Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

TV DIGITAL
Renato Cruz

Aos 2 anos, TV digital confunde consumidor

‘A TV digital brasileira completa dois anos na quarta-feira. Segundo o Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), foram mais de 2 milhões de receptores vendidos (incluindo televisores, set-top boxes, celulares e conversores para computador). O sinal digital está no ar em 26 cidades brasileiras, à frente do cronograma oficial. A Argentina, o Chile, o Peru e a Venezuela aderiram à tecnologia nipo-brasileira, e o Equador e Cuba avaliam sua adoção. ‘Vou para Moçambique no domingo (hoje), para apresentar a tecnologia para 250 representantes de vários governos da África’, informa Frederico Nogueira, presidente do Fórum do SBTVD.

Tudo isso pode ser visto como indicadores de sucesso, mas ainda existe um grande desafio: fazer com que a TV digital seja entendida pelo consumidor. Os fabricantes empreendem esforços, com demonstrações, treinamento de vendedores e sites especiais, para explicar o que é essa tecnologia. O Fórum do SBTVD, que reúne emissoras, fabricantes e governo, prepara uma campanha de esclarecimento para janeiro.

‘O consumidor sabe que a TV digital é melhor que a analógica, mas não sabe direito porque’, diz Marcio Portella Daniel, diretor de Eletrônicos de Consumo da Samsung. Desde o começo do mês, a empresa passou a comparar, em algumas lojas e shopping centers, a TV digital à analógica, para que o consumidor possa ver na prática quais são as diferenças. ‘As vendas têm dobrado nesses lugares’, destaca Daniel.

Mais quais são as principais dúvidas? Em primeiro lugar, a TV digital que foi lançada há dois anos não tem nada a ver com a TV paga. As empresas de televisão por assinatura – como Net, TVA e Sky – também têm seus pacotes digitais. Os serviços via satélite, como o da Sky, sempre foram digitais. A TV digital aberta, no entanto, tem características próprias e o espectador precisa ter equipamentos específicos para assisti-la. O consumidor precisa de um conversor ou uma TV com receptor embutido para assistir a TV aberta digital. Também precisa de uma antena UHF.

Outra dúvida comum é confundir alta definição com TV digital. Nem todo programa transmitido digitalmente tem alta definição, que oferece uma qualidade de imagem seis vezes melhor que a convencional. Para assistir uma imagem em alta definição, é necessário uma TV no formato Full HD. Se o espectador ligar um conversor à TV de tubo terá provavelmente uma imagem melhor, mas não a alta definição.

‘A dúvida é quase unânime sobre o que precisa comprar para assistir a TV digital’, afirma Luiz Fernando dos Santos, gerente comercial da Fnac. ‘Faz parte do script do vendedor dizer o que é preciso.’ O consumidor pode comprar um televisor Full HD com ou sem receptor integrado. Se optar por um aparelho sem receptor, precisará de um conversor. Nos dois casos, terá de instalar uma antena UHF, que pode ser interna. ‘Existe uma certa resistência do consumidor, que se pergunta: será que o vendedor não está me empurrando?’

MULTIPROGRAMAÇÃO

A TV digital tem quatro diferenças principais em relação à analógica: alta definição, mobilidade, multiprogramação e interatividade. A alta definição está disponível em uma parte da programação. A mobilidade permite assistir televisão em celulares com receptores, televisores portáteis e conversores para computador. A multiprogramação, em que até quatro programas são transmitidos ao mesmo tempo em um só canal, como se o transformasse em quatro canais, foi proibida por uma portaria do Ministério das Comunicações.

A TV Cultura, de São Paulo, conseguiu depois de muita briga colocar mais de um canal no ar, depois de receber autorização para uso da multiprogramação em caráter experimental.

A interatividade, que é o único componente brasileiro do sistema nipo-brasileiro, ainda não está disponível comercialmente, depois de dois anos.

‘A interatividade vai chegar em dezembro ou começo de janeiro’, afirma Fernanda Summa, gerente de Produtos de TV da LG. A fabricante demonstrou um televisor com o Ginga, software de interatividade do sistema nipo-brasileiro, durante o evento Broadcast & Cable, no fim de agosto, em São Paulo. ‘Durante a Copa, a interatividade será um recurso bastante explorado, com informações sobre os jogos.’

Apesar das dúvidas dos consumidores, a adoção da TV digital deve se acelerar nos próximos anos, com a substituição das TVs de tubo por telas de LCD e plasma. As vendas dos aparelhos de tela fina devem ultrapassar as dos modelos de tubo na próximo ano, e o governo definiu um cronograma obrigando fabricantes a incluírem o receptor nos televisores.

O governo definiu ainda que, a partir de 2010, 5% dos aparelhos celulares venham com receptor de TV digital. Essa regra está sendo revista, com a expectativa de que o prazo seja ampliado para julho de 2011. ‘Esse mercado está se abrindo, com a adesão de outros países ao sistema adotado no Brasil’, diz Luiz Claudio Carneiro, diretor de Relações Governamentais da Nokia, que lançou na semana passada um receptor de TV digital para celular.’

