EVANGELHO DE JUDAS
Cristo em novas versões
‘O ‘Evangelho de Judas’, que acaba de ser lançado com grande publicidade nos
Estados Unidos, joga mais lenha numa fogueira que vem aumentando: a da
reinterpretação da vida de Cristo. É como se, de novo, houvesse interesse na
velha história, base da nossa civilização, mas contada agora de maneiras
diferentes. O escritor Nikos Kazantzakis foi por esse caminho e daí surgiu um
filme: ‘A última tentação de Cristo’ (dirigido por Martin Scorsese). Saramago
fez o mesmo. ‘O Código Da Vinci’ vai beber na mesma fonte: a dos evangelhos
apócrifos, que contam a vida de Cristo de maneiras que se afastam da visão
tradicional.
Neste sentido, o ‘Evangelho de Judas’ é dos mais drásticos. Começa na Páscoa
que precedeu a Paixão. Os discípulos rezam, oferecendo o alimento, e Jesus ri-se
deles. ‘Por que você está rindo?’ – eles perguntam. E Jesus responde que não
está rindo deles, e sim daquela estranha idéia de agradar a Deus. Os discípulos
se zangam; menos Judas, que parece saber de alguma coisa. ‘Eu sei quem você é,
de onde você veio’, ele diz, postando-se na frente de Jesus. ‘Você é do reino
imortal de Barbelo’. Aparentemente surpreso com a afirmação, Jesus diz a Judas:
‘Afasta-te dos outros, e eu te contarei os mistérios do Reino’.
O mistério que Jesus relata é que, para além das estrelas, existe um
território divino, livre da materialidade. Jesus não é filho do Deus do Antigo
Testamento, mas um descendente do terceiro filho de Adão, Set. Sua missão é
indicar aos que ainda possuem uma centelha divina o caminho de volta ao Reino.
Ele explica a Judas que estava rindo dos discípulos porque eles ainda rezavam ao
Deus do Antigo Testamento, que de fato não é amigo da Humanidade, e é antes
causa dos seus sofrimentos.
Voltando ao tempodos evangelhos apócrifos
Entra aqui a ‘missão’ de Judas: Jesus quer voltar a Barbelo, e neste sentido
precisa sacrificar ‘o homem que me envolve’, isto é, a sua aparência terrena. A
única maneira de fazer isso é aceitar a morte, e ele pede a Judas que seja o
agente desse desfecho.
Judas argumenta que poderá adquirir, assim, má reputação eterna, e descreve
um sonho: numa visão que ele teve, os outros discípulos o apedrejavam. Jesus o
tranqüiliza: ‘Levanta os teus olhos para a nuvem, para a luz e as estrelas que a
rodeiam. A estrela que indica o caminho é a tua estrela’. Judas aceita o
desafio, e concorda em entregar Jesus aos sumos sacerdotes.
Parece complicado? Para um leitor moderno, talvez. Mas cada vez mais estamos
voltando a climas que lembram os séculos III e IV da era cristã – quando as
divergências teológicas eram grandes, e pululavam interpretações sobre a vida e
a pessoa de Cristo.
É o clima dos chamados evangelhos apócrifos. ‘O Código Da Vinci’, engenhoso
best-seller, entronca nos apócrifos que falam de um Cristo muito humano,
carnalmente ligado a Madalena – a ponto de ter filhos com ela e de entrar
(segundo o ‘Código’) na linhagem dos reis franceses!
A imaginação humana não tem limites; e, em toda a história do Ocidente, não
há nada que se pareça com a história de Jesus Cristo. Mas a corrida ‘para fora’
da interpretação tradicional tem um outro motivo: a visão ortodoxa romana é a
mais difícil de entender, ou pelo menos de explicar sob um ponto de vista
racional. Em que explicação racional, com efeito, cabe a idéia de que Jesus
Cristo foi (ou é) ao mesmo tempo Deus e homem? Como acreditar num deus que se
deixa crucificar entre dois ladrões? E na doutrina da Trindade?
Face a essa história implausível, era tão mais fácil entender e aceitar
outras interpretações! Como a que diz que a humanidade do Cristo era só uma
aparência externa: ele apenas pedira emprestada uma figura de homem, pronto a
livrar-se dela quando chegasse a hora. No extremo oposto fica a ‘Vida de Jesus’
de Ernest Renan, grande sucesso do século XIX – Jesus como um homem
extraordinário, modelo de ética, mas sem nada de divino.
Um mistério que não cabe numa explicação racional
E no entanto, a linha que acabou predominando, pelos séculos afora, foi a
mais difícil de todas: o Cristo simultaneamente Deus e homem.
Alguém dirá que isso aconteceu porque a Igreja reprimiu as ‘heresias’. Mas
não havia Igreja repressora no tempo em que foram escritos os primeiros
evangelhos. E ali, naqueles quatro textos, há um mistério que se recusa a ser
amarrado pela lógica.
O fascínio daqueles textos talvez resida nisso: o contraponto entre a
humanidade do Cristo e alguma coisa que vai além do humano. Às vezes ele se
comporta da maneira mais prosaica – sente sede, cansaço. Outras vezes, faz parar
uma tempestade no mar. Do fundo dos tempos, ele continua a nos
desafiar.’
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