatura um passo adiante.
A propósito, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar já trabalharam com uma espécie de hipertexto.
Sou um grande fã do Borges fantástico e do matemático (que descreveu um hipertexto no conto O Jardim de Caminhos Que se Bifurcam) e de Cortázar (que criou um hipertexto em O Jogo da Amarelinha). Eu e Noah Wardrip-Fruin editamos The New Media Reader, um livro que cobre a história da nova mídia desde a 2ª Guerra Mundial até a World Wide Web, e decidimos incluir O Jardim de Caminhos Que se Bifurcam como nossa primeira escolha. Acho que esses autores são leituras essenciais para os que querem trabalhar hoje com literatura multissequencial.
É possível prever o futuro da literatura tradicional no meio de blogs, twitters, etc.?
Se blogs e twitters se mostrarem adequados por um tempo suficiente (acho que ao menos os blogs estão indo muito bem neste sentido), haverá literatura escrita nessas formas, nesses sistemas. Mas acredito que o livro tradicional também contribui para o trabalho que fazemos na mídia digital. O blog e a mensagem de 140 caracteres são formas perfeitamente viáveis, mas alguns tópicos, alguns conceitos, algumas experiências só podem ser tratadas no formato de um romance ou do poema com a extensão de um livro. A literatura digital deveria despertar a atenção contínua que um leitor de livro tem, e deveria poder elaborar e explorar na mesma profundidade de um livro.
O que seria o projeto Implementation? Quais são os aspectos que o determinam como projeto literário?
Implementation é um romance sobre a guerra psicológica, o imperialismo americano, sexo, terror, identidade e a ideia de lugar, e eu e o meu coautor, Scott Rettberg, o pensamos como tal desde o começo. Nós, assim como outros, colocamos textos, impressos em etiquetas como de correspondência, em superfícies expostas ao público no mundo inteiro. Ele foi ‘publicado’ como uma arte em adesivo, mas decidimos colocar nas nossas etiquetas arte verbal, fragmentos de um romance. Queríamos que as pessoas se sentissem intrigadas e provocadas pela experiência da leitura, mesmo que vissem apenas um adesivo. Mas esperávamos que algumas pessoas encontrassem outras, na rua ou na internet, na qual agora temos mais de 1.600 fotos graças a muitos participantes anônimos. O que não incluímos foi um URL sobre os adesivos. Tínhamos a impressão de que isso os transformaria numa espécie de anúncio do nosso site na internet e não um texto literário.
A convergência de mídias é um destino inevitável?
Permita-me reformular a pergunta: acaso a poesia sonora e os livros de artistas ‘convergirão’ com outros tipos de mídia digital? Suponho que já temos condições de ouvir poemas sonoros e olhar online a documentação de livros de artistas. Mas as práticas de criação desses dois tipos diferentes de trabalho permanecerão distintas uma da outra e da prática da mídia digital, e os canais através dos quais experimentamos essas formas diferentes também permanecerão separados. Acho que a verdadeira ‘convergência’ deverá afetar mais provavelmente as práticas de criação da mídia de massa que já são extremamente industrializadas. Romancistas, pintores e músicos não ‘convergirão’ tão cedo, embora possam aceitar desafios e descobrir novas formas de praticar a própria arte.’
OS SERTÕES
O Estado de S. Paulo
Euclides da Cunha: um escritor nascido nas páginas do jornal
‘Este caderno resume o colóquio Euclides da Cunha 360º – a Obra e o Legado de Um Intérprete do Brasil, promovido, entre outras ações, pelo Estado, para marcar o centenário de morte do autor de Os Sertões. Euclides tinha em alta conta o seu vínculo com o jornal. Em uma de suas cartas, escreveu: ‘Nasci espiritualmente na Província de São Paulo (nome do Estado, fundado em 1875, durante a monarquia) e nunca me desliguei do seu destino.’ Jovem, Euclides colaborou com o jornal sob o pseudônimo de Proudhon. Mais tarde, preocupado com os rebeldes de Canudos, escreveu dois artigos intitulados de A Nossa Vendeia, em 1897. No mesmo ano, Julio Mesquita convidou-o para cobrir a guerra como correspondente. Os despachos que, nessa condição, enviou para o jornal estão na origem de sua obra-prima, lançada em 1902.
Desde então, nunca se parou de falar e escrever sobre Os Sertões. Mas claro que datas redondas mereceram menções especiais – inclusive também, naturalmente, no Estado. Assim, em 1952, no cinquentenário de publicação de Os Sertões, o jornal estampou em suas páginas um extenso artigo de seu então diretor, o jornalista e político Plínio Barreto, que inicia com as seguintes palavras: ‘Meio século faz que a gente letrada do Brasil foi surpreendida com o jorro de um vulcão nas principais livrarias. Esse vulcão irrompeu na forma de livro e esse livro, Os Sertões, até hoje ainda espanta as novas gerações pelo vigor da sua linguagem, pelo deslumbramento dos cenários que descreve e pela singularidade dos homens e dos quadros que apresenta.’
Em 22 de janeiro de 1966, por ocasião do centenário de nascimento do autor, o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo consagrou sua edição a Euclides. O caderno publicou, por exemplo, um alentado artigo de Dante Moreira Leite, intitulado A Psicologia Social de Os Sertões, discutindo, entre outras questões, o processo de autoconhecimento de Euclides – que estaria na base da escritura de sua obra máxima. Conhecimento de si e, acima de tudo, de um Brasil que ele ignorava ao partir para o Nordeste. A ‘conversão’ de Euclides, ao se deparar com uma situação que desconhecia, só poderia chamar a atenção do extraordinário psicólogo social que foi Dante Moreira Leite. A edição trazia ainda a transcrição de seis cartas de Euclides. Havia também um curioso artigo de Hugo Stenssoro relacionando o escritor de Os Sertões a Sarmiento (autor de Facundo), por meio de um paralelo entre o Conselheiro e o caudilho Facundo Quiroga, biografado pelo argentino Sarmiento.
Nos 70 anos de Os Sertões, o Suplemento Literário voltou a contemplar em suas páginas uma homenagem à obra, desta vez com um longo artigo de Walnice Nogueira Galvão, publicado em cinco semanas sucessivas, a partir de 21 de maio de 1972, que aproximava o livro de Euclides da Cunha de Os Jagunços, de Afonso Arinos. Sem compará-los quanto à qualidade e conquistas literárias, Walnice sublinhava pontos comuns às duas obras. A começar pelo fato de ambas terem nascido de solicitações de órgãos de imprensa. A de Euclides, para o Estado, na forma de reportagens; a de Afonso Arinos, um romance, publicado em série n’O Comércio de São Paulo.
Em 23 de maio de 1993 circulou um Caderno Cultura Especial, que não estava ligado a nenhuma efeméride, mas assinalava o fato de Roberto Ventura ter dado início à sua esperada biografia de Euclides da Cunha, que, todos julgavam, seria a definitiva. Em entrevista, Ventura dizia que encarava Euclides basicamente como um idealista da ciência e do progresso. ‘Ele não tem o ceticismo irônico de um Machado de Assis ou a visão cáustica de um Lima Barreto; foi um adepto do progresso finissecular’, comentou. Assim, Euclides teria aderido à República por considerá-la uma etapa inevitável para superação do atraso representado pela Monarquia. Infelizmente, Roberto Ventura não pôde concluir seu trabalho – morreu num acidente automobilístico em agosto de 2002. No entanto, o material que deixou foi publicado no ano seguinte sob o título de Euclides da Cunha – Esboço Biográfico (Companhia das Letras).
Naquela mesma edição, Gilles Lapouge comentava a edição francesa de Os Sertões, batizado na França como Hautes Terres. A tradução fora feita por Antoine Seel e pelo brasileiro Jorge Coli. O texto de Lapouge, reproduzido pelo Estado, saiu originalmente como resenha no cotidiano francês Le Monde. Escreveu Lapouge, em seu estilo muito particular: ‘O livro é belo como o olhar cego de um vidente.’
Em 21 de setembro de 1997, o Estado assinalou que exatamente um século antes publicava despacho do seu correspondente de guerra, que chegara à região de Canudos. O artigo vinha da localidade de Tanquinho e começava desta forma: ‘São dez horas da noite. Traço rapidamente estas notas sob a ramagem opulenta de um joazeiro, enquanto, em torno, todo o acampamento dorme.’ O texto, histórico, foi o primeiro dos 25 escritos para o jornal e que serviram de base para compor Os Sertões. Os quatro últimos saíram outra vez no jornal exatamente quando completavam um século: nos dias 21, 22, 26 e 27 de setembro de 1997.
O Caderno 2 de 5 de outubro de 1997 marcou os 100 anos da derrota de Canudos, quando caíram os quatro últimos defensores do arraial, cercados por milhares de soldados. Em seu texto, Carlos Soulié do Amaral afirmava que dois homens deram impulso à carreira do grande narrador dessa tragédia: Julio Mesquita ‘fazendo-o repórter e incentivando-o a escrever Os Sertões; e o Barão do Rio Branco, apoiando sua candidatura à Academia Brasileira de Letras e encarregando-o de uma expedição à cabeceira do Rio Purus, no Acre’. Em artigo na mesma edição, o historiador José Carlos Sebe Bom Meihy falava da insuficiência de estudos sobre Canudos, em especial sobre a religiosidade do Conselheiro: ‘Sem entendimento da espiritualidade assumida pelos conselheiristas estaremos repetindo a tradição presentificadora e externa àquela comunidade.’
Em 1º/12/2002, o caderno Cultura publicou uma edição comemorativa dos 100 anos de lançamento de Os Sertões. Vários articulistas escreveram sobre a obra e outros foram entrevistados, como foi o caso de Walnice Nogueira Galvão, já então consagrada como a maior especialista em Euclides da Cunha. Para aquele suplemento porém o jornal não convocou apenas pesquisadores e exegetas euclidianos: autores de ficção foram estimulados a escrever a respeito da influência do livro sobre suas próprias obras. João Ubaldo Ribeiro, Milton Hatoum, Antônio Torres, Deonísio da Silva, Luiz Antonio de Assis Brasil e Rachel de Queiroz responderam a cinco perguntas propostas pelo jornal: quando haviam entrado em contato com o livro, em que medida sentiam-se influenciados por ele, se achavam que Os Sertões ajuda ainda a pensar o País, a quem recomendariam a leitura da obra e se tinham algum trecho preferido dela.
Algumas opiniões chamavam a atenção: o trecho preferido de João Ubaldo é a abertura, que muitos consideram árida, ‘por causa da imponente descrição da terra’. Antônio Torres comentou que, ao contrário de Ubaldo, quando leu pela primeira vez o livro achou chata a primeira parte do livro, A Terra. Pulou para a segunda, O Homem: ‘Aí, foi um deslumbramento.’ Rachel de Queiroz, então cronista do Estado e autora de O Quinze, livro emblemático sobre a seca, preferiu dar um depoimento em lugar de responder às perguntas propostas pelo Cultura. Nele, enfatizava que ‘Os Sertões foi o primeiro livro que trouxe à consciência do País uma imagem do interior do Nordeste’. Não bastassem todas as suas contribuições socioculturais, como o colóquio Euclides da Cunha 360º ratificou, a obra euclidiana também abriu caminhos para a literatura regionalista, que explodiria nos anos 1930.
Cronologia
1866
Nasce em Cantagalo (RJ), no dia 20 de janeiro, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, filho de Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha e Eudóxia Moreira da Cunha. Perde a mãe aos 3 anos de idade
1877-1878
Estuda no Colégio Bahia, em Salvador
1879
Volta para o Rio
1885
Cursa a Escola Politécnica do Rio de Janeiro
1886
Assenta praça na Escola Militar, na Praia Vermelha
1888
Republicano, atira o sabre ao chão durante a visita do ministro da Guerra à Escola Militar. É preso e transferido para a Fortaleza de Santa Cruz, onde aguarda Conselho de Guerra. É perdoado por d. Pedro II. Em 22 de dezembro, dá início à sua colaboração no jornal A Província de São Paulo, escrevendo o artigo A Pátria e a Dinastia
1889
Depois de proclamada a República, é reintegrado à Escola Militar
1890
Casa-se com Ana Emilia Ribeiro
1892
Conclui o curso na Escola Superior de Guerra
1896
Desencanta-se com a República e abandona a carreira militar. É efetivado na Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo como engenheiro
1897
Preocupado com a revolta de Canudos, escreve dois artigos para o Estado de S. Paulo intitulados A Nossa Vendeia. Julio Mesquita convida-o para cobrir a Guerra de Canudos como correspondente do jornal. Segue para a Bahia no dia 3 de agosto, a bordo do vapor Espírito Santo. Assiste à carnificina das batalhas. Em 26 de outubro, publica no Estado o último dos seus despachos da série Diário de Uma Expedição
1898
Muda-se para São José do Rio Pardo (SP), onde supervisiona a reconstrução de uma ponte e redige, nos três anos seguintes, sua obra Os Sertões
1902
Publica o livro pela Editora Laemmert, do Rio, com tiragem de 1200 exemplares. Os Sertões chega às livrarias em 2 de dezembro; no dia seguinte, ganha resenha favorável no jornal carioca Correio da Manhã, assinada pelo crítico José Veríssimo
1903
Eleito para a Academia Brasileira de Letras
1904
É nomeado, pelo barão do Rio Branco, chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Nessa condição, viaja para a Amazônia em dezembro e lá permanece todo o ano seguinte, regressando ao Rio apenas em janeiro de 1906
1907
Publica Contrastes e Confrontos
1909
Morre, no dia 15 de agosto, ao trocar tiros com Dilermando de Assis, amante de sua mulher
Estante
‘Obras Completas’ (Nova Aguilar), organização de Paulo Roberto Pereira.
