NEXO TEXTUAL
‘Todos, exceto…’
‘NAS PALESTRAS QUE FAÇO PELO PAÍS afora, volta e meia apresento à platéia frases ou parágrafos inteiros em que há problemas no emprego dos elementos que estabelecem o nexo textual. Esses elementos são velhos conhecidos dos leitores habituais deste espaço: são palavras e expressões como ‘embora’, ‘ainda que’, ‘portanto’, ‘porém’, ‘mas’, ‘como’, ‘caso’, ‘se’ etc. O conhecimento do emprego desses termos e locuções é decisivo para que se entendam e se definam claramente as relações que se estabelecem entre as idéias apresentadas em pronunciamentos orais ou escritos.
Um conector que volta e meia discuto em minhas andanças é ‘exceto’. Que relação se estabelece com essa preposição? Vejamos um exemplo prático: ‘Foram para a Suíça no avião da Varig todos os convocados que estavam no Brasil, exceto Juninho Pernambucano’. De acordo com a frase, onde estava Juninho Pernambucano? No Brasil, uai! Dos aqui presentes, só ele não viajou para a Suíça no avião da Varig. Como se pode chegar à conclusão de que Juninho estava no Brasil? Justamente pela preposição ‘exceto’, cujo papel é excluir do universo anterior (formado pelos convocados que estavam no Brasil) o termo por ela introduzido (Juninho Pernambucano).
Quando discuto frases como essa, muita gente me diz que há incoerência no emprego do par ‘todos/exceto’. O argumento? Se se diz ‘exceto’, então não são ‘todos’. Não é bem assim. Se assim fosse, muitas vezes seríamos obrigados a fornecer listas intermináveis. No caso da viagem dos convocados, em vez de dizer que foram todos, exceto Juninho, teríamos de arrolar os nomes de todos os que foram.
O problema não está no par ‘todos/exceto’, não, mas no que às vezes se faz com ele. É clássica uma questão do vestibular da Unicamp, baseada neste trecho, extraído (e adaptado) do ‘Termo de garantia’ de um produto industrial: ‘A empresa garante o produto contra todos os defeitos de fabricação, exceto os decorrentes de uso indevido’. Que são ‘defeitos decorrentes de uso indevido’, caro leitor? Um dos mais conhecidos é o da voltagem ‘trocada’ (220 volts em vez de 110, por exemplo). O aparelho ‘explode’, e a culpa, obviamente, não é do fabricante, que, justamente por isso, não se responsabiliza pelo estrago.
Pois agora volte ao texto do ‘Termo de garantia’. Que se lê ali? Que a empresa garante o produto contra todos os defeitos de fabricação, exceto… Epa! Se o texto diz ‘exceto’, o que vem depois deve ser algo retirado do universo anterior, e esse universo é formado pelos ‘defeitos de fabricação’. Moral da história: ao pé da letra, os ‘defeitos decorrentes de uso indevido’ fazem parte do universo de ‘defeitos de fabricação’. Fazem mesmo? No texto, sim; na vida real, não. Tomado ao pé da letra, o texto é contraditório.
O equívoco de quem redigiu o texto foi querer estabelecer um nexo que não existe: defeito de fabricação é uma coisa; defeito decorrente de uso indevido é outra coisa, bem diferente. O emprego da expressão ‘de fabricação’ elimina a possibilidade de que se excetuem desse universo os defeitos ‘decorrentes de uso indevido’, que pertencem a outra categoria. Definitivamente, os defeitos decorrentes de uso indevido não fazem parte do universo formado pelos defeitos de fabricação.
A esta altura, você talvez queira saber como poderia ter sido redigido o texto. Vejamos duas das inúmeras possibilidades: a) ‘A empresa garante o produto contra todos os defeitos de fabricação. Essa garantia não se estende a defeitos decorrentes de uso indevido’; b) ‘A empresa garante o produto contra todos os defeitos de fabricação. A empresa não garante o produto contra defeitos decorrentes de uso indevido’. Não se incomode com a repetição, necessária para a clareza.
A quantidade de textos jurídicos, contratos, regimentos internos etc. em que se verifica o mau emprego de palavras como ‘exceto’, ‘e’, ‘ou’, entre outras, é muito maior do que se imagina. O resultado disso, muitas vezes, é um arrastado embate nas diversas instâncias da nossa Justiça.
Até domingo. Um forte abraço.’
FAMA DESPERDIÇADA
Eu e Faustão, Faustão e eu
‘QUANDO A PRODUÇÃO DO FAUSTÃO telefonou, não consegui imaginar o que eles queriam comigo. Certamente não era para participar do ‘Arquivo confidencial’. Se Faustão quisesse contar minha vida na TV, faria uma edição especial das ‘Videocassetadas’. Minha vida é uma videocassetada. Mas isso não interessa a ninguém. Talvez a idéia fosse me convidar para o ‘Se vira nos 30’ e enfrentar o desafio de falar alemão durante 30 segundos seguidos. Preparei-me para dizer não. Meu conhecimento de alemão não passa de 29 segundos. Mas a proposta era outra:
– É para ser jurado do quadro ‘A dança dos famosos’.