 

CONFECOM
Felipe Recondo e João Domingos

Conferência quer intervir na mídia

‘A maioria das propostas encaminhadas pelos ministérios, sindicatos e organizações não-governamentais à 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) quer mais regulação do Estado sobre a mídia e, principalmente, mais favores do governo. Entre as ideias tiradas nas conferências regionais, preparatórias para a 1ª Confecom, está a de criar um Conselho Nacional de Comunicação, vinculado à Presidência. Outra proposta é a de recriação da Embrafilme, extinta no início de 1990.

Esse conselho, que lembra a proposta de criação do polêmico Conselho Nacional de Jornalismo – ideia arquivada, que agitou o primeiro mandato do presidente Lula (2003-2006) por se destinar a intervir na produção de reportagens -, servirá para promover ‘o aperfeiçoamento do setor e viabilização do novo marco regulatório’.

Das propostas que, na prática, são reivindicações de algum tipo de acesso facilitado aos cofres públicos, a mais comum é a que pede uma reserva de parte das verbas de publicidade oficial para ‘veículos alternativos comunitários’ e jornais de pequena circulação.

Em vez de regulação objetiva, as propostas têm caráter interventor a pretexto de estabelecer o equilíbrio entre ‘os interesses da população’ e os interesses dos ‘grandes grupos empresariais’. Por esse caminho trafegam ideias que vão da regulação de programas religiosos nas emissoras de rádio e TV à defesa do ‘controle público dos meios de comunicação’.

Para o presidente da comissão organizadora da 1ª Confecom, Marcelo Bechara, do Ministério das Comunicações, a intenção da conferência não é aumentar a participação do Estado na mídia.

‘O sistema privado é muito bem sucedido. Tem bom conteúdo, promove o entretenimento e presta um serviço importante. Mas a comunicação pública tem outra visão, um ritmo que não segue a mesma lógica’, afirma ele. ‘Não acho que seja maior participação do Estado. Fica parecendo que o Estado quer tomar o lugar de alguém, mas isso não existe.’

A pulverização da publicidade oficial pelo País, no entanto, é vista como uma forma de tentar coibir a produção de reportagens contrárias aos interesses do governo.

‘Em vez de aumentar o alcance da publicidade oficial, o governo deveria reduzi-la drasticamente e estabelecer regras muito claras. Há um risco enorme de ser uma tentativa de intimidar o jornalismo investigativo’, afirmou o coordenador de projetos da ONG Transparência Brasil, Fabiano Angélico.

Desde que Lula convocou a Confecom, por decreto assinado em abril, os municípios e Estados iniciaram os debates para levar as teses à conferência nacional. Mas, alegando o caráter pouco democrático dos debates, amplamente dominados por representantes do governo ou contrários às empresas, seis representantes das redes privadas abandonaram as discussões. Permaneceram apenas duas, a RedeTV! e o grupo Bandeirantes.

PROGRAMAS RELIGIOSOS

A conferência será palco de disputa de interesses específicos. As entidades sindicais, por exemplo, trabalharão para ter direito a um canal próprio de televisão, proposta já encaminhada à Confecom pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), Força Sindical, Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e União Geral dos Trabalhadores (UGT).

Rádios e TVs comunitárias querem ter direito a uma cota de publicidade oficial, subsídio para a compra de equipamentos, criação de um fundo alimentado com recursos das empresas comerciais de comunicação, anistia e indenização para quem foi preso pela Polícia Federal por manter rádios sem autorização, as chamadas rádios piratas.

Dentre as propostas já levadas à Confecom, a que mais deve gerar polêmica trata da regulação pelo governo da ‘prática de proselitismo religioso’ no rádio e na TV. Segundo a Secretaria de Comunicação Social do governo (Secom), a programação das empresas de radiodifusão deve ser destinada ‘prioritariamente para a difusão de programas educativos, culturais, artísticos e informativos’.

Outra sugestão, também da Secom, é ‘coibir a comercialização do tempo de programação’ pelas emissoras de rádio e TV. Algumas delas, inclusive, vendem parte de sua programação para programas religiosos.

‘Há necessidade premente de coibir a venda de espaço na radiodifusão, porque a concessão, permissão e autorização não podem ter sua titularidade e seu controle repassados nem em sua totalidade e nem parcialmente a outros’, defendeu a Secom na sugestão encaminhada à Confecom.

Todas as propostas discutidas e aprovadas durante a conferência, entre os dias 14 a 17 de dezembro em Brasília, serão depois compiladas no documento final da Confecom. ‘A conferência é propositiva, não cria lei, não haverá um decreto. Mas o Congresso pode usar as informações como subsídios’, afirmou Bechara.’