Edição revista e ampliada. Lançamento previsto para setembro.
‘Poesia Reunida’ (Editora Unesp), organização de Francisco Foot Hardman e Leopoldo Bernucci.
Previsto para outubro.
‘OS sERTÕES’ (EDIOURO).
Ilustrada, nas livrarias.
‘Os Sertões – Edição Crítica’ (Ática), preparada por Walnice Galvão. Lançamento previsto para Setembro.’
***
O Brasil reconstruído a partir de seus contrastes e confrontos
‘Encontro debate produção euclidiana, reavalia teses polêmicas e reafirma o lugar central que ela ocupa na interpretação do País.
Está na primeira página de Os Sertões: diante da perda da ‘atualidade’ do seu tema original, a narrativa da campanha de Canudos , o autor, Euclides da Cunha, procurou dar ao livro ‘outra feição, tornando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu’ – postando-se, deste modo, ‘ante o olhar de futuros historiadores’.
O futuro não demorou a chegar para a obra máxima de Euclides , debatida e, simultaneamente, consagrada desde o seu lançamento, em 1902. Por conta dela, disse o crítico Sílvio Romero, Euclides da Cunha, tendo dormido obscuro, acordou célebre. Uma celebridade que seus trabalhos posteriores só viriam ratificar – apesar de, morto prematuramente, não haver conseguido escrever um segundo ‘livro vingador’, a partir de sua missão ao Alto Purus. Compreensível. Na verdade, o viajante Euclides tinha sempre o mesmo destino intelectual: o Brasil. Por isso, o passado, o presente e o futuro do País passam por ele.
Realizado no âmbito das ações do Grupo Estado promovidas ao longo de 2009 para homenagear o escritor no centenário de sua morte, o colóquio Euclides da Cunha 360° – A Obra e o Legado de Um Intérprete do Brasil reuniu no auditório do jornal, no último dia 14, um grupo de intelectuais e artistas para uma série de palestras em torno da produção euclidiana. O encontro, que teve uma plateia de cerca de 120 pessoas, foi dividido em três mesas-redondas.
Da primeira delas, intitulada O Ciclo dos Sertões e mediada pelo jornalista Rinaldo Gama, editor do caderno Cultura, participaram os professores Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima e Lilia Moritz Schwarcz. Walnice Galvão tratou da primeira e da terceira partes de Os Sertões, além de comentar a estrutura do livro. Costa Lima deteve-se na interpretação da leitura que Euclides fez do sociólogo polonês Ludwig Gumplowicz. Já Lilia Schwarcz discorreu a respeito da segunda parte de Os Sertões.
O Ciclo da Amazônia, mediado por Daniel Piza, editor executivo do Estado, teve como expositores a socióloga Nísia Trindade Lima, que abordou a viagem do escritor ao Alto Purus; o professor Francisco Foot Hardman, que falou sobre a poesia euclidiana, sobretudo a daquela fase; e o ficcionista e cronista do Caderno 2 Milton Hatoum, que mostrou a relação de Euclides da Cunha com o cenário amazônico.
O evento se encerrou com Os Ciclos de Euclides, mesa-redonda mediada pela jornalista Laura Greenhalgh, editora executiva do Estado, para a qual foram convidados os professores Leopoldo Bernucci, que analisou o culto ao autor de Os Sertões, e José Leonardo do Nascimento, que traçou um panorama da recepção da obra euclidiana, além de José Celso Martinez Corrêa, diretor, ator, dramaturgo e fundador do Teatro Oficina. Para Zé Celso, Os Sertões, que ele adaptou para o palco, ‘é como uma universidade, que forma o leitor’.
Na abertura do evento, o diretor de Conteúdo do Grupo Estado, Ricardo Gandour, lembrou que o jornal se encontrava, naquele mesmo dia, sob censura – uma medida judicial o impedia de se pronunciar sobre determinado assunto. ‘Isso é extremamente preocupante e, na nossa visão, um retrocesso que o País não pode correr o risco de ver acontecer’, disse Gandour.
Alguns dos participantes do encontro falaram de maneira mais informal; outros leram textos. Acompanhe a seguir os principais trechos das palestras.’
Nísia Trindade Lima
‘Repercussão de textos bateu até Os Sertões’
‘Após dois anos da publicação de Os Sertões, Euclides da Cunha foi designado chefe da Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus. Criada pelo barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, a comissão tinha como objetivo resolver dúvidas relativas às fronteiras entre o Brasil e o Peru, após a cessão do território do Acre pela Bolívia..
Antes da viagem, o escritor já havia publicado artigos sobre o problema da fronteira na Amazônia no Estado. No primeiro deles – Contra os Caucheiros -, defendeu a ideia de que era um equívoco enviar tropas para aquela região, pois caberia aos sertanejos que para lá migraram atraídos pela borracha a defesa do território. Argumento posteriormente utilizado em inúmeros textos, a imagem do sertanejo forte – garantidor da integridade do território – não esteve infensa a controvérsias. Foi o caso, por exemplo, da repercussão do discurso do deputado federal mineiro Carlos Peixoto, no contexto da 1ª Guerra Mundial, em que ele afirmava a possibilidade de recrutar os sertanejos para o esforço de guerra. Em resposta, o médico Miguel Pereira contrapôs a realidade de um Brasil vitimado por doenças, como a malária e a doença de Chagas – uma legião de doentes e imprestáveis -, resumindo sua tese na conhecida frase ‘o Brasil é um imenso hospital’.
No artigo Entre o Madeira e o Javari, Euclides retomou o tema, defendendo a necessidade de trabalho persistente do governo brasileiro na região com o objetivo de efetiva incorporação, o que demandaria a facilidade de comunicações e, sobretudo, o traçado do telégrafo, objetivo colocado em prática três anos depois com a criação da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, a célebre Comissão Rondon.
Há um interessante ponto de contato entre a elaboração de Os Sertões e a dos escritos amazônicos. A Guerra de Canudos foi objeto de artigos do autor antes de sua ida à localidade conflagrada do sertão baiano como correspondente de O Estado de São Paulo. De modo semelhante, Euclides da Cunha escreveu sobre a Amazônia sem conhecê-la, apoiando-se, entre outros, nos escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira, Alexander von Humboldt, William Chandless, Tavares Bastos, Alfred Wallace, Frederick Hartt e Walter Bates. Em ambos os casos, os textos elaborados após as viagens ganharam em complexidade e foram marcados pela ambivalência entre a crença no progresso e a denúncia de seus problemas e contradições.
A tensão entre ideias preconcebidas e a experiência da viagem é bastante acentuada no relato sobre a missão na Amazônia, mas não se pode ingenuamente afirmar um efeito imediato da observação in loco, pois havia muitas mediações. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, Euclides observou que portava uma visão altamente idealizada, mas ao ver o Rio Amazonas, sua reação foi absolutamente negativa. O rio foi percebido como um diminutivo do mar e não entendia como se poderia atribuir valorização positiva à natureza amazônica. Afirmou, porém, que, após ler o texto do cientista Huber do Museu do Pará (atual Goeldi), mudou radicalmente de opinião. Viu-se como que diante de uma nova página do Gênesis – tratava-se de um mundo em criação onde o homem teria chegado antes da hora. Passa, então, a construir todo um argumento sobre a tensão permanente entre homens e natureza.
Imagens euclidianas – tanto as presentes nos textos amazônicos como as mais conhecidas de Os Sertões – ecoam nas narrativas de outras viagens. Roquete Pinto, por exemplo, publicou em 1917 o livro Rondônia, relato de sua ida aos então chamados sertões no noroeste em 1912, como integrante da Comissão Rondon. Na descrição que faz do sistema de barracões, das condições de vida e de trabalho dos seringueiros são nítidas as referências da obra euclidiana. O seringueiro é apresentado como estrangeiro na própria terra, alusão à conhecida imagem literária cunhada por Euclides.
O mesmo ocorreu com as expedições científicas do Instituto Oswaldo Cruz durante a Primeira República, como evidenciam os relatórios elaborados pelos cientistas. É o caso da expedição de Oswaldo Cruz à região em que estava sendo construída a ferrovia Madeira-Mamoré. E também das viagens de Carlos Chagas à Amazônia, em 1913, e a de Arthur Neiva e Belisário Penna por extensa área percorrida pelos Rios São Francisco e Tocantins. Considero importante pensar Euclides da Cunha no contexto dessas viagens, verdadeiras missões republicanas, nas quais o conhecimento e a incorporação do território, base para a construção do Estado nacional, constituem-se em aspectos indissociáveis. Uma das faces dessas viagens era o que se propalava, então, como esforço de incorporar os sertões.
É este um dos sentidos em que se pode pensar a Amazônia como um outro sertão, pois o termo denotava os espaços geográficos mais diversos. A já citada Comissão Rondon, por exemplo, mencionava a área entre Mato Grosso e Amazonas como sertões do Noroeste; mesmo o oeste de São Paulo foi designado como sertão em fins do século 19 e início do século 20. Na verdade, sertão significava os espaços tidos como incivilizados, distantes do litoral e da autoridade do Estado.
Mas há outro sentido para esta ideia da Amazônia como um outro sertão e consiste no encontro do personagem principal do drama nacional escrito por Euclides: o sertanejo do Nordeste (região que ainda não era assim designada) que rumara para a região amazônica . É o que podemos ler nas belas páginas de Terra Sem História, sobretudo no capítulo Judas Ahsverus. Além de trabalhar para escravizar-se, esse personagem teria que lidar com uma natureza que o surpreendia e expulsava: ‘Diante do homem errante, a natureza é estável; e, aos olhos do homem sedentário, que planeie submetê-la à estabilidade das culturas, aparece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vezes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o.’
Muito do que falamos sobre o Brasil como nação tem um forte lastro nos textos de Euclides. Apesar de menos lembrados, os ensaios amazônicos reforçam a tese de uma formação histórica marcada por contrastes e potenciais antagonismos, e demonstram, assim como seu livro clássico, a força social que ideias podem alcançar.
a chamada literatura dos viajantes, cronistas coloniais e naturalistas românticos ao primeiro ficcionista, todos , e cada um a seu modo, tentaram representar o sublime da paisagem amazônica em seu desmensuramento real e maravilhoso, que guarda igualmente os segredos do deslumbramento e do horror.
Euclides da Cunha foi dos primeiros escritores latino-americanos modernos a encarar o desafio de descrever a, digamos entre aspas, ‘Amazônia’. Sua prosa amazônica inconclusa testemunha alguns dos dilemas daquela geração de literatos, e a Amazônia surgiu como essa fronteira, como esse desafio.
Entre dilemas aparentes e contraditórios está o da ausência de epopeia, pois ali se trata antes da vertigem do vazio. Como fazer a história, como narrar essa ‘miniatura trágica do caos’? Essa é uma imagem muito bonita e muito interessante que Euclides utiliza em vários momentos do seu relato amazônico.
O desenho do nacional vai adquirir contornos fantasmagóricos, contraditórios, por se tratar, antes de mais nada, de uma região internacional. No triplo sentido, tanto de abranger áreas pertencentes a vários Estados-nação, ser a ampla planície de povos indígenas exterminados e insepultos, ou em vias de extermínio, ou mesmo ainda não localizados naquele momento e por abrigar desde há muito e cada vez mais projetos econômicos predatórios. Estamos falando naquele momento do ciclo da borracha, no boom da borracha, na exploração do látex, e voltados significativamente para a exportação de matéria-prima para o Exterior.
Euclides então realizou essa viagem oficial. Ele estava em missão do Ministério de Relações Exteriores, já recém-contratado num cargo de confiança pelo ministro Rio Branco. E ele aceita com muito empenho a missão, que era contribuir para dirimir conflitos na fronteira com o Peru. Conflitos entre seringueiros, caucheiros e seringalistas que estavam levando para um impasse político-militar de crescente gravidade. Essa comissão é uma comissão mista brasileiro-peruana. Esse caráter de missão diplomática – Euclides estava ali como homem do governo, do Estado brasileiro – precisa ser assinalado. Euclides traçou as primeiras cartas geográficas importantes do Alto Purus, documentos que estão até hoje no Palácio do Itamaraty.
Mas vamos voltar para o plano menos conhecido, que é o lado poeta do escritor que Euclides nunca deixou de ser. Euclides foi um escritor, um literato e sobretudo um poeta. Sua poética se extravasa na prosa. Por isso, a revelação dessa poesia pode revelar aspectos da prosa.
Dessa viagem existem alguns cartões que ele mandou para amigos, o que nós chamamos de poesia postal. São raros os cartões que sobreviveram. Encontrá-los é quase uma pesquisa arqueológica.
Há um primeiro poema, uma quadrinha, que ele manda ainda de Fortaleza, numa parada do navio, para o amigo Rodrigo Otávio, poeta, escritor e grande interlocutor: ‘Minha jangada de vela/Que o vento vai levar/De dia, vento da terra,/De noite, vento do mar.’
O Ceará é um marco importante para Euclides. Em vários momentos em À Margem da História ele reporta a importância das grandes levas de migrantes que saíram do Ceará, a partir da seca terrível de 1877, rumo à Amazônia.
No dia 5 de fevereiro de 1905, de Manaus, Euclides remete um postal, com cena de um casebre à beira de um manguezal litorâneo de Pernambuco, há quem diga que destinado a Machado de Assis, embora isso não se tenha podido confirmar: ‘Nesta choupana de roça/ De aparência tão tristonha/ Mora, às vezes, uma moça/ Gentilíssima e risonha/ E o incauto viajante/ Quase sempre não descobre/A moradora galante/ De uma choupana tão pobre/ Que passa na sua lida/ Para a remota cidade/ Deixando, às vezes perdida/ Num ermo, a felicidade..’
Em seguida, um outro postal, muito bonito, já com ambiente amazônico, também remetido de Manaus, onde ele escreve: ‘Estas lagoas de esplendores/ Tão vivos à luz dos luares/ Emolduradas pelas flores/ Dos lírios e dos nenúfares/ Recordam-me, veja a afoiteza/ Da minha fantasia ao vê-las,/ Grandes espelhos para/ A toalete das estrelas.’
Vejam que o escritor, expedicionário, engenheiro, ex-militar, homem de ciência, nunca descartaria a condição de criador literário, de alguém que estava, de alguma maneira, divagando com as imagens que podia de alguma maneira, nos intervalos, nas raras folgas de seu trabalho de chefe de expedição, fazer e remeter. Essa sinuosidade, que lembra um pouco a sinuosidade impressionante do Rio Purus, que ele ajudou a mapear, de alguma maneira atesta a vertigem, a contradição, a incompletude, o fragmento, presentes sobretudo na fase final de sua obra.
Chegamos a um soneto, escrito por Euclides sobre uma fotografia da expedição, em Manaus, e de lá remetido a vários amigos. Ele ficaria estacionado na capital amazonense por vários meses, reclamando dos atrasos, da falta de embarcação, porque depois, de fato, iria pegar o Purus na vazante, na pior época.
‘Se acaso uma alma se fotografasse/ De modo que nos mesmos negativos/ A mesma luz pusesse em traços vivos/ O nosso coração e a nossa face.// E os nossos ideais, e os mais cativos/ De nossos sonhos…/ Se a emoção que nasce em nós/ Também nas chapas se gravasse/ Mesmo em ligeiros traços fugitivos.// Poeta! tu terias com certeza/ A mais completa e insólita surpresa/ Notando, deste grupo bem no meio,// Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente/ Destes sujeitos, é precisamente/ O mais triste, o mais pálido e o mais feio…’
Eu diria que, sobretudo no fim da vida, Euclides sonhava com uma linguagem que sintetizasse as verdades da ciência e da arte. Isso está documentado em várias de suas cartas, em vários de seus artigos e discursos. É uma espécie de obsessão dele. No século 20 era quase uma necessidade, um imperativo da razão, a ciência e arte buscarem uma espécie de linguagem de síntese. Evidentemente que Euclides, não tão modestamente, pretendia, com sua escrita e seu estilo, estar no rumo dessa síntese entre ciência e arte. Buscava isso tanto em seus relatórios técnicos, em sua prosa ensaística quanto nesses continuados exercícios de poesia.’
Walnice Nogueira Galvão
‘Em Canudos, a reviravolta e opinião’
‘Todos sabem que o arcabouço d’Os Sertões trata do confronto entre um movimento messiânico milenarista sertanejo e as Forças Armadas.
O esquema do livro, como também se sabe, é nitidamente determinista. São três partes: A Terra, O Homem e A Luta. Quando Euclides começa a escrever a primeira parte do livro, que, a meu ver, é a mais bela, ele vai fazer o quê? Vai começar pela constituição geológica do continente americano. Trata, então, do solo, e também da flora, da fauna, do clima, do fenômeno da seca, etc. Isso constitui o sumário da primeira parte.
Na segunda parte, que se chama O Homem, ele tratará do povoamento e da miscigenação como processo. Sobre essa segunda parte, quem vai se estender é a colega Lilia Schwarcz, especialista no assunto. Eu passo, então, em seguida a falar da Luta, que é subdividida em seis capítulos e tem o mesmo número de páginas que as duas anteriores somadas. Trata-se da parte maior do livro.
É bom não perder de vista o seguinte: que essa parte que se chama A Luta – e que deveria ser, em princípio, apenas a crônica da guerra – tem trunfos, tem ardis literários e, por isso, deflagra retroativamente as duas partes iniciais.
A Terra, entre as muitas coisas brilhantes que efetua, realiza a metaforização narrativa dos vegetais.
Conforme a analogia positiva, temos ali o elogio da resistência dos vegetais, suas virtudes morais e seu caráter de plantas sociais. Ou seja: trata-se de alegorias do sertanejo, de quem essas plantas são aliadas e protetoras, porque elas, além de apoiarem umas às outras, repelem o invasor.
Afora a analogia positiva, nós temos também o trabalho da analogia negativa, em que esses vegetais aparecem da seguinte maneira: o mandacaru, aquele cacto enorme, é chamado de espectro de árvore. Naqueles entrançados de espinhos, que existem no sertão, se retêm farrapos das fardas dos soldados que passaram por lá. Ainda mais: cabeça-de-frade, que é um cacto redondo, espinhento, que produz uma vez por ano uma única flor rubra, é comparado a um conjunto de cabeças decepadas – que só aparecerão na última parte do livro, na qual vamos saber da prática sistemática da degola dos prisioneiros.
Também nessa parte inicial se fala de Canudos pela primeira vez, quando Euclides diz que um soldado estava deitado à sombra de uma árvore, ‘descansando’, havia três meses, ou seja, ele estava morto e mumificado pela secura dos ares do sertão. É assim que o leitor tem contato com Canudos pela primeira vez no livro. Em seguida, isso é replicado pelo cavalo, igualmente mumificado, que, preso meio de pé numas pedras, mostra sua crina esvoaçante, de modo que também tem a aparência enganosa da vida.
Quanto à Luta, vocês sabem que foram necessárias quatro expedições para conseguir debelar a insurreição do Arraial. E o fim da guerra se deu no dia 5 de outubro de 1897. Antes que a luta terminasse, o que se divulgava era que se tratava de uma conspiração monarquista internacional, que tinha Canudos como foco e por objetivo restaurar o império. E o que aconteceu quando a guerra acabou? Quando a guerra acabou, o que surgiu foi a resistência admirável dos canudenses e um massacre de gente pobre, mal armada e mal alimentada.
É preciso lembrar que, quando a República foi instaurada no Brasil, houve uma série enorme de levantes disseminados pelo território nacional, algo normal quando ocorre uma mudança de regime violenta como essa. Mas a Guerra de Canudos foi o último desses movimentos. Quer dizer, tamanha repressão, tamanha convocação dos brios do Brasil inteiro acabaram fazendo com que a República saísse do conflito consolidada. Consolidada à custa do sangue dos canudenses, evidentemente, mas consolidada.
E o que Os Sertões expressa? Expressa exatamente uma reviravolta de opinião. Quando Euclides da Cunha foi para Canudos, como todo mundo no Brasil, ele pertencia àquela opinião unânime de que lá havia uma conspiração monarquista, que significava um retrocesso para o País. Mas quando chegou ao cenário da guerra, Euclides começou a ver que as coisas eram um pouco diferentes. Já se encontram no Diário de Uma Expedição os primeiros sinais de uma mudança, da reviravolta que iria se operar nele. Euclides da Cunha trazia da Escola Militar uma boa bagagem. Ele tinha estudado geologia, mineralogia, botânica, química, física, ótica, astronomia, geodésica, mecânica racional, as matemáticas, etc. Só que eram matérias de currículo; nada era muito aprofundado, como se pode notar lendo Os Sertões. Mas se percebe também que esses saberes adquiridos na Escola Militar afinam as vistas com que Euclides avalia Canudos e a guerra. Lembremos também que ele fez estudos novos para escrever o livro. Foi estudar a história de Portugal e do Brasil, especialmente a colonização e o povoamento; estudou noções de antropologia, de sociologia, de folclore, de psicologia social e daquilo que se chamava de ‘comportamento normal das multidões’’, porque os cientistas sociais andavam muito preocupados com a Revolução Francesa, que mobilizara massas revolucionárias nas ruas.
O que nós vamos ter, então, em relação ao conjunto dos saberes de Euclides? Ele mobiliza tudo isso. Vamos encontrar, misturadas nas páginas da obra, por exemplo, teorias sobre a origem do fenômeno endêmico das secas e interpretações psicocriminais da instabilidade nervosa dos mestiços. Ou então uma crítica às táticas do exército misturada com análises de preceitos religiosos e de heresias ao longo da história.
Com tudo isso, Os Sertões cumpriu sua missão: erigir um monumento literário à memória dos canudenses, imolados no altar da modernização trazida pela República que se abatera sobre eles.
Desde a primeira leitura de Os Sertões, eu lembro que me chamava a atenção, logo na nota introdutória, a passagem de uma frase: ‘Gumplowicz, maior do que Hobbes.’ Obviamente, eu não sabia quem era Gumplowicz – se alguém aqui souber, parabéns, porque eu não sabia até relativamente pouco tempo atrás. Numa das minhas leituras, já adulto, releitura, aliás, de Os Sertões, eu me deparei outra vez com a frase e disse: ‘Não é possível que a esta altura da vida não saiba ainda quem é Gumplowicz.’ Procurei nas enciclopédias acessíveis, desde logo a Britânica – nenhuma referência. Até encontrar informações sobre ele na Enciclopédia Italiana, enciclopédia fascista. Fascista, sim, mas que tem um pequeno verbete sobre Ludwig Gumplowicz. Eu lhes dou os dados muito rapidamente.
Gumplowicz era um polonês, nascido em 1838 na Cracóvia e foi professor numa pequena cidade da Áustria, Graz, onde morreu em 1909. No fim do século 19 e início do século 20, a Polônia pertencia ao Império Austro-Húngaro e a língua da elite, ou pelo menos do grupo docente e administrativo, era o alemão. Então, Gumplowicz tinha escrito nesse idioma um livro chamado A Luta das Raças. Euclides não lia em alemão; se já lia muito mal o inglês, imagine o alemão. Mas descobri que o livro teve uma tradução francesa e deve ter sido nessa língua que Euclides o leu.
É uma obra pequena, sem grandes dificuldades de leitura. Para minha surpresa, lendo o livro, eu me disse: ‘Não, este não pode ser o autor que Euclides cita!’ Por quê? Porque esse autor é todo o oposto do ‘darwinismo social’ que ele esboçava.
E o que Gumplowicz diz explicitamente? Em poucas palavras, depois de reconhecer os méritos de Darwin, de dizer no que se afasta do autor de A Origem das Espécies, ele vai admitir que as raças não tinham uma origem única, ou não tinham um tipo único, e sofriam variações de acordo com as condições do meio. No livro, Gumplowicz explica que não se podem testar as ditas leis universais nesse caso, porque estamos falando de um tempo de milênios de anos, em que não há um testemunho disso. Mas, acreditava, podemos bem imaginar que se tratasse de uma multiplicidade muito grande de grupos humanos – e que esses grupos guerreavam entre si. Aqueles que venciam cresciam em número, aumentavam, incorporando os vencidos. Então, o primeiro critério do que se entendia como raça era um critério de ordem social, ou seja: de, família, clã, tribo, grupo vencedor. Grupo ‘vencedor’, leia-se ‘raça vencedora’ – então, leia-se ‘raça mais forte’. Grupo ‘vencido’, leia-se ‘raça inferior’.
‘Raça’, portanto, é um critério – falando com os termos de hoje – antes sociocultural do que biológico. Gumplowicz acrescenta: ‘É verdade que a ideia de laço de sangue é um elemento mais forte, contudo, se trata de um elemento posterior.’ Ou seja, o laço de sangue, a base do que a gente entende como raça se estabelece depois que aqueles critérios socioculturais se verificam.
Na análise de Os Sertões interessava-me resolver esse enigma.. Acho muito estranho que, depois de um século de estudos euclidianos, eu não haja encontrado nenhum trabalho que se referisse ou que analisasse Gumplowicz. Talvez alguém possa me desmentir. Mas o fato é que, havendo referência ou não, a análise do debate da divergência da leitura de Euclides em relação ao que o polonês dizia, esse debate, que eu saiba, foi estabelecido apenas num livro que eu escrevi no fim do século passado, chamado Terra Ignota.
Outro ponto sobre o qual eu vou evitar me estender agora, por questão de tempo, é: como seria Os Sertões se Euclides tivesse lido Gumplowicz corretamente? A ideia básica do cristal de rocha, da essência da nacionalidade, da necessidade de passar um tempo para que nós superássemos a mestiçagem – que é, do ponto de vista da antropologia biológica, um crime, etc., etc. -, tudo isso cairia fora d’Os Sertões. Insisto: o que seria de Os Sertões se Euclides tivesse bem lido Gumplowicz? Mas essa é uma questão que eu deixo, seguindo o estilo das telenovelas, para um próximo capítulo.
s Sertões representa um exemplo extremo de obra em que criador e criatura pouco se distinguem. De um lado, não há mais como falar do episódio de Canudos sem mencionar o autor. De outro, eu diria que a memória é sempre traiçoeira: o escritor se mistura com Antônio Conselheiro, como bem mostrou Roberto Ventura.
Eu me deterei aqui na segunda parte de Os Sertões, O Homem. Ela me parece ser mais lamentada do que destacada. O ataque se dirige justamente ao suposto engano de Euclides da Cunha ao se apoiar na bibliografia herdada do darwinismo social, a qual condenava o cruzamento de raças e via nesse cruzamento um forte sinal de degeneração – e também da falta de futuro da nossa nacionalidade.
Nesta primeira parte do livro, o sertão de Canudos é a síntese dos contrastes. Noites geladas com sóis ardentes; região hostil com ambiente acolhedor; o cacto que pica, mas dá suco doce; a seca que é problema, e é também solução. Mas a natureza é, sobretudo, personagem e as ações interferem diretamente não só no meio físico como também no homem. O homem é entendido como mimese da natureza. As espécies diferentes da natureza vão ser encontradas agora nos homens, que serão também variados. Raças, diferentemente do que diziam os teóricos da época, até mesmo aqueles que Euclides cita, não são estáticas, se modificam na luta pela vida. Assim como as espécies vegetais, convivem e se alteram no contato com o ambiente físico.
Euclides da Cunha vai estabelecendo esse jogo de simetrias entre a natureza, o homem e o social e desenhando um quadro que a todo o momento se move. O sertanejo é síntese do clima, do solo e das condições de vida. É síntese de sua história. Por isso, diz Euclides, ele é foco de contraste, como a natureza. É valente, mas supersticioso; é forte, porém raquítico; é generoso, mas fanático. Não por acaso, Euclides da Cunha cita a nata do darwinismo social – Broca, Morton -, assim como outros autores, caso de Gumplowicz, já mencionado aqui. Diferentemente das raças estacionadas e em equilíbrio, o mestiço brasileiro estaria em formação e seria um retardatário nesse processo evolutivo. Interessava a Euclides pensar num mestiço específico: o sertanejo.
Seu argumento é claro: não teríamos uma raça; seríamos um exemplo de formação futura. E aí vem a grande frase de Euclides da Cunha: ‘Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.’ O progresso aqui aparece como danação, não exatamente como um ganho. O dilema desta geração da República Velha era o dilema de duvidar da civilização e, dessa maneira, também da própria modernidade. Euclides divide o País em três partes, três regiões geográficas: o Norte, o Centro em transição e o Sul. E as três áreas estabelecem três zonas climáticas distintas. E, segundo ele, a história traduziria notavelmente a modalidade mesológica. Tudo se relaciona. Teríamos, portanto, duas histórias distintas, a do Norte e a do Sul; igualmente, duas formas de desconhecimento, ou melhor, se todos conheciam o Sul, o Norte surgia como absolutamente desconhecido, um meio físico encravado entre os canaviais da costa e o sertão do interior. O mar e o deserto. Mais uma vez o contraste; outra vez a relação meio, história e formação étnica. Por isso, não existiria uma formação étnica, ou um traço de conformidade, ao contrário restaria, mais um termo de Euclides da Cunha, uma sub-raça efêmera.
É nesse momento do livro que Euclides introduz um trecho, talvez o mais controverso da obra, chamado Parênteses Irritantes. Abramos esses parênteses. O suposto é claro: ‘A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial.’ A mistura é ‘quase sempre’ prejudicial e o mestiço é ‘quase sempre’ um desequilibrado – e dá-lhe termos negativos (‘decaído’, ‘híbrido moral’, etc.); nesse caso, ‘a raça forte não destrói a fraca, esmaga-a pela civilização’. É nesse momento que entendemos as ressalvas que marcam o começo desses Parênteses. Euclides da Cunha usa termos como ‘quase sempre’, ‘na maioria das vezes’, não por exercício de estilo, mas para salvaguardar o sertanejo. Ou seja, diferentemente do mestiço do litoral, esse sim um decaído, o sertanejo seria um isolado, um retrógrado, mas não um degenerado. Nesse mar de mestiçagem, Euclides salva o sertanejo. Não esqueçamos que nesse momento o médico baiano Nina Rodrigues fazia todas as suas teorias em Salvador sobre a falência das raças cruzadas. É impossível obliterar também o papel de Sílvio Romero, que condenava a mestiçagem, ou então o papel que o Brasil cumpriria em 1911, no Congresso Universal das Raças, quando João Batista Lacerda escreve um texto, apoiado em Roquete Pinto, e diz que em três séculos, ou melhor, três gerações, seríamos brancos. Três séculos, nesse caso, espelhados na obra de Brocos, que é um artista acadêmico, que pinta especialmente a tela A Redenção de Cã para expressar como em três gerações seríamos brancos.
O sertanejo se transforma, antes de tudo, em um forte. É nessa parte do livro que Euclides da Cunha destaca a definição do sertanejo, como um ‘Hércules Quasímodo’. Aí está o auge do jogo das antíteses, ou seja, a ideia de que ele é ambos ao mesmo tempo. Ele é forte e fraco; imenso e diminuto – mas, sobretudo, é um desconhecido; ele, o sertanejo, é um isolado. Euclides alega a falta de existência de historiadores do sertão; ele seria o historiador do sertão, e vai entrando agora na figura de Antônio Conselheiro. Ou seja, se o sertanejo é um forte, o Conselheiro é síntese também, é condensação, é resumo abreviado desse mal gravíssimo. A vida de Antônio Conselheiro é detidamente descrita, assim como o episódio de sua separação da esposa – segundo Euclides da Cunha, uma sobrecarga adicionada à carga hereditária. O Conselheiro nunca mais teria olhado para as mulheres; falava de costas com as beatas.
Canudos, afirma Euclides, foi o refluxo da nossa história. Refluxo, eu diria, que escancarava as mazelas da nossa modernidade. O livro termina como uma denúncia, um lamento. E eu gostaria de ler apenas um trecho, quase no final do livro, quando Euclides diz: ‘Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores. Eram 4 apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.’
Denunciar é, de algum modo, levar ao conhecimento – e Euclides se valeu de seu testemunho para falar da situação in loco.
Eu diria que aí está a pena forte dessa geração, dessa geração melancólica da República, dessa República que logo ficou velha. A geração de Lima Barreto, de Euclides, de Rondon, que padeceu dos males da modernidade. Nos termos de Lévi-Strauss, bárbaro é aquele que acredita na própria barbárie. Euclides da Cunha partira cético para os sertões em guerra e voltara duvidoso. Quem sabe tudo não passasse de um grande mal-entendido. Duas realidades distintas, duas sociedades distintas. Euclides usou as ferramentas que tinha na sua época, as ferramentas ‘certas’ do determinismo. Tudo era previsível: geografia, climas, homens e raças. O corpo de Conselheiro entrava para sempre no imaginário da República Velha – mais uma vez como divisão. Corpo e alma, corpo e carne, na representação de Euclides da Cunha, que falava dos cadáveres dos soldados, das cabeças decepadas, das pernas que pendiam no galho flexível. Mas havia naquela época outras batalhas corporais. Enquanto a corte recebia o corpo do Conselheiro, não se pode esquecer que, naquele momento, o único personagem histórico que vingara era Tiradentes. Como não existia qualquer imagem dele, a República tratou de criá-la – e aproximou o herói cívico do herói religioso. Temos, portanto, a partir de Os Sertões, uma obra de fundação. E aí o termo se explica: uma obra de reprodução e de releitura, a formação de muitos heróis. E anti-heróis.
Eu não pretendo, claro, ter esgotado nada aqui. Apenas tentei refletir junto com Euclides sobre certezas e incertezas daquela época, sobre os determinismos de todas as ordens – e termino com a imagem da vertigem.
Euclides da Cunha chegou ao cenário da luta com cardápio pronto, paisagem montada, mas o repórter do sertão esqueceu a câmera fotográfica e as próprias certezas. E choveu no sertão, mesmo se ali não despontou o mar. Quem sabe ao menos a maresia.
PALESTRANTES
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, é autora de mais de 30 obras, 12 das quais dedicadas a Euclides da Cunha e Canudos. Entre abril e agosto, comentou textos do autor de Os Sertões na seção Euclides no Estadão, do caderno Cultura.
LUIZ COSTA LIMA: Professor titular de literatura da PUC-RJ, é autor, entre outros, de Terra Ignota – A Construção de Os Sertões (Civilização Brasileira), E. da Cunha, Contatos e Contrastes do Brasil (Contraponto) e O Controle do Imaginário&A Afirmação do Romance (Companhia das Letras).
LILIA MORITZ SCHWARCZ: Professora do Departamento de Antropologia da USP, a antropóloga e historiadora é autora, entre outras obras, de O Sol do Brasil, As Barbas do Imperador, A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, O Espetáculo das Raças (editadas pela Companhia das Letras).’
Luiz Costa Lima
‘Autor leu mal ideias de Gumplowicz’
‘Todos sabem que o arcabouço d’Os Sertões trata do confronto entre um movimento messiânico milenarista sertanejo e as Forças Armadas.
O esquema do livro, como também se sabe, é nitidamente determinista. São três partes: A Terra, O Homem e A Luta. Quando Euclides começa a escrever a primeira parte do livro, que, a meu ver, é a mais bela, ele vai fazer o quê? Vai começar pela constituição geológica do continente americano. Trata, então, do solo, e também da flora, da fauna, do clima, do fenômeno da seca, etc. Isso constitui o sumário da primeira parte.
Na segunda parte, que se chama O Homem, ele tratará do povoamento e da miscigenação como processo. Sobre essa segunda parte, quem vai se estender é a colega Lilia Schwarcz, especialista no assunto. Eu passo, então, em seguida a falar da Luta, que é subdividida em seis capítulos e tem o mesmo número de páginas que as duas anteriores somadas. Trata-se da parte maior do livro.
É bom não perder de vista o seguinte: que essa parte que se chama A Luta – e que deveria ser, em princípio, apenas a crônica da guerra – tem trunfos, tem ardis literários e, por isso, deflagra retroativamente as duas partes iniciais.
A Terra, entre as muitas coisas brilhantes que efetua, realiza a metaforização narrativa dos vegetais.
Conforme a analogia positiva, temos ali o elogio da resistência dos vegetais, suas virtudes morais e seu caráter de plantas sociais. Ou seja: trata-se de alegorias do sertanejo, de quem essas plantas são aliadas e protetoras, porque elas, além de apoiarem umas às outras, repelem o invasor.
Afora a analogia positiva, nós temos também o trabalho da analogia negativa, em que esses vegetais aparecem da seguinte maneira: o mandacaru, aquele cacto enorme, é chamado de espectro de árvore. Naqueles entrançados de espinhos, que existem no sertão, se retêm farrapos das fardas dos soldados que passaram por lá. Ainda mais: cabeça-de-frade, que é um cacto redondo, espinhento, que produz uma vez por ano uma única flor rubra, é comparado a um conjunto de cabeças decepadas – que só aparecerão na última parte do livro, na qual vamos saber da prática sistemática da degola dos prisioneiros.
Também nessa parte inicial se fala de Canudos pela primeira vez, quando Euclides diz que um soldado estava deitado à sombra de uma árvore, ‘descansando’, havia três meses, ou seja, ele estava morto e mumificado pela secura dos ares do sertão. É assim que o leitor tem contato com Canudos pela primeira vez no livro. Em seguida, isso é replicado pelo cavalo, igualmente mumificado, que, preso meio de pé numas pedras, mostra sua crina esvoaçante, de modo que também tem a aparência enganosa da vida.
Quanto à Luta, vocês sabem que foram necessárias quatro expedições para conseguir debelar a insurreição do Arraial. E o fim da guerra se deu no dia 5 de outubro de 1897. Antes que a luta terminasse, o que se divulgava era que se tratava de uma conspiração monarquista internacional, que tinha Canudos como foco e por objetivo restaurar o império. E o que aconteceu quando a guerra acabou? Quando a guerra acabou, o que surgiu foi a resistência admirável dos canudenses e um massacre de gente pobre, mal armada e mal alimentada.
É preciso lembrar que, quando a República foi instaurada no Brasil, houve uma série enorme de levantes disseminados pelo território nacional, algo normal quando ocorre uma mudança de regime violenta como essa. Mas a Guerra de Canudos foi o último desses movimentos. Quer dizer, tamanha repressão, tamanha convocação dos brios do Brasil inteiro acabaram fazendo com que a República saísse do conflito consolidada. Consolidada à custa do sangue dos canudenses, evidentemente, mas consolidada.
E o que Os Sertões expressa? Expressa exatamente uma reviravolta de opinião. Quando Euclides da Cunha foi para Canudos, como todo mundo no Brasil, ele pertencia àquela opinião unânime de que lá havia uma conspiração monarquista, que significava um retrocesso para o País. Mas quando chegou ao cenário da guerra, Euclides começou a ver que as coisas eram um pouco diferentes. Já se encontram no Diário de Uma Expedição os primeiros sinais de uma mudança, da reviravolta que iria se operar nele. Euclides da Cunha trazia da Escola Militar uma boa bagagem. Ele tinha estudado geologia, mineralogia, botânica, química, física, ótica, astronomia, geodésica, mecânica racional, as matemáticas, etc. Só que eram matérias de currículo; nada era muito aprofundado, como se pode notar lendo Os Sertões. Mas se percebe também que esses saberes adquiridos na Escola Militar afinam as vistas com que Euclides avalia Canudos e a guerra. Lembremos também que ele fez estudos novos para escrever o livro. Foi estudar a história de Portugal e do Brasil, especialmente a colonização e o povoamento; estudou noções de antropologia, de sociologia, de folclore, de psicologia social e daquilo que se chamava de ‘comportamento normal das multidões’’, porque os cientistas sociais andavam muito preocupados com a Revolução Francesa, que mobilizara massas revolucionárias nas ruas.
O que nós vamos ter, então, em relação ao conjunto dos saberes de Euclides? Ele mobiliza tudo isso. Vamos encontrar, misturadas nas páginas da obra, por exemplo, teorias sobre a origem do fenômeno endêmico das secas e interpretações psicocriminais da instabilidade nervosa dos mestiços. Ou então uma crítica às táticas do exército misturada com análises de preceitos religiosos e de heresias ao longo da história.
Com tudo isso, Os Sertões cumpriu sua missão: erigir um monumento literário à memória dos canudenses, imolados no altar da modernização trazida pela República que se abatera sobre eles.
esde a primeira leitura de Os Sertões, eu lembro que me chamava a atenção, logo na nota introdutória, a passagem de uma frase: ‘Gumplowicz, maior do que Hobbes.’ Obviamente, eu não sabia quem era Gumplowicz – se alguém aqui souber, parabéns, porque eu não sabia até relativamente pouco tempo atrás. Numa das minhas leituras, já adulto, releitura, aliás, de Os Sertões, eu me deparei outra vez com a frase e disse: ‘Não é possível que a esta altura da vida não saiba ainda quem é Gumplowicz.’ Procurei nas enciclopédias acessíveis, desde logo a Britânica – nenhuma referência. Até encontrar informações sobre ele na Enciclopédia Italiana, enciclopédia fascista. Fascista, sim, mas que tem um pequeno verbete sobre Ludwig Gumplowicz. Eu lhes dou os dados muito rapidamente.
Gumplowicz era um polonês, nascido em 1838 na Cracóvia e foi professor numa pequena cidade da Áustria, Graz, onde morreu em 1909. No fim do século 19 e início do século 20, a Polônia pertencia ao Império Austro-Húngaro e a língua da elite, ou pelo menos do grupo docente e administrativo, era o alemão. Então, Gumplowicz tinha escrito nesse idioma um livro chamado A Luta das Raças. Euclides não lia em alemão; se já lia muito mal o inglês, imagine o alemão. Mas descobri que o livro teve uma tradução francesa e deve ter sido nessa língua que Euclides o leu.
É uma obra pequena, sem grandes dificuldades de leitura. Para minha surpresa, lendo o livro, eu me disse: ‘Não, este não pode ser o autor que Euclides cita!’ Por quê? Porque esse autor é todo o oposto do ‘darwinismo social’ que ele esboçava.
E o que Gumplowicz diz explicitamente? Em poucas palavras, depois de reconhecer os méritos de Darwin, de dizer no que se afasta do autor de A Origem das Espécies, ele vai admitir que as raças não tinham uma origem única, ou não tinham um tipo único, e sofriam variações de acordo com as condições do meio. No livro, Gumplowicz explica que não se podem testar as ditas leis universais nesse caso, porque estamos falando de um tempo de milênios de anos, em que não há um testemunho disso. Mas, acreditava, podemos bem imaginar que se tratasse de uma multiplicidade muito grande de grupos humanos – e que esses grupos guerreavam entre si. Aqueles que venciam cresciam em número, aumentavam, incorporando os vencidos. Então, o primeiro critério do que se entendia como raça era um critério de ordem social, ou seja: de, família, clã, tribo, grupo vencedor. Grupo ‘vencedor’, leia-se ‘raça vencedora’ – então, leia-se ‘raça mais forte’. Grupo ‘vencido’, leia-se ‘raça inferior’.
‘Raça’, portanto, é um critério – falando com os termos de hoje – antes sociocultural do que biológico. Gumplowicz acrescenta: ‘É verdade que a ideia de laço de sangue é um elemento mais forte, contudo, se trata de um elemento posterior.’ Ou seja, o laço de sangue, a base do que a gente entende como raça se estabelece depois que aqueles critérios socioculturais se verificam.
Na análise de Os Sertões interessava-me resolver esse enigma.. Acho muito estranho que, depois de um século de estudos euclidianos, eu não haja encontrado nenhum trabalho que se referisse ou que analisasse Gumplowicz. Talvez alguém possa me desmentir. Mas o fato é que, havendo referência ou não, a análise do debate da divergência da leitura de Euclides em relação ao que o polonês dizia, esse debate, que eu saiba, foi estabelecido apenas num livro que eu escrevi no fim do século passado, chamado Terra Ignota.
Outro ponto sobre o qual eu vou evitar me estender agora, por questão de tempo, é: como seria Os Sertões se Euclides tivesse lido Gumplowicz corretamente? A ideia básica do cristal de rocha, da essência da nacionalidade, da necessidade de passar um tempo para que nós superássemos a mestiçagem – que é, do ponto de vista da antropologia biológica, um crime, etc., etc. -, tudo isso cairia fora d’Os Sertões. Insisto: o que seria de Os Sertões se Euclides tivesse bem lido Gumplowicz? Mas essa é uma questão que eu deixo, seguindo o estilo das telenovelas, para um próximo capítulo.
s Sertões representa um exemplo extremo de obra em que criador e criatura pouco se distinguem. De um lado, não há mais como falar do episódio de Canudos sem mencionar o autor. De outro, eu diria que a memória é sempre traiçoeira: o escritor se mistura com Antônio Conselheiro, como bem mostrou Roberto Ventura.
Eu me deterei aqui na segunda parte de Os Sertões, O Homem. Ela me parece ser mais lamentada do que destacada. O ataque se dirige justamente ao suposto engano de Euclides da Cunha ao se apoiar na bibliografia herdada do darwinismo social, a qual condenava o cruzamento de raças e via nesse cruzamento um forte sinal de degeneração – e também da falta de futuro da nossa nacionalidade.
Nesta primeira parte do livro, o sertão de Canudos é a síntese dos contrastes. Noites geladas com sóis ardentes; região hostil com ambiente acolhedor; o cacto que pica, mas dá suco doce; a seca que é problema, e é também solução. Mas a natureza é, sobretudo, personagem e as ações interferem diretamente não só no meio físico como também no homem. O homem é entendido como mimese da natureza. As espécies diferentes da natureza vão ser encontradas agora nos homens, que serão também variados. Raças, diferentemente do que diziam os teóricos da época, até mesmo aqueles que Euclides cita, não são estáticas, se modificam na luta pela vida. Assim como as espécies vegetais, convivem e se alteram no contato com o ambiente físico.
Euclides da Cunha vai estabelecendo esse jogo de simetrias entre a natureza, o homem e o social e desenhando um quadro que a todo o momento se move. O sertanejo é síntese do clima, do solo e das condições de vida. É síntese de sua história. Por isso, diz Euclides, ele é foco de contraste, como a natureza. É valente, mas supersticioso; é forte, porém raquítico; é generoso, mas fanático. Não por acaso, Euclides da Cunha cita a nata do darwinismo social – Broca, Morton -, assim como outros autores, caso de Gumplowicz, já mencionado aqui. Diferentemente das raças estacionadas e em equilíbrio, o mestiço brasileiro estaria em formação e seria um retardatário nesse processo evolutivo. Interessava a Euclides pensar num mestiço específico: o sertanejo.
Seu argumento é claro: não teríamos uma raça; seríamos um exemplo de formação futura. E aí vem a grande frase de Euclides da Cunha: ‘Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.’ O progresso aqui aparece como danação, não exatamente como um ganho. O dilema desta geração da República Velha era o dilema de duvidar da civilização e, dessa maneira, também da própria modernidade. Euclides divide o País em três partes, três regiões geográficas: o Norte, o Centro em transição e o Sul. E as três áreas estabelecem três zonas climáticas distintas. E, segundo ele, a história traduziria notavelmente a modalidade mesológica. Tudo se relaciona. Teríamos, portanto, duas histórias distintas, a do Norte e a do Sul; igualmente, duas formas de desconhecimento, ou melhor, se todos conheciam o Sul, o Norte surgia como absolutamente desconhecido, um meio físico encravado entre os canaviais da costa e o sertão do interior. O mar e o deserto. Mais uma vez o contraste; outra vez a relação meio, história e formação étnica. Por isso, não existiria uma formação étnica, ou um traço de conformidade, ao contrário restaria, mais um termo de Euclides da Cunha, uma sub-raça efêmera.
É nesse momento do livro que Euclides introduz um trecho, talvez o mais controverso da obra, chamado Parênteses Irritantes. Abramos esses parênteses. O suposto é claro: ‘A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial.’ A mistura é ‘quase sempre’ prejudicial e o mestiço é ‘quase sempre’ um desequilibrado – e dá-lhe termos negativos (‘decaído’, ‘híbrido moral’, etc.); nesse caso, ‘a raça forte não destrói a fraca, esmaga-a pela civilização’. É nesse momento que entendemos as ressalvas que marcam o começo desses Parênteses. Euclides da Cunha usa termos como ‘quase sempre’, ‘na maioria das vezes’, não por exercício de estilo, mas para salvaguardar o sertanejo. Ou seja, diferentemente do mestiço do litoral, esse sim um decaído, o sertanejo seria um isolado, um retrógrado, mas não um degenerado. Nesse mar de mestiçagem, Euclides salva o sertanejo. Não esqueçamos que nesse momento o médico baiano Nina Rodrigues fazia todas as suas teorias em Salvador sobre a falência das raças cruzadas. É impossível obliterar também o papel de Sílvio Romero, que condenava a mestiçagem, ou então o papel que o Brasil cumpriria em 1911, no Congresso Universal das Raças, quando João Batista Lacerda escreve um texto, apoiado em Roquete Pinto, e diz que em três séculos, ou melhor, três gerações, seríamos brancos. Três séculos, nesse caso, espelhados na obra de Brocos, que é um artista acadêmico, que pinta especialmente a tela A Redenção de Cã para expressar como em três gerações seríamos brancos.
O sertanejo se transforma, antes de tudo, em um forte. É nessa parte do livro que Euclides da Cunha destaca a definição do sertanejo, como um ‘Hércules Quasímodo’. Aí está o auge do jogo das antíteses, ou seja, a ideia de que ele é ambos ao mesmo tempo. Ele é forte e fraco; imenso e diminuto – mas, sobretudo, é um desconhecido; ele, o sertanejo, é um isolado. Euclides alega a falta de existência de historiadores do sertão; ele seria o historiador do sertão, e vai entrando agora na figura de Antônio Conselheiro. Ou seja, se o sertanejo é um forte, o Conselheiro é síntese também, é condensação, é resumo abreviado desse mal gravíssimo. A vida de Antônio Conselheiro é detidamente descrita, assim como o episódio de sua separação da esposa – segundo Euclides da Cunha, uma sobrecarga adicionada à carga hereditária. O Conselheiro nunca mais teria olhado para as mulheres; falava de costas com as beatas.
Canudos, afirma Euclides, foi o refluxo da nossa história. Refluxo, eu diria, que escancarava as mazelas da nossa modernidade. O livro termina como uma denúncia, um lamento. E eu gostaria de ler apenas um trecho, quase no final do livro, quando Euclides diz: ‘Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores. Eram 4 apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.’
Denunciar é, de algum modo, levar ao conhecimento – e Euclides se valeu de seu testemunho para falar da situação in loco.
Eu diria que aí está a pena forte dessa geração, dessa geração melancólica da República, dessa República que logo ficou velha. A geração de Lima Barreto, de Euclides, de Rondon, que padeceu dos males da modernidade. Nos termos de Lévi-Strauss, bárbaro é aquele que acredita na própria barbárie. Euclides da Cunha partira cético para os sertões em guerra e voltara duvidoso. Quem sabe tudo não passasse de um grande mal-entendido. Duas realidades distintas, duas sociedades distintas. Euclides usou as ferramentas que tinha na sua época, as ferramentas ‘certas’ do determinismo. Tudo era previsível: geografia, climas, homens e raças. O corpo de Conselheiro entrava para sempre no imaginário da República Velha – mais uma vez como divisão. Corpo e alma, corpo e carne, na representação de Euclides da Cunha, que falava dos cadáveres dos soldados, das cabeças decepadas, das pernas que pendiam no galho flexível. Mas havia naquela época outras batalhas corporais. Enquanto a corte recebia o corpo do Conselheiro, não se pode esquecer que, naquele momento, o único personagem histórico que vingara era Tiradentes. Como não existia qualquer imagem dele, a República tratou de criá-la – e aproximou o herói cívico do herói religioso. Temos, portanto, a partir de Os Sertões, uma obra de fundação. E aí o termo se explica: uma obra de reprodução e de releitura, a formação de muitos heróis. E anti-heróis.
Eu não pretendo, claro, ter esgotado nada aqui. Apenas tentei refletir junto com Euclides sobre certezas e incertezas daquela época, sobre os determinismos de todas as ordens – e termino com a imagem da vertigem.
Euclides da Cunha chegou ao cenário da luta com cardápio pronto, paisagem montada, mas o repórter do sertão esqueceu a câmera fotográfica e as próprias certezas. E choveu no sertão, mesmo se ali não despontou o mar. Quem sabe ao menos a maresia.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Qual o papel real dos jornais na divulgação dos ‘fatos’ de Canudos?
Walnice Nogueira Galvão: O papel dos jornais foi fundamental nessa guerra porque, afinal de contas, era a única mídia. E os jornais criaram um fantasma persecutório do Arraial de Canudos, alegando que ele estaria ameaçando a própria República. Os jornais não foram lá e mataram todos os canudenses. Quem fez isso, claro, foi o Exército. Quem deu a ordem foi o presidente da República. Vamos dividir as responsabilidades. Mas quem deu notícias falsas e publicou cartas forjadas e intrigas de todo o tipo, desde o começo, foram os jornais. Eles fizeram esse serviço. Trata-se de uma das páginas mais vergonhosas da história do jornalismo no Brasil.
Em relação à leitura que fez de Ludwig Gumplowicz, Euclides da Cunha teria se apegado demais ao trecho em que o pensador fala que o fator sangue, embora não seja o primeiro a surgir, é o que mais pesa na ideia de raça?
Diz Gumplowicz: ‘É só mais tarde que aparece o fator físico: a unidade de sangue. Este é por certo mais potente: é o cimento que mantém esta unidade.’
Luiz Costa Lima: A hipótese que Gumplowicz levanta, ele mesmo diz, não é científica, porque não há meios de se fazer uma verificação – como é que você vai verificar vários tipos humanos nos tempos primitivos? Você há de imaginar que, no campo humano, existam vários grupos que se digladiam entre si. E que um grupo ganha de outro. O que importa, em primeiro lugar, para que esse grupo, vencedor ou perdedor, não importa, constitua uma unidade? A mesma língua, a mesma religião, os mesmos costumes – ou seja, os elementos de civilização, que hoje chamaríamos socioculturais. Pois bem: Gumplowicz então acrescenta que esses tais elementos são menos fortes do que aquele que aparece depois. Ou seja: depois que eu me considero membro do mesmo grupo que vocês – porque falamos a mesma língua, porque temos costumes semelhantes, etc., etc. – surge um dado mais físico, quer dizer, só então entram os laços de sangue. Noutras palavras, o biológico é a posteriori, de onde a ideia de raça biologicamente determinada não funciona. Por que Euclides não teria percebido isso? A hipótese que me ocorre é que, mesmo já escrevendo Os Sertões, ele tende a dar respostas do que já sabe, tende a repetir as respostas que já tem.
O cientificismo de Euclides foi superado pelo avanço da antropologia social?
Lilia Moritz Schwarcz: Sou particularmente contra uma visão evolutiva na ciência. Nem sempre progredimos. Euclides é um homem de sua época, na medida em que ele se serve do pensamento científico de ponta do seu contexto. Isso preciso ser dito. Eu tentei mostrar aqui que ele avança também. O que estava fazendo Euclides da Cunha? Tentando demonstrar que as raças estão em correlação não só com seu meio, mas também com sua história. Ele fazia antropologia. Isso era fazer antropologia.’
O Estado de S. Paulo
‘Euclides não teve tempo de e vingar a Hileia’
‘Em dezembro de 1904, quando Euclides da Cunha desembarcou em Belém, já havia lido vários relatos de viajantes e naturalistas sobre a Amazônia. Numa carta a Coelho Neto enviada de Manaus, ele cita o título do livro que pretendia escrever – Um Paraíso Perdido -, ‘onde procurarei vingar a Hileia maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século 17’. Euclides não teve tempo para realizar essa vingança intelectual. Mas escreveu sobre a região vários artigos e ensaios, reunidos no livro Contrastes e Confrontos e na obra póstuma À Margem da História.
Nos ensaios de À Margem da História, sua visão sobre a Amazônia é pendular: a natureza é portentosa, o clima é dotado de uma ‘função superior’. No outro extremo do pêndulo, prevalece uma visão negativa, em que a natureza é destruidora, pois o caos, a desordem e a inconstância são fatores de degradação humana. Algumas frases, de forte efeito retórico, resumem sua visão: ‘A natureza soberana e brutal, em pleno expandir de suas energias, é uma adversária do homem.’ O homem a que se refere Euclides é o forasteiro, não o nativo. Na visão do escritor, as sociedades nativas – índios e caboclos – são inaptas para desempenhar papel relevante no processo civilizador da Amazônia. Euclides se contradiz para tentar provar que aquele território é uma terra sem história. Em vez de se vingar ‘de todas as brutalidades das gentes adoidadas que maculam a Amazônia desde o século 17’, ele recorre a essas mesmas crônicas e relatos do passado para afirmar que a raiz dos vícios da terra é a preguiça.
Quem adquire relevância nos estudos euclidianos é o brasileiro que se desloca do Nordeste para trabalhar na Amazônia. São os sertanejos – parentes próximos dos conselheiristas combatentes de Canudos – que se encontram no centro das suas análises histórico-sociais. O ‘caboclo titânico’ é o nordestino do sertão. O seringueiro, ‘o homem que trabalha para escravizar-se’. Euclides escreveu palavras apologéticas sobre o seringueiro, pois este sobreviveu ao regime de trabalho semiescravo que lhe foi imposto e resistiu à natureza tumultuária e inconstante. Um herói de feição quase romanesca, cujos atributos são ‘a força titânica, a vontade, a pertinácia, um destemor estoico e até uma constituição física privilegiada’.
Se Euclides teceu uma visão distorcida sobre os caboclos da Amazônia, não se pode dizer o mesmo em relação aos índios peruanos e seringueiros brasileiros. A meu ver, um dos textos mais densos de À Margem da História é Judas Ahsverus. Nele, o olhar cientificista dá lugar a uma figuração das relações sociais, em que a imaginação, inspirada na experiência de quem de fato testemunhou a vida dos trabalhadores nos seringais, constrói um quadro melancólico durante o sábado de Aleluia, quando ‘os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes’. Em Judas Ahsverus há um olhar sobre a história, a geografia, a religião e o meio socioeconômico, mas sem um narrador que pretenda enquadrar numa hierarquia de valores os seres de quem fala. O relato tende a ser menos explicativo e muito mais literário. O ornamento e a pompa da linguagem são atenuados por uma escrita sóbria, cujo conteúdo de verdade convence muito mais do que uma mistura de cientificismo com etnografia ingênua.
Não menos relevantes são as duas páginas finais de Os Caucheros, em que Euclides narra uma visita a um posto abandonado, pouco acima do Shamboyaco. A casa principal, do seringalista, e as vivendas menores, dos empregados, estão destruídas, arruinadas pela ‘mata que reconquistava o seu terreno primitivo’. Aí, de fato, a natureza se regenera, sem ser brutal ou perigosa. O que de fato é brutal e mesmo trágico é o destino do ser humano. Euclides e os membros da comitiva descobrem num dos casebres o último habitante do lugar: um índio. Não se sabe se ele pertence à etnia amauaca, piro ou campa. Com o corpo deformado pelo impaludismo, esse pobre-diabo foi abandonado pelos companheiros. O que impressiona nesse breve texto é como o narrador junta muitas coisas em apenas 50 linhas. Do ponto de vista literário e histórico, penso que é tão incisivo e sugestivo quanto algumas passagens da novela O Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
Um índio agonizante, abandonado numa tapera. Um corpo – uma coisa indefinível – que assemelha ‘menos um homem que uma bola de caucho ali jogada a esmo’. O ser humano degradado se confunde com a mercadoria. Corpo e caucho, simbolicamente juntos, pertencem ao reino das ruínas, que não exclui a língua, pois a fala do índio agonizante é incompreensível. Rompida a comunicação, a única palavra em castelhano que ele consegue balbuciar é: Amigos. Para Euclides, essa palavra é dirigida aos ‘desmandados aventureiros que àquela hora prosseguiam na faina devastadora’.
Mas há uma terrível ambiguidade quanto ao destinatário da palavra balbuciada. Ela pode ser dirigida ao próprio Euclides e aos membros da comitiva. E por que não pensar que ‘Amigos’ é uma palavra destinada também aos leitores? Nós mesmos, que estamos lendo este texto e ouvindo o eco dessa palavra balbuciada por um ‘lastimável aborígine sacrificado’. Porque, mais de um século depois, nós também somos espectadores dessa realidade trágica, cujos protagonistas Euclides nomeia ‘construtores de ruínas’.
PERGUNTAS E RESPOTAS
A ideia de sertão virou uma categoria analítica depois de Euclides da Cunha?
Nísia Trindade Lima: Sertão é uma categoria nitidamente política e nunca denotou um espaço geográfico claramente definido. O médico e romancista Afrânio Peixoto dizia que ‘o sertão do Brasil começa onde termina a Av. Central’. Referia-se à atual Av. Rio Branco, no Rio. Desde a colônia, o termo sertão é usado para espaços afastados do litoral que se caracterizariam por estarem distantes do poder do Estado. No século 19, o antagonismo litoral/civilizado contraposto ao sertão/ bárbaro é recorrente nos textos dos intelectuais. Portanto, não está nessa imagem a originalidade do pensamento de Euclides da Cunha. Da leitura de sua obra o que se revela é a ambivalência – em alguns momentos o sertão é visto de modo negativo, em outros como base para a construção da nacionalidade. O que confere originalidade ao pensamento de Euclides são essas mudanças de sentido. E, sobretudo, a proposta de pensar o Brasil a partir do sertão, um das ideias de mais força no pensamento social, na literatura, enfim, na cultura brasileira.
O cientificismo presente na prosa de Euclides também aparece na poesia?
Francisco Foot Hardman: É interessante notar algumas coisas. Nos manuscritos de Euclides que chegaram a nós encontramos fragmentos de poesias em talonário de anotações da Superintendência de Obras Públicas do Estado de São Paulo. Um caderno de exercício de cálculos de sua época da Escola Militar, do seu segundo ano, também tem alguns poemas interessantíssimos, como, por exemplo, o Cristo. Uma de suas versões saiu no Estadão em 1892. Outro poema tem uma variante também muito interessante. Primeiro é chamado de Álgebra Lírica; depois, Amor Algébrico. Euclides trabalha nessa ciência vã dos números, como imagem. A poesia surge, assim, absolutamente dentro do contexto das matérias que tinha na sala de aula. Outro comentário é que, no poema que escreve sobre a foto (Se Acaso Uma Alma se Fotografasse), ele tenta traçar uma espécie de autoironia, por assim dizer, com relação ao meio moderno presente naquele momento que é a própria fotografia.
A ideia de ‘paraíso verde’ impede que vejamos a Amazônia como ela é?
Milton Hatoum: Claro, porque já cria uma expectativa, você já faz uma leitura prévia da região. Euclides caiu nesse conto do vigário. Essa visão de pulmão do mundo e outros grandes clichês escondem que na Amazônia as pessoas ainda morrem de malária, de leishmaniose. A fantasia cria mitos que ocultam a verdade. Você tem dar voz aos cientistas da Fiocruz, do Inpa, da Embrapa, do Museu Goeldi, gente que trabalha com pesquisa na Amazônia. Ouvir o que os ribeirinhos têm a dizer, o que o povo da Amazônia tem a dizer. Não se pode proibir a caça da tartaruga o ano todo, proibir as pessoas de comer. Tem que proibir a pesca por tanto tempo? No fim, Euclides disse uma coisa importante. Ele ficou tão enlouquecido com aquela grandeza, tão desarmado, que no prefácio do livro do Alberto Rangel, O Inferno Verde, escreveu que a Amazônia é tão grande, tão complexa, que é uma espécie de infinito que deve ser dosado.
PALESTRANTES
NÍSIA TRINDADE LIMA: Socióloga e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, é autora de, entre outros, Um Sertão Chamado Brasil (Revan) e Saúde e Democracia (FioCruz), além de organizadora, com Dominichi Miranda de Sá, de Antropologia Brasiliana (Editora UFMG).
FRANCISCO FOOT HARDMAN: Professor do Programa de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, é autor de A Vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna (Unesp) e Trem Fantasma (Companhia das Letras), entre outros.
MILTON HATOUM: Escritor e tradutor amazonense, escreveu quatro romances – Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado – e o livro de contos A Cidade Ilhada. Ganhou três prêmios Jabuti e um Portugal Telecom. É cronista do Caderno 2.’
Leopoldo Bernucci
‘Consagrado, ele continua um enigma’
‘A biografia de Euclides da Cunha sempre me interessou, mas nunca do ponto de vista da análise. Nos últimos tempos, porém, para ajudar um amigo, Frederic Amory, falecido recentemente (de quem estamos prestes a publicar aqui Euclides da Cunha: Uma Odisséia nos Trópicos), retomei o tema, que no caso de Euclides se torna complicado pelo desencontro de informações. Não sou seu biógrafo, mas reconheço a utilidade das biografias realizadas, dando a conhecer a vida do autor, seus textos e a visão de seus contemporâneos. Eu me refiro aqui a algumas conhecidas, como a de Eloy Pontes, Francisco Venâncio Filho, Silvio Rabelo, Olímpio de Souza Andrade, Leandro Tocantins e Roberto Ventura. Como também a esboços biográficos de Walnice Galvão e Luiz Costa Lima. Walnice, por exemplo, investigou os anos decisivos que Euclides da Cunha passou na escola militar.
É pouco comum para um escritor receber tanta atenção. Ficou por todos nós conhecida a maneira pela qual foi consagrado como escritor nacional logo após a sua morte em 15 agosto de 1909. Se em vida, depois da publicação de Os Sertões, ele granjeara a glória literária e o respeito intelectual, já morto a sua estatura de grande escritor não parou de crescer e até hoje nos surpreende. Apesar dessa glorificação, que faz jus à sua obra, resta saber se realmente ela tem sido lida e compreendida até os dias de hoje. As últimas pesquisas realizadas demonstram que, de modo geral, Euclides não tem sido bem lido; que ao longo dos anos até mesmo os especialistas do autor tem passado por alto aspectos relevantes do seu principal livro, Os Sertões.
O que impulsionou aqueles admiradores a iniciarem um culto para venerar um escritor, cuja obra acabou sendo pouco lida e gerando controvérsia? E mais: seria preciso entender tudo o que Euclides escreveu para apreciá-lo e reconhecer os seus méritos? Tais perguntas nos colocam diante de duas realidades muito bem definidas, que são a dos seus estudiosos e a dos leitores menos preocupados em dissecá-lo, aqueles que principalmente buscam nele o prazer da leitura gerado a partir de sua tão particular e bela linguagem.
A lição deixada por Euclides é a da relevância da busca de conhecimento, da exploração de saberes não diretamente ligados especificamente à nossa formação. Quão fascinado Euclides se sentia diante de algo que ele apenas entendia ser o começo de uma longa jornada que o levaria à compreensão de um fenômeno social ou da natureza! É assim, como vamos vê-lo nas inúmeras biografias disponíveis e que, sem exceção, contribuíram a configurar a sua imagem de homem e escritor. Se é só por meio de suas biografias que temos condições de julgá-lo na sua condição de homem, pai de família e engenheiro, estas desempenham papel preponderante ao definir o caráter, as idiossincrasias, os valores morais, as virtudes e os vícios do homem.
Eu gostaria agora de colocar as diferentes vidas de Euclides em relação contígua com um dos gêneros biográficos mais antigos, a hagiografia. Se a função principal da hagiografia é informar-nos sobre a trajetória da santidade do indivíduo e nos convencer de suas virtudes e seus milagres, as biografias sobre Euclides tem seguido percurso parecido. No modelo hagiográfico há certas fases da vida do biografado que devem ser incluídas no relato da vida do indivíduo pio. Destaco apenas algumas: a conversão, as provações, o martírio, os milagres e a canonização. A trágica morte de Euclides, a despeito dos esclarecimentos legais que absolveram Dilermando de Assis, é o tipo de morte que não se pode chamar até hoje de assassinato, porquanto o agredido agiu em legítima defesa. Dilermando não pôde porém eximir-se diante dos admiradores do escritor, que viram Euclides como um mártir que, depois de sofrer inúmeras provações na vida (o seu esforço para consolidar a carreira de engenheiro, a luta diária para o sustento da família, o fracasso matrimonial), ofereceu o peito ao verdugo que veio a aliviar as suas dores. Euclides da Cunha ficaria conhecido também como o grande escritor injustamente sacrificado e cuja ausência seria irreparável.
Qual foi o seu grande milagre, então? Ser todas essas coisas e não ter cedido à vulgaridade de encontrar-se na patética situação de justificar publicamente todas as imperfeições de sua mundana existência. Como entender que na sua atribulada e desgastante vida de engenheiro pudesse Euclides produzir um livro como Os Sertões? Como compreender que apesar de sua lamentável e dramática relação familiar, possivelmente decorrente do trauma de ser órfão de mãe e viver sempre longe do pai desde menino, pôde ele construir toda a sua carreira intelectual? Euclides continua sendo um enigma.
PALESTRANTES
LEOPOLDO BERNUCCI: Professor de Literatura Latino-Americana da Universidade da Califórnia, organizou Discurso, Ciência e Controvérsia em Euclides da Cunha (Edusp) e, com Francisco Foot Hardman, Euclides da Cunha: Poesia Reunida (Editora Unesp), que será publicado em outubro.
JOSÉ LEONARDO DO NASCIMENTO: Professor do Instituto de Artes da Unesp, é autor de, entre outros, Os Sertões de Euclides da Cunha: Releituras e Diálogos (Unesp) e de Primo Basílio na Imprensa Brasileira do Século XIX (Unesp). Com Valentim Facioli, escreveu Juízos Críticos (Unesp).
JOSÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA: Ator, dramaturgo, diretor e fundador do Teatro Oficina, de São Paulo, realizou a ambiciosa adaptação de Os Sertões para o palco entre 2002 e 2006. Estruturou a sua montagem em cinco espetáculos – Terra, Homem I, Homem II, Luta I e Luta II.’
José Leonardo do Nascimento
‘Atualidade de edificador do novo mundo’
‘Os Sertões chegou às livrarias do Rio em 2 de dezembro de 1902 e já no dia seguinte o crítico José Veríssimo assinava uma resenha no Correio da Manhã. Na mesma data, Euclides respondeu em carta a Veríssimo, discordando de algumas de suas observações. Foi tudo muito rápido. Estrondoso para a época, esse sucesso se deu, em parte, devido à resenha de Veríssimo. Mas essa análise foi somente a primeira de uma extensa e significativa fortuna crítica da produção euclidiana. Veríssimo assinalou que o autor assistira ao episódio que descrevia e referiu-se ao seu saber enciclopédico. Mas criticou o emprego de termos técnicos: ‘Um boleio arrevesado de frases, com arcaísmos e, sobretudo, neologismos, texto repleto de expressões obsoletas ou raras.’ Ao que Euclides reagiu, argumentando que o consórcio entre a ciência e a arte seria ‘a expressão mais elevada do pensamento humano’.
Mas, voltando ao período de lançamento do livro, Coelho Neto, escritor já importante, publicou no início de 1903 dois artigos no Estado, nos quais definiu Os Sertões como uma obra magnífica de ‘ciência e arte’. No entanto, alguns críticos sustentaram que, muitas vezes, preciosismos literários invadiam a cena analítica.
O crítico do Correio da Manhã, José Maria Moreira Guimarães, autor de outros quatro artigos publicados em 1903, definiu Os Sertões como obra de imaginação: ‘Ainda não se afirmou que esse belo trabalho é mais produto do poeta e do artista do que do observador e do filósofo. Por igual não se encontram no livro as virtudes da imaginação e os atributos da reflexão.’ Moreira Guimarães era oficial do Exército, engenheiro de formação, tinha convivido com Euclides na Escola Militar. Ao que parece, teria ficado incomodado com a denúncia que Euclides fez dos crimes cometidos pelo Exército em Canudos. Fez sua análise da narrativa euclidiana formulando cerca de 20 críticas a Os Sertões, destacando-se, entre elas, algumas contradições. Observou que Euclides escreveu que Antônio Conselheiro ‘pregava contra a República’, embora sua ação ‘não tivesse o mais pálido intuito político’. Opôs-se, também, ao ponto de vista euclidiano de que a República foi um fato imprevisto e sem conexão com a história do País. Sua crítica revelava também certa oposição de setores do Exército às alusões de Euclides à Campanha Militar de Canudos. Isso tanto é verdade que, no fim dos anos 50, Dante de Melo publicou pela Editora da Biblioteca do Exército um livro chamado A Verdade Sobre Os Sertões.
Do ponto de vista literário e da relevância cultural, é um livro que marca e atravessa a história brasileira do século 20. É célebre a figura de Getúlio Vargas, em Canudos, com Os Sertões debaixo do braço. É igualmente significativo o discurso de Juscelino Kubitschek, às vésperas da inauguração da nova Capital Federal, dizendo que Euclides nos apresentara um sertanejo ligado às fases antigas da evolução social e, assim, produtor de ruínas, ao passo que Brasília era a comprovação de que o sertanejo pode construir cidades modernas e modernistas.
Quando Euclides tomou posse na Academia Brasileira de Letras, em 1906, Sílvio Romero fez um discurso pouco acadêmico, afirmando coisas um tanto absurdas, mas verdadeiras. Na frente do presidente da nação, Afonso Pena, disse que a República havia restabelecido os governos oligárquicos nos Estados, ‘governichos criminosos’ dos quais a sociedade só iria se livrar pelo assassinato. Lembrou que o País passava por uma revolução social desencadeada pela Abolição, no século 19, mas que a República havia obstado essa revolução, impedindo que a sociedade brasileira ajustasse suas contas com o seu passado colonial. Segundo Romero, esse roteiro histórico da nação teria sido impedido por um golpe político conservador – a República. Afirmou que a nossa elite cultural e política se aproveitou dos múltiplos aspectos de Os Sertões para eleger e exaltar imagens literárias, escondendo a crítica de Euclides à sociedade brasileira. Terminou dizendo que, ‘apesar das imprecisões da crítica indígena’, a Academia estava recebendo um escritor que sabia colocar não apenas pronomes, mas também ideias.
Neste ponto caberia perguntar: como o estilo literário poderia impedir que a denúncia social de Euclides fosse ouvida? De fato, Afrânio Peixoto, no artigo Euclides da Cunha, Sociólogo para o jornal A Manhã, em 1942, portanto, em pleno Estado Novo, sustentou que ‘a estesia do estilo de Euclides o impediu de ser ouvido e de certa forma escondeu a denúncia do crime de uma nacionalidade’.
As interpretações da obra de Euclides modificaram-se à medida que concepções filosóficas e históricas que estavam na base de suas análises também passaram a ser criticadas e combatidas. Leituras inspiradas em novas ideias entendiam que os textos euclidianos eram carregados de pressupostos de uma falsa ciência do século 19. Mas a obra euclidiana seria salva pelo esforço de seu autor de tentar uma compreensão histórica do País, pelas qualidades literárias e, sobretudo, pelo rigor de sua observação sobre sociedades situadas ‘à margem da história’.