‘A dança dos famosos’ é a versão brasileira de um formato que está dando certo na televisão do mundo inteiro. Celebridades não familiarizadas com o mundo da dança dispõem-se a testar seu aprendizado diante das câmeras dançando samba, bolero, fox-trot e até uma coisa estranhíssima chamada paso doble. É uma fórmula infalível. Divertido, atraente, competitivo, o programa faz todo o mundo imaginar que um dia também pode ser Fred Astaire ou Ginger Rogers. Diz-se que, quando o quadro entra no ar, a audiência do Faustão dobra.
Desprevenido, sem me preparar para o caso de o convite não ser para o ‘Se vira nos 30’, disse sim. E me arrependi no minuto seguinte.
E agora? O que eu vou vestir? E se eu engasgar? E se a Preta Gil brigar comigo? E se eu não souber o que dizer? E se eu não souber julgar? E se eu falar besteira? Enfim, vão descobrir que sou uma fraude.
Amigos-da-onça me estimularam:
– Vai lá, no mínimo você terá assunto para uma coluna.
Tolo, acreditei. E agora posso garantir: ir ao Faustão não rende coluna. Não aconteceu absolutamente nada – a não ser uma fama súbita com motoristas de táxi, gerentes de banco e jornaleiros em geral. E minha tia, que ficou orgulhosíssima de meu sucesso. Ir ao Faustão é prova de sucesso. Mas os bastidores, suposto assunto para a coluna, não renderam nada.
O programa é organizadíssimo. Você não se encontra nem com quem vai participar de outros quadros. Carmen Verônica e Iris Bruzzi estavam lá, o que talvez rendesse uma coluna, mas não cheguei nem perto delas. Bem, convivi durante duas ou três horas com a Totia Meirelles, o que me deixou feliz da vida, mas também não rendeu nada (vale contar que a televisão que ela tem até hoje no quarto foi ganha num quadro do mesmo Faustão há mais de dez anos? Acho que não). Teve ainda o garçom que nos servia água e, na saída, passou-nos um cartãozinho (‘Leve a pizza do Faustão para o seu evento’). E só. No dia seguinte, fui um desastre na expectativa dos que queriam saber o que corre por trás das câmeras.
– Conheceu a Lucimara?
– Hummm… Não.
– O Faustão é simpático?
– Hummm… É.
– A Mariana do ‘BBB’ é bonita mesmo?
– Hummm… É.
– A Nívea Maria fez por merecer nota 10?
– Hummm… Fez.
Minha experiência no Faustão foi totalmente monossilábica. Desperdicei meus 15 minutos de fama.’
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O Globo
Sábado, 27 de maio de 2006
OBRAS PERECÍVEIS
. biblioclastia .
‘André Bazin via na arte um esforço do homem para escapar ao tempo e, portanto, à morte. Como sabemos, porém, não há obras eternas criadas pelo ser humano. Todas estão sujeitas às mesmas circunstâncias e acasos que determinam nosso destino. Ainda que nos permitam transformar o transitório em duradouro, livros – como quadros, esculturas e fotografias – são perecíveis. Nenhuma obra, por mais transcendental que se pretenda, pode prescindir do objeto, mundano e perecível, onde será registrada. Mesmo os tratados de metafísica não existiriam sem o papel (ou, hoje em dia, sem um computador). Sempre estarão, portanto, sujeitos à destruição.
A decomposição, os acidentes e os desastres naturais arrasaram inúmeros textos ao longo da História. O aprimoramento das técnicas de conservação e armazenagem previne, muitas vezes, os estragos decorrentes destes fatores involuntários. Mas adianta pouco contra outra grande causa (talvez a principal) da destruição de livros: a ação deliberada do homem.
O recém-lançado ‘História universal da destruição dos livros’ (Ediouro), do venezuelano Fernando Báez, é uma extensa compilação de casos de destruição de livros, da antiga Mesopotâmia ao Iraque de hoje em dia. Especialista na história de bibliotecas, Báez fala de enchentes, terremotos, naufrágios e incêndios acidentais, mas a destruição voluntária de livros é seu assunto principal. ‘O livro não é destruído como objeto físico, e sim como vínculo da memória’, escreve. ‘Um livro é destruído com a intenção de aniquilar a memória que encerra, isto é, o patrimônio de idéias de uma cultura inteira’.’
Berilo Vargas
Página virada?