 

Principais pontos das propostas do governo federal

‘Secom: aprovar uma lei que garanta direito de resposta e o pagamento de indenizações; regular a prática de proselitismo religioso no rádio e na TV

EBC: flexibilizar a Lei de Licitações para facilitar a compra e contratação de ‘conteúdos regionais e independentes’

Ministério da Cultura: restringir a propriedade cruzada de meios de comunicação e a formação monopólios e oligopólios

Ciência e Tecnologia: estimular a produção de programas de rádio e TV que tratem de ciência e tecnologia no Brasil

Ministério da Saúde: em momentos de crise, o governo poderá veicular mensagens de orientação para a população no rádio e na TV sem custos para os cofres públicos

Ministério das Comunicações: garantir o acesso à banda larga para todo cidadão

Ministério da Justiça: regular por lei a classificação indicativa dos programas de TV

Algumas propostas das conferências regionais

Verba de publicidade: reservar 30% para rádios e TVs comunitárias, jornais de baixa tiragem e internet

Lei: aprovação de uma nova Lei de Imprensa; aprovação de lei para garantir o direito de resposta

Conselhos: implantação de conselhos de comunicação federal, estaduais e municipais; desvincular os conselhos de comunicação dos Poderes Executivo e Legislativo

Regularização da profissão: retomar a obrigatoriedade do diploma de jornalista

Emissoras de rádio e TV: audiências públicas prévias para a concessão ou renovação de outorgas; concessão de canais abertos de TV para as centrais sindicais

Cinema: recriação da Embrafilme para a produção de filmes de conteúdo nacional, regional ou independente

Rádio pirata: pagamento de indenização para quem responde a processo criminal por manter rádios sem outorga’

 

Luiz Zanin Oricchio

Cineastas rejeitam volta da Embrafilme

‘A extinção da Embrafilme em 1990, no início do governo Collor, provocou uma recessão brava no cinema brasileiro, com a produção caindo a quase zero e assim se mantendo por alguns anos. Essa situação penosa causou a impressão de que havia um luto permanente no meio cinematográfico pela morte da empresa, criada em 1969, durante o governo militar. Engano: sua recriação, nos mesmos moldes daquela época, parece não despertar o menor entusiasmo entre os profissionais de cinema.

Fernando Meirelles (de Cidade de Deus) acha que seria um retrocesso, um verdadeiro andar de caranguejo: ‘O que não funcionava no modelo da Embrafilme era o fato de toda a verba pública destinada ao cinema estar concentrada nas mãos de uma pequena turma que decidia quais projetos deveriam ser financiados e, portanto, além dos projetos terem a mesma cara ou direção, pertencer à turma era um pré-requisito para se fazer cinema no Brasil’, disse.

Meirelles, um dos poucos cineastas patrícios com trânsito no mercado internacional, entende que a vantagem do sistema atual de financiamento é que o dinheiro pode ser buscado em ‘milhares’ de balcões diferentes. Essa multiplicidade de fontes de financiamento seria fiadora da ‘diversidade do atual cinema brasileiro, com lugar para filmes voltados ao mercado e outros experimentais, além de muitos documentários’, analisa.

‘SOVIETIZADA’

Orlando Senna, cineasta (Iracema, uma Transa Amazônica, em parceria com Jorge Bodanzky), ex-titular da Secretaria do Audiovisual entre 2003 e 2007 durante a gestão de Gilberto Gil no MinC, pondera que ‘a única vantagem que a Embrafilme tinha em relação ao sistema atual Ancine/Secretaria do Audiovisual/Renúncia Fiscal era ser também uma distribuidora’. Mas é contra a recriação pura e simples da estatal, nos mesmos moldes dos anos 70 e 80. ‘Retornar a uma empresa centralizada e ‘sovietizada’, voltada apenas para o cinema, como a Embrafilme, seria um retrocesso. O ideal seria uma agência mais abrangente do que a atual Ancine, com poder de regulamentação sobre todo o setor e acoplada a uma distribuidora estatal’.

Mesmo o cineasta Roberto Farias (Assalto ao Trem Pagador), que dirigiu a empresa entre os anos 1974-1979, propõe uma forma alternativa, mas não vê possibilidade ou sentido na volta ao passado. ‘Dificilmente se poderia recriar a Embrafilme tal como era. Talvez seja possível uma espécie de BNDES do cinema, com flexibilidade para estimular, emprestar e associar-se, como alguns de nós defendíamos no fim de minha gestão em 1979, e como era o desejo de Leon Hirszman’, diz.

A produtora Mariza Leão, da Morena Filmes (Guerra de Canudos e Meu Nome não É Johnny) crava sua opinião sem qualquer hesitação. ‘É old fashion, uma proposta antiquada; a Embra morreu.’ Ela admite que a empresa, em sua época, ‘foi sensacional, mas não seria agora’. Diz que a Embrafilme ajudou a ela e ao marido, o cineasta Sergio Rezende, quando não passavam de dois garotos. Mas hoje o mesmo esquema não teria mais o menor sentido.

Cabe lembrar que a Embrafilme era tanto uma produtora quanto distribuidora de filmes. E, de acordo com os profissionais ouvidos, hoje ela não seria útil nem em um campo e nem em outro. Com exceção de Orlando Senna, todos entendem que a distribuição deve ser privada, não estatal.

Farias diz que nenhuma distribuidora é capaz de dar conta de 60 a 100 filmes por ano, que é a meta brasileira a ser alcançada. E que a incapacidade de dar conta desse volume de lançamentos prejudicaria os que têm menos chances no mercado, os mais frágeis. ‘Já vi este filme. Os interesses imediatos da empresa e o entusiasmo de seus funcionários se concentrariam inevitavelmente nos filmes comerciais e, como antes, os ‘difíceis’ seriam arremessados no mercado e abandonados à própria sorte.’

Mariza emenda: ‘Para aqueles que imaginam que uma distribuidora estatal possa substituir o legítimo direito de escolha do público, induzindo e/ou impondo filmes, lamento dizer que isso é fantasia pura.’

COPRODUTORA

Farias diz que distribuidora tem de ser privada, ‘trabalhando filme a filme, extraindo do mercado cada centavo do seu potencial’. E conta que no final de sua gestão, em 1979, depois de conquistar 40% do mercado, queria privatizar a distribuidora da Embrafilme, mantendo a empresa apenas como coprodutora. ‘Meu desejo era fomentar quatro ou cinco distribuidoras privadas que, por serem menores, poderiam dedicar-se a todos os filmes de sua carteira, inclusive os médios ou pequenos’. A sobrevivência dessas distribuidoras dependeria da resposta de público a esses filmes nas salas de exibição.

Como nada disso foi feito, a Embrafilme se arrastou ao longo dos anos 1980, acabando por ser liquidada, sem um suspiro, no início da era Collor. Se a sua extinção deixou impressão de saudade foi porque, naquela época, nada foi colocado em seu lugar e mesmo uma empresa ultrapassada era melhor do que nada. Hoje a situação é outra.’

 

PROPAGANDA
Dora Kramer

A vulgaridade está no ar

‘Previsível e infalível como é a natureza humana, não demorarão a surgir reclamações sobre o comercial que usa imitações do presidente Luiz Inácio da Silva e da ministra Dilma Rousseff para vender papel higiênico.

Assim que fizer as contas e perceber que a paródia vulgariza mais que populariza a dupla, além de minar a imagem de gerente competente construída para a ministra, o governo haverá de arranjar um jeito de sumir com a propaganda do ar.

Até para tentar evitar que outros sigam o mesmo caminho antes que o veio se revele promissor.

Quem pode o mais – que grandes empresas invistam dinheiro na produção de um filme institucional travestido de obra de entretenimento com o objetivo assumido de passar nos cobres o proverbial ofício da bajulação – pode o menos.

Pela lógica vigente – aquela segundo a qual quando muitos erram o erro configura-se um acerto -, a rigor o governo não teria do que reclamar. O presidente Lula, aliás, é o último a poder se queixar da grosseria do vizinho.

As razões são sobejamente conhecidas. Descontadas as ocasiões de crises e escândalos em que o presidente achou por bem recolher-se ao silêncio, nos últimos anos quase todos os dias Lula tem oferecido ao País demonstrações de sua capacidade de superação no que tange à deselegância nas maneiras. De falar, de agir e até de raciocinar.

Sua carência de apreço à cerimônia em boa medida é responsável por sua popularidade. Fala como aquele ‘brasileiro igualzinho a você’ fabulado por marqueteiros de antigas campanhas eleitorais, que não falou ao coração do eleitorado à época, mas ressurgiu bem-sucedido depois de presidente eleito em campanha em que um outro marqueteiro recomendou moderação.

Respeito é bom e todo mundo gosta. Ocorre que é preciso se dar ao respeito e respeitar a todos para receber tratamento igual em troca. O uso de linguajar chulo, de críticas tão sem freios que mais parecem desaforos, da desqualificação moral de quem dele discorde acaba levando o autor a um patamar bem abaixo de seu posto.

O presidente não se impõe limites sequer de cortesia. Não pode exigir ser tratado com a respeitabilidade que seria devida ao presidente da República. O resultado é a disseminação da indelicadeza.

No ambiente da chefia da nação essa rudeza não se atém aos modos. Alcança também os atos.

Senão, vejamos a justificativa que a Presidência da República deu para a utilização de avião da FAB para transportar de São Paulo para Brasília, 15 convidados do filho do presidente, cujas identidades o governo se recusa a revelar.

Segundo a assessoria de comunicação do Palácio do Planalto o presidente tem o direito de transportar convidados porque essa é uma ‘prerrogativa tradicionalmente exercida no Brasil: foi assim em governos anteriores, tem sido assim no atual’.

E ponto final. Nenhum dever de observância à regra de que ao setor público o que não é expressamente permitido é proibido, nenhum constrangimento de estender a tal prerrogativa a familiares – imitando os parlamentares com a cota de passagens aéreas do Congresso -, nenhuma concessão à óbvia inadequação a critérios razoáveis de conduta.

Nem mesmo uma pequena reverência à memória dos discursos de campanha nos quais Lula prometia, se eleito, ‘mudar’ e lutar contra ‘tudo isso que está aí’.

Ficou, por essa resposta da assessoria, consolidada a regra de que no tocante aos maus costumes antiguidade também é posto.’

 

LULA NO CINEMA
Julia Duailibi e Ricardo Brandt

Produção tenta ‘despolitizar’ filme, que Lula vê com Dilma

‘Minutos antes da pré-estreia do filme sobre os primeiros 35 anos da vida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a equipe de produção de Lula, o Filho do Brasil fazia um esforço conjunto para ‘despolitizar’ a sessão. O próprio Lula, no entanto, não teve a mesma preocupação. Levou a ministra Dilma Rousseff, sua escolhida para disputar a sucessão presidencial pelo PT, além de estrelas petistas, para ver o longa-metragem.

Antes da chegada da comitiva presidencial, atores e diretores que passavam pelo ‘tapete vermelho’ dos antigos estúdios Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, se empenhavam em negar que a produção possa trazer benefícios políticos para o presidente e para Dilma. A oposição vem atacando o filme, alegando que a produção é ‘eleitoreira’, pois será lançada no circuito comercial em janeiro de 2010, ano de eleição presidencial no País.

Também questiona o modelo de financiamento do longa, que custou R$ 16 milhões e tem sido financiado por empresas privadas que mantêm contratos com o governo federal. ‘Ele não é candidato a nada. Não tem nada a ver’, afirmou o produtor Luiz Carlos Barreto, acrescentando que o filme era para ter sido lançado há um ano. ‘Isso é intriga da oposição.’

O ator Rui Ricardo Dias, que interpreta Lula no filme, evitou falar sobre as críticas que a produção vem recebendo. Com uma assessora de imprensa ao lado, ele também afirmou que não gostaria de comentar nenhum assunto relacionado a política.

‘A questão é quem pega carona no papel de quem. Lula não precisa do filme para nada’, declarou o ator. ‘Mas vamos falar sobre o filme para não dar margem para politização.’

A pré-estreia levou 2.100 pessoas para ver o longa em São Bernardo. A maior parte era formada por sindicalistas, mas estrelas do governo e do PT marcaram presença. Os ministros Patrus Ananias, do Desenvolvimento Social, e Miguel Jorge, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, além do deputado José Genoino (SP) e do ex-ministro José Dirceu, estavam na plateia.

PARQUE

Antes da sessão, Lula participou da inauguração do Parque dos Direitos da Criança, também em São Bernardo. O espaço recebeu o nome Eurídice Ferreira Mello, a Dona Lindu, em homenagem à sua mãe.

No evento, o presidente falou sobre a questão da criança e do adolescente no Brasil que, na avaliação dele, na maioria das vezes são vítimas de uma família desestruturada. ‘Foram mais de 25 anos que a economia esteve atrofiada, um período em que não se investiu na universidade, no ensino fundamental’, comentou.’

 

Marcelo Auler

Abuso ‘era uma piada’, diz cineasta

‘O cineasta Silvio Tendler identificou-se ontem com o ‘publicitário’ que segundo o cientista político e ex-militante petista César Benjamin teria presenciado, em conversa ocorrida num almoço em 1994, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revelar que na prisão, em 1980, tentou abusar sexualmente de um colega de cela.

‘Eu sou o publicitário que estava naquela conversa. Lembro-me da história. Em 1994, fiquei 15 dias na campanha do Lula e saí por causa do Cesinha’, disse Tendler, que deixou a equipe depois de ter um videoclipe de sua autoria alterado por Benjamin.

‘Aquilo era uma piada. Lula sempre foi um cara brincalhão, não foi a única que ele fez’, afirmou, ao relatar sua versão da conversa. ‘Todos os dias ele chegava com uma piada. Ele resolveu provocar e brincar. Estava evidente para todos na mesa que aquilo era uma brincadeira. O Cesinha levou 15 anos para elaborar que aquilo não era uma brincadeira e que podia ter um fundo de verdade. Não tinha. Aquilo era uma piada, todo mundo riu’, explicou Tendler, para quem ‘só um débil mental’ interpretaria a conversa de forma diferente.

O cineasta lembrou que naquela época Lula estava em plena campanha para a Presidência. ‘Não seria louco, no meio de uma campanha eleitoral, de levantar uma lebre que derrubaria ele’, argumentou. ‘Ele (Benjamin) precisa dizer por que levou 15 anos para revelar essa história e de onde tirou que era real e não uma piada.’’

 

LIBERDADE DE IMPRENSA
Moacir Assunção

Censura viola cláusulas pétreas da Carta, diz dirigente da OAB

‘O presidente da Comissão de Direito Criminal da OAB-SP, Fernando José da Costa, considera que a censura ao Estado desde 31 de julho, por determinação do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), viola cláusulas pétreas – aquelas que não podem ser alteradas sob nenhuma hipótese – da Constituição de 1988, o que a torna ilegal.

De acordo com o especialista, a livre manifestação do pensamento e de opinião são os principais princípios constitucionais atacados na decisão do desembargador Dácio Vieira, após liminar pedida pelo empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Fernando, responsável pelos negócios da família, é investigado por vários crimes e foi indiciado pela Polícia Federal na Operação Boi Barrica.

Além disso, para o advogado, o caso demonstra uma confusão entre dois preceitos constitucionais: a liberdade de expressão e o direito à intimidade. O segundo constituiu a principal tese do empresário para pedir a mordaça ao Estado. ‘Os cidadãos têm sua intimidade assegurada, mas, no caso de pessoas públicas, esse direito é relativizado. A livre informação é um bem absolutamente indispensável nos dias de hoje.’

TRANSPARÊNCIA

Assim, a vida privada dos homens públicos, em todos os níveis, tem se restringido sensivelmente, exatamente por conta das exigências de uma sociedade globalizada. ‘Essas pessoas recebem salários da sociedade, então, nada mais justo que prestem contas dos seus atos a essa mesma sociedade.’

Em sua visão, os principais interessados na investigação sobre a sua atuação na vida pública deveriam ser os próprios políticos, que devem satisfações à sociedade. ‘No entanto, principalmente neste caso do Estado, os que deviam pedir a investigação para provar sua idoneidade censuraram o jornal.’

Um exemplo de casos em que a vida privada interfere na função pública, para o especialista, é o de um hipotético piloto de Fórmula 1 que tenha problemas de visão e esconda essa condição do público. ‘Ele não pode fazer isso, porque, se não enxergar bem, vai causar vários problemas a terceiros.’ No caso de um político, o princípio é equivalente, em sua opinião.’

 

TELEVISÃO
Rodrigo Brancatelli

Bosco cria SP mítica na televisão

‘São Paulo tem alguns capítulos de sua história que são tão fantásticos, tão espantosos e tão… estranhos, que definitivamente mereceriam estar não em um livro ou jornal, mas em uma novela. De preferência, daquelas bem fantasiosas. Na cidade onde há mais ratos do que pessoas (sério, quase 15 vezes mais), onde aconteceu o único bombardeio aéreo da história do País (o ataque durou 22 dias, em julho de 1924) e onde um de seus botecos mais tradicionais proíbe casais de se beijar (no Bar Léo, se você tentar, vai ganhar uma bela de uma bronca dos garçons), chega até a ser difícil se surpreender com algo. Para o dramaturgo e roteirista Bosco Brasil, no entanto, uma notícia que saiu no Estado em 13 de maio de 1999 superou as expectativas até do paulistano mais escolado em absurdos.

Em resumo, era o seguinte: ‘o guru indiano Maharishi Mahesh Yogi vai investir US$ 1,65 bilhão para construir um edifício de 494 metros de altura e 103 andares no centro de São Paulo’. O megaempreendimento, batizado de Maharishi Tower of Peace, teria 1,3 milhão de m² ocupados por conjuntos comerciais, centro de convenções, shopping center, escritórios, hotéis, centro residencial, universidades, restaurantes e teatro. O projeto previa um sistema de transportes com ônibus, trem e metrô, além de heliporto e monotrilho (trem responsável pela comunicação entre os vários estacionamentos e a torre principal). ‘De acordo com o cronograma, a pedra fundamental será lançada no início de 2000’, sentenciava a reportagem.

O tal ‘prédio mais alto do mundo’ seria erguido no Pátio do Pari, no Brás, centro, ao lado da Avenida do Estado. Mas nunca saiu do papel. Também não saiu da cabeça de Bosco Brasil, que na época desbravava a ainda inóspita Praça Roosevelt com sua companhia teatral, depois de ter ganho os Prêmios Shell e Molière de melhor autor pelo texto de Budro, um retrato da juventude de classe média na São Paulo do fim do milênio. O tempo passou, Bosco montou outras peças, ganhou outros prêmios e ajudou a escrever oito novelas no SBT, na Record e na Globo. Prestes a estrear sua primeira novela totalmente autoral, a próxima a ocupar o horário das 19 horas na Globo, nada melhor do que recorrer aos fatos quase ficcionais do Maharishi Tower of Peace para retratar as transformações mais absurdas da São Paulo desse milênio.

‘Sempre tive um fascínio pelos prédios do centro, tipo o Copan, que misturam muita gente’, conta Bosco, que há cinco anos mora no Rio. ‘Quando pintou esse projeto megalomaníaco do Maharishi, sabia que ia superar em fantasia qualquer ficção. Pô, eles iam acabar com o Pari para fazer um edifício! E isso ficou no meu bloquinho de ideias, até que rolou essa chance de escrever uma novela. O mais engraçado é que, quando falava para o pessoal da Globo de fazer uma novela que ia ter um prédio gigantesco no centro de São Paulo com centenas de andares, me diziam que era exagerado. Mas era verdade, teve gente que propôs isso! Era uma coisa completamente doida, biruta. Tinha de virar novela.’

Intitulada Tempos Modernos, a novela de Bosco Brasil estreia dia 11 de janeiro e vai mostrar um prédio inteligente no centro da capital, chamado ‘Titan 1º’, cheio de câmeras e sensores de vigilância operados por um computador da estirpe de Hal, de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Logo no começo da história, um construtor tenta erguer um edifício ainda maior e mais megalomaníaco, o Titan 2º. ‘Esse cara quer construir um prédio no espaço onde fica a Galeria do Rock, e os lojistas se revoltam’, conta ele, sempre rindo muito da própria trama. ‘É uma brincadeira com Big Brother, mas também é sobre o momento complicado que vivemos, com tantos condomínios fechados, essa coisa paulistana de trocar a liberdade por uma sensação de segurança. É uma discussão antiquíssima, mas acho que hoje isso chegou num nível paranoico.’

A novela já está com dezenas de capítulos gravados, tanto no centro quanto na cidade cenográfica construída no Projac – sem lixo, sem usuários de crack, sem cheiro de xixi, mas ainda assim muitíssimo parecida com a original. ‘Já recriaram o Rio Ganges, por que não recriar o centro mais limpinho? É a novela da sete, né? Não tem saída. O centro melhorou bastante, mas tem de rolar um Photoshop. Novela tem de ser bonita, não é sobre as mazelas, mas para se divertir.’

RIQUEZA HUMANA

Nascido em 1960 em Sorocaba (como seu pai era juiz e ia de comarca em comarca até chegar à capital, seus seis filhos nasceram em seis cidades diferentes), Bosco começou a tomar gosto pelas letras ainda em casa, por força de duas situações um tanto inusitadas – a falta de amigos na cidade e o calor. ‘Papai tinha uma biblioteca enorme, com romances, poesias, livros de Direito. Ficava na parte de baixo da casa, e era a parte mais fresca da residência’, lembra. ‘Então, eu ficava sempre lá, era gostoso, fresquinho. Antes mesmo de já saber ler, achava aqueles livros maravilhosos. O Código Civil era o meu favorito, era tão bonitinho, tão organizadinho com aquelas colunas. Por isso, o aspecto visual sempre me chamou a atenção. Até hoje quando escrevo eu consigo abstrair o que está escrito e consigo visualizar a cena.’

O interesse pelo centro de São Paulo também veio desde pequeno, quando ia para as aulas no Colégio São Bento, e depois, nos tempos de office-boy. Não é de se estranhar que todas essas linhas – a dramaturgia, o centro, o prédio megalomaníaco, a cidade idealizada sem sujeira e sem drogados – se juntem agora em Tempos Modernos. ‘Há muito tempo eu queria contar uma história no centro de São Paulo, porque cresci ali, batendo perna. Como diz o Evangelho, onde está o seu tesouro, estará também o seu coração’, diz. ‘É um lugar marcante para mim, esse lugar meio misturado, onde mora e trabalha gente, esse lugar esquisito, com toda aquela riqueza humana. Vi também a degradação da região a partir dos anos 70, claro, mas, para mim, a São Paulo que ficou na cabeça é meio mítica, idealizada, onde a realidade e a ficção se misturam. É, literalmente, a minha cidade dos sonhos.’’

 

REVISTAS E ENTREVISTAS
Daniel Piza

Jornalismo, 300

‘Eu gostaria que os apocalípticos do jornalismo escrito (em papel ou em tela) explicassem como é possível que, na tal era do ‘bombardeio de informações’ (que mais parece um foguetório de redundâncias), duas das revistas mais sofisticadas do mundo, escritas num inglês elegante e dedicadas à análise, à crítica e a contar boas histórias em tom pessoal, com poucas embora ótimas fotos ou ilustrações, estejam vendendo mais que nunca (cerca de 1,3 milhão cada) e em diversos países. Você pode até achar The Economist presa demais ao receituário neoliberal, mas não pode lhe negar o domínio da arte da argumentação. Você pode até achar The New Yorker correta demais na política e enfeitada demais na cultura, mas não tem como dizer que não é criteriosa e criativa. O sucesso de ambas demonstra que mesmo os bem informados, ou especialmente eles, que consomem notícia em rádio, TV, internet e celular todo dia, precisam de uma visão seletiva e aprofundada ao menos por semana.

Defensores do texto curto e inculto também terão dificuldade de explicar o que tem causado a tendência consistente ainda que limitada do interesse brasileiro pelo jornalismo cultural e pelo chamado jornalismo literário. Livros, debates, iniciativas e conferências têm surgido em sequência, como se muita gente estivesse descobrindo só agora autores como John Hersey ou Truman Capote (Hiroshima e A Sangue Frio foram parar até na lista dos mais vendidos graças à coleção de mesmo nome da Companhia das Letras), Martha Gellhorn (Objetiva) ou Hunter Thompson (Conrad), Gay Talese ou Tom Wolfe – dois que palestraram por aqui neste ano. Como em toda tendência, há exacerbação, mas as vantagens recompensam largamente. Depois de duas décadas de pregação de um jornalismo de manuais de redação e lides previsíveis, eis uma glasnost; é até divertido ver que hoje a defesa da escrita antiburocrática se tornou quase consenso.

E então vemos que jornalistas escrevem livros de reportagem, perfis, biografias, livros de história, crítica e ensaio, ajudando a diminuir lacunas editoriais e a compensar a baixa produção de nossas academias, que parecem achar mais importante o que fazem para o consumo interno do que para o público educado. E vemos publicações se lançarem, como a Piauí e as versões brasileiras de Granta e Rolling Stone. E vemos livros como Elogiemos os Homens Ilustres, de James Agee (fotos de Walker Evans; Companhia das Letras), com as extravagâncias de seu estilo a serviço da descrição dos sentimentos americanos na Depressão, serem publicados – assim como as obras de George Orwell, que não precisou passar por nenhuma redação antes de se tornar o maior de todos. De Paul Theroux, mais um grande escritor de não-ficção, por sinal, acaba de sair aqui um livro de 2002, O Safári da Estrela Negra (Objetiva), excelente descrição de sua incrível viagem do Cairo até a Cidade do Cabo. Sua postura é a de um jornalista em busca dos fatos, os quais sabe complexos.

A definição de jornalismo literário é a parte chata do assunto. O termo foi inventado pelos americanos no início do século 20, mas a prática de um jornalismo com técnicas de narrativa originárias da ficção (diálogos e detalhes que criam clima ao mesmo tempo que transmitem informações) é bem mais antiga e remonta a autores como Daniel Defoe e Charles Dickens. O próprio jornalismo cultural, praticado há 300 anos numa revista como a Tatler (e pouco depois a Spectator), se consolidou como uma forma de levar conhecimento e debate para as ruas e tavernas, o que exige uma linguagem com recursos literários e temperatura jornalística – tal como Machado de Assis faria em suas crônicas e críticas. Samuel Johnson, o ensaísta, ficcionista, poeta, biógrafo e dicionarista cujo tricentenário também se comemora agora, dizia que ninguém desenvolveria um estilo se não lesse aquelas revistas.

Chamar a reportagem com estilo de ‘jornalismo narrativo’ não ajuda muito, porque qualquer matéria narra uma história; e ‘jornalismo autoral’ remete ao cinema ‘d’auteur’ dos anos 60, para o qual a história era quase um detalhe… Muita gente pensa que se trata de um jornalismo metido a literatura, ou subliteratura, e as declarações reacionárias de Tom Wolfe em sua passagem pelo Brasil soaram como comprovações disso (não perceber o prazer de ler Proust e Joyce e dizer que Picasso desenhava mal, my God!), assim como alguns textos afetados com personagens exóticos que têm aparecido na imprensa brasileira. Mas é um gênero autônomo e, como dizia Louis Armstrong sobre o jazz, se você precisa perguntar o que é, não vai entender. Pegue um texto e saberá.

Entrevistas também podem ser grande jornalismo, e há um extraordinário exemplo nas livrarias, os três volumes da conversa de Jorge Luis Borges com o jornalista argentino Osvaldo Ferrari: Sobre a Amizade e Outros Diálogos, Sobre a Filosofia e Outros Diálogos e Sobre os Sonhos e Outros Diálogos (editora Hedra). O mundo de Borges é tão rico e particular que a contabilidade de concordâncias e discordâncias é terciária. Seu gosto pelo romantismo de língua inglesa, de caráter gótico e/ou metafísico, de autores como Chesterton, Poe, De Quincey e outros, fica muito claro, embora não seja muito lembrado quando se trata de analisar sua ficção. E ele fala também de amor, política, moral. E que legal saber que ele também gostava muito de Pink Floyd The Wall.

Na revista Serrote, entre outros bons textos, há uma entrevista com outro grande autor argentino, Júlio Cortázar, feita por Antonio Trilla, que tem uma resposta relacionada a esse tema. Cortázar contou de sua conhecida paixão por jazz, disse que ouvia três discos por dia e comentou a influência do swing em seu estilo, embora jamais escrevesse com música ao fundo. Mas deixou bem claro: ‘O jazz é maravilhoso, mas a música clássica é como a grande literatura, e meu amor pelo jazz corre paralelo ao meu amor pela música clássica… Se você ouve música medieval, a música de câmara de Mozart ou os últimos quartetos de Beethoven, sabe que isso é o máximo que se pode atingir em termos de música.’ Afirmou ainda que ouvia mais clássica que jazz e que salvaria esses discos – e Béla Bartók – de um dilúvio. Não é por gostar muito de jazz ou Pink Floyd que precisamos botá-los num pedestal único. Música é música em qualquer registro, gênero e endereço.’

 

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