Se as leituras da obra euclidiana modificaram-se ao longo desses 100 anos, alguns princípios analíticos essenciais permaneceram, como a concepção de que a literatura euclidiana é um composto de arte, observação social, ciência ou pretensão científica. Euclides foi visto, pela maioria dos seus analistas, como artista e intérprete do Brasil, mas raramente como produtor de um novo universo na cultura brasileira, os sertões. O termo sertão chegou ao Novo Mundo nas caravelas de Pedro Álvares Cabral. Mas o conceito foi absorvido e transformado pela experiência histórica e social brasileira. Pois Euclides da Cunha está entre os mais importantes edificadores desse mundo novo. Vem daí o poder de seu verbo e a razão de sua atualidade.’
José Celso Martinez Corrêa
‘Grande livro dque fala todas as línguas’
‘Como é que vou me esquecer daquele livro encapado em pano azul, que um dia meu pai trouxe para casa? Monteiro Lobato vendia livros pelo interior de São Paulo. Como minha família era de Araraquara, um dia o próprio Lobato ofereceu a meu pai aquele volume de Os Sertões. Foi um encantamento. Abri o livro, A Terra, O Homem, A Luta, daí disse, bom, já li este livro!
Luta daqui, luta dali, vieram aqueles anos duros, o livro foi se tornando presente, e muito mais a partir dos ataques do CCC à peça Roda-Viva. A gente precisava se defender, então começamos a estudar A Luta. Naquele momento Mao Tsé-tung já tinha encomendado a tradução de Os Sertões para o chinês. Sabiam disso? Tanto que quando o Geraldo de Mello Mourão foi à China, perguntaram para ele como era aquele ‘poema ilimitado brasileiro’, repetindo a ideia de poema ilimitado que se aplica a Hamlet, de Shakespeare.
Quem se aproxima da obra se enfeitiça. Inclusive Euclides escreve enfeitiçado por Conselheiro. E ‘aquilo’ batia forte nele quando via a terra. Não era deserto, mas não era zona fértil. Era lugar onde não se podia viver, mas se podia viver, porque de repente brotava uma primavera. Era uma natureza maravilhosa, e terrível. Tudo tão contraditório, como a condição humana. Euclides foi gostando dessa possibilidade de resistência.
Oswald de Andrade disse que, no portal da literatura brasileira, de um lado está Euclides da e, de outro, Machado de Assis. Euclides anunciou o povo brasileiro, Machado o lado crítico do povo brasileiro. Quando Machado soube que os conselheiristas tinham tomado Canudos, escreveu um texto pirado, chamado Tudo Pirata, se voltou para a aventura, reagiu ao estabelecido. Tudo Pirata é uma questão de ordem maravilhosa.
Para entender o livro você precisa ver o mapa, ler o dicionário, fazer glossário, tem que ir à luta. Por exemplo, depois que os sertanejos passaram a trabalhar conosco no teatro, sertanejos nordestinos vivendo em São Paulo, aprendemos a não entregar nossas terras ao Grupo Silvio Santos. Começamos a trabalhar Os Sertões com eles, houve um despertar de coisas, uma enorme vontade de estudo. Porque este livro fala todas as línguas, é escrito por muita gente, não foi só o Euclides. E sobretudo evoca uma paixão.
Na peça, vivemos Canudos como o lugar onde Conselheiro nasce. O lugar onde Antônio Vicente Mendes Maciel passa a ser Antônio Conselheiro. Maciel foi apaixonado por uma mulher, que o traía com outros homens. E no Nordeste, a lei era: ‘Mata!’; mas ele não matava. Só trocava de cidade. E ela traía novamente. E ele mudava de cidade. Até que um dia ela o abandonou. Ele largou tudo e se desconstruiu. Morre o homem de gravatinha. Como aconteceu com Buda!
O texto em que Euclides apresenta Antônio Conselheiro é belíssimo. Tem loucura, tem beleza. A metáfora mais forte do livro é a rocha viva. O cientista tentava dizer que havia uma identidade brasileira, do índio, do negro e do branco, e queria que essa ideia tivesse lastro. Mas ela é viva, e se é viva, voa, se transforma. Tanto é mutante que aconteceu uma coisa muito doida: os próprios soldados que voltaram para o Rio, sem receber o soldo da guerra, foram morar no morro. Fizeram uma cidade igual a Canudos e criaram o arquétipo da favela brasileira.
É um tremendo livro não lido. Universal, igual à Bíblia, livro de um positivista que vai para Canudos para massacrar, mas diante da terra, do homem e da luta, ele pira. Passa tão mal que precisa ir embora. Porque viu degolas, torturas. Os fardados ordenavam: ‘Viva a República! Se você disser isso, a gente vai te matar com bala. Se não disser, a gente vai te matar com faca.’ Morrer pela faca era o inferno. Mas eles preferiam sacrificar a vida eterna a dizer aquilo. Que coisa fajuta, era um regime oligárquico dentro de um regime republicano.
Uma vez na Grécia li em voz alta A Terra e vi que aquilo era um cântico. Voltei com a obsessão de encenar essa parte do livro. O público não entendeu. Depois queríamos montar A Luta, mas o teatro estava em reforma. Em setembro de 2002, ano do centenário de Os Sertões, decidimos encenar A Terra, sem ter um tostão, sem ter nada. E daí foi acontecendo: de repente, estávamos com um espetáculo de cem pessoas, entre atores, músicos e técnicos. É isso, o livro tem uma fertilidade extraordinária, que nos levou a uma epopeia: 27 horas de teatro! Ter vivido Antônio Conselheiro me ensinou muito. Criamos no Oficina uma organização igual a Canudos.
Sou pajé, não sou juiz, não sou diretor. Sou conselheiro. Quer ouvir? Então, ouve. Não quer ouvir? Não ouve. Aprendemos isso também com Os Sertões. Aprendemos a eliminar o assistente, o coadjuvante… Euclides fala de um lado obscuro que o projeta na história. Mas é exatamente a luminosidade desse lado obscuro que os positivistas de hoje ainda não conseguem entender. Hoje penso que tivemos a sorte de interpretar Os Sertões a partir de tudo o que veio depois. Porque Euclides antecipa Gilberto Freyre, Oswald Andrade, Glauber Rocha, e faz uma obra que transcende o nacionalismo. Transcende o próprio Brasil. O positivismo trouxe uma coisa bonita para a nossa bandeira, que foi o lema ‘amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim’. Sumiram com o amor, agora reduzido a mera categoria afetiva. E impuseram a ordem e o progresso para o povão. Os Sertões nos motiva a superar essas categorias.
Perguntas e respostas
Qual é a influência de Euclides na obra de autores consagrados, como Graciliano Ramos?
José Leonardo do Nascimento: Como já disse antes, a ideia de ‘sertão’ não embute uma ideologia, tanto que o termo já havia sido utilizado até por Pero Vaz de Caminha, na fase do Descobrimento. Mas todos os que escreveram sobre o sertão no século 20 devem, de fato, pagar seu tribuno a Euclides. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, temos o personagem de Fabiano, um sertanejo que não é um forte, mas briga como pode contra a seca. Em São Bernardo, do mesmo autor, romance que não se passa no sertão, encontramos a figura do comerciante que enriquece de forma primitiva. Em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Riobaldo diz coisas que Euclides certamente assinaria embaixo. E por que as metáforas euclidianas se prestaram a transposições? Por que tinham, por trás de si mesmas, uma concepção de filosofia, de história, uma visão ciência e arte.
Se é possível buscar pistas interpretativas de Os Sertões nos estudos de hagiografia, então caberia uma provocação: que espécie de santo seria Euclides?
Leopoldo Bernucci: Eu temia que esta pergunta aparecesse (risos). Euclides não era santo, portanto, não vamos colocá-lo em altares, pois não seria o lugar apropriado para ele. Era um homem que vivia aos dramas do seu tempo, mas com um senso de missão forte. Coelho Neto fazia brincadeiras sobre Euclides num círculo mais íntimo de amigos, dizendo que ele era um homem muito sério, compenetrado demais, portanto, próximo dos santos.Então, o que o aproxima da santidade seria o sentido missionário que colocava nos seus empreendimentos, vivendo o drama dos homens.
Como lidou com a morte de Euclides na montagem do Oficina?
José Celso Martinez Corrêa: Ainda não estamos perto daquilo que Rimbaud falou: ‘Eu é o outro.’ Tínhamos, ali no teatro, a figura de Euclides da Cunha. Tínhamos a pessoa dele, humana, como todos nós, mas imersa num regime patriarcal cujas regras absurdas são capazes de levar o indivíduo à morte. Imagine só, ser capturado por essa besteira chamada honradez? E foi o que aconteceu. Talvez Euclides tenha cometido um suicídio, inclusive porque já foi ao encontro do rival anunciando: ‘Vim aqui para morrer ou para matar.’ Imagine… Ele estava tomado pelo ‘oposto do outro’, ou seja, o oposto daquele que durante um tempo aceitou ser corno, admitindo que esse fato fizesse parte da vida. Até fugiu dos instintos mais violentos, indo parar justamente numa guerra cheia de sangue, que tremenda ironia do destino. Esse é o paradoxo trágico das duas figuras em Euclides. São completamente diferentes, mas completamente coladas. Espelho um do outro. No espetáculo faço os dois se encontrarem e contracenarem vestidos da mesma maneira.’
O Estado de S. Paulo
Poemas de amor, sonho e guerra
‘Quase ignorada, obra poética de Euclides da Cunha é reunida em livro e renova os estudos sobre o autor
1. MEU CARO COELHO NETO:
Meu caro Coelho Neto,/ felizmente/ Esta fisionomia,/ De onde ressalta a ríspida expressão/ Da face de um tapuia, espantadíssima,/ Hás de achá-la belíssima…/ Porque saberás ver, nitidamente,/ Com os raios X da tua fantasia,/ O que os outros não veem: um coração… São Paulo, 1903
2. SE ACASO UMA ALMA SE FOTOGRAFASSE (I):
Se acaso uma alma se fotografasse/ De modo que nos mesmos negativos/ A mesma luz pusesse em traços vivos/ O nosso coração e a nossa face;// E os nossos ideais, e os mais cativos/ De nossos sonhos… Se a emoção que nasce/ Em nós, também nas chapas se gravasse/ Mesmo em ligeiros traços fugitivos.// Poeta! tu terias com certeza/ A mais completa e insólita surpresa/ Notando, deste grupo bem no meio,// Que o mais belo, o mais forte e o mais ardente/ Destes sujeitos, é precisamente/ O mais triste, o mais pálido e o mais feio… Manaus, 2 de fevereiro de 05
3. PÁGINA VAZIA:
Quem volta da região assustadora/ De onde eu venho, revendo inda na mente/ Muitas cenas do drama comovente/ Da Guerra despiedada e aterradora,// Certo não pode ter uma sonora/ Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,/ Que possa figurar dignamente/ Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.// E quando, com fidalga gentileza, cedestes-me esta página, a nobreza/ Da vossa alma iludiu-vos, não previstes// Que quem mais tarde nesta folha lesse/ Perguntaria: ‘Que autor é esse/ De uns versos tão mal feitos e tão tristes’?!
Bahia – 14 Outubro de 97
(Escrito no álbum da médica Francisca Praguer Fróes)
4. AMOR ALGÉBRICO:
Acabo de estudar – da ciência fria e vã/ O gelo, o gelo atroz – me gela ainda a mente/ Acabo de arrancar a fronte minha ardente/ Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.// Bem triste e bem cruel decerto foi o ente/ Que esse Saara atroz – sem auras, sem manhã/ A álgebra criou – a mente a alma mais sã/ Nele vacila e cai sem um sonho virente…// Acabo de estudar e pálido, cansado/ Dumas dez equações os véus hei arrancado…/ Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz// É tempo, é tempo pois de trêmulo ansioso/ Ir – dela descansar no seio venturoso/ E achar de seu olhar o luminoso X!… (Escrito em um caderno de notas, em 1885)
5. D. QUIXOTE:
Assim à aldeia volta o da triste figura/ Ao tardo caminhar do Rocinante lento;/ No arcabouço dobrado um grande desalento,/ No entristecido olhar uns laivos de loucura.// Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura,/ Do ideal e da fé, tudo isto num momento,/ A rolar, a rolar, num desmoronamento,/ Entre risos boçais do bacharel e o cura.// Mas certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente,/ Contigo a sorte ao pôr neste teu cérebro oco,/ O brilho da ilusão do espírito doente;// Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco/ Perdendo qual perdeste um ideal ardente/ E ardentes ilusões e não se ficar louco. (Poema datado de 1890).
FONTES: EUCLIDES DA CUNHA: POESIA REUNIDA (EDITORA UNESP), ORGANIZAÇÃO DE FRANCISCO FOOT HARDMAN E LEOPOLDO BERNUCCI, COM LANÇAMENTO PREVISTO PARA OUTUBRO; E CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA – EUCLIDES DA CUNHA (IMS, 2002)’
******************
Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.
Folha de S. Paulo
O Estado de S. Paulo
Comunique-se
Carta Capital
Terra Magazine
Agência Carta Maior
Veja
Tiago Dória Weblog
Primeira Página