‘Deu na revista de domingo do ‘New York Times’. O livro, como objeto, começou a perder o que se poderia chamar de sua corporalidade – e seu lugar na prateleira dos utensílios do espírito. Fóssil de estágios pretéritos da nossa civilização, estaria condenado pela marcha da História a dissolver-se nas telas de uma gigantesca e abstrata biblioteca universal, já em frenético processo de construção por mecanismos de busca como Google, Yahoo, Microsoft e outras entidades fantasmagóricas que tecem e controlam a www.
Pode ser que a época do livro esteja, de fato, chegando ao fim. Se é assim, para onde irá o hábito da leitura? Como criar vínculos sentimentais com textos cuja materialidade se resume a sombras pontilhadas numa tela fria? Já tentaram ler o ‘Dom Casmurro’ online, por gosto e não por dever de ofício? Impossível deixar-se levar por muito tempo no mundo sem fronteiras da internet pelo passo miúdo da prosa machadiana.
Tempos atrás um livro debaixo do braço era parte da bagagem do universitário. Professores repetiam uma frase de efeito disfarçada de conselho: ‘Não se absorve a sabedoria pelo sovaco’. Enganavam-se. Impossível apaixonar-se por um autor, qualquer autor, ou por um livro, qualquer livro, sem carregá-lo debaixo do braço. Lemos com os olhos, com a mente – e com as axilas. E faz sentido: não são os livros nossas muletas mentais?
Veja-se o caso de ‘Os Sertões’. Dava quase tanto prazer carregar de um lado para outro a volumosa obra-prima de Euclides, devidamente fechada, deixá-la na mesa ao alcance da mão, pegá-la de volta para abri-la e fechá-la sem motivo aparente, pronunciar em silêncio o nome sagrado do autor e o título consagrado do livro, quanto sentar-se para ler mais uma vez que o sertanejo não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral, e descobrir outras novidades. O amor à literatura não terá por base a leitura como experiência tátil, manual, axilar?
O texto literário online tem o grave defeito de ser arredio ao tato e aos outros sentidos. Não se pode pegá-lo, segurá-lo, apalpar-lhe a pessoa física, aspirar-lhe o cheiro de papel velho ou de papel novo que, em muitos casos, dá uma dimensão inesperada ao conteúdo, e fica para sempre associado a uma história, a uma emoção que nos vem subitamente, ao dobrarmos a esquina de uma página, com a surpresa de um ritmo, de uma palavra, de uma imagem coruscante.
A busca do prazer estético requer do leitor base sólida, na cabeça e nas mãos. Escrever bem, e ler na mesma altura, é atividade sofregamente artesanal, como abotoar uma blusa ou desembrulhar um bombom.
Como baixar Proust das prateleiras do ciberespaço e torná-lo apetecível a quem nunca leu um parágrafo seu? Quem teria testa para encarar os sete volumes de ‘Em busca do tempo perdido’ na frigidez mineral de uma tela? Como quebrar a arrogância do ‘Ulisses’ joyciano sem erguer o peso de suas mil páginas? Será a conversão do livro em entidade virtual o fim da leitura por esporte?
No futuro, ninguém sabe. Mas por ora é negócio desligar nossas bibliotecas virtuais e sair de casa com um livrinho, digamos, do Mário Quintana, para tirá-lo do bolso no metrô e ler numa página aberta ao acaso, só com a energia dos dedos, que ‘todos esses que aí estão, atravancando meu caminho, eles passarão, eu passarinho!’
Após a invasão, desastre cultural em Bagdá
Fernando Báez não leva muito longe esta associação (correta) entre livros e memória. Está mais interessado em relatar do que em analisar atos de destruição, o que faz de sua história universal uma coletânea numerosa e interessante, mas elíptica a ponto de tornar-se confusa. Os pontos estão lá, mas a ligação fica por conta do leitor.
Ele dedica seu comentário mais extenso ao saque e destruição em 2003 da Biblioteca Nacional do Iraque, em Bagdá, um desastre em que se perderam para sempre inúmeros registros históricos do país, além de um milhão de livros.
O autor esteve no país semanas depois do ataque, como observador da Unesco. Atribui a culpa pela destruição à negligência dos americanos, que não protegeram o acervo, e à tirania de Saddam Hussein, que fez dos edifícios oficiais, identificados com o regime, pontos para onde convergiu o ódio dos iraquianos depois que o governo foi derrubado.
– As perdas são incalculáveis. Antes do incêndio, livros raros foram roubados e hoje são vendidos nos mercados de rua. Há iraquianos que os compram para devolvê-los às bibliotecas. A negligência do Exército americano foi criminosa. Agora, me recusaram um visto para entrar nos Estados Unidos e fazer palestras. É impossível dizer a verdade nos EUA com Bush – diz o pesquisador.
Livros de Jorge Amado foram queimados no Estado Novo
Os ataques à cultura são tão antigos quanto a civilização, e sua ocorrência não diminui com o passar dos anos. A lista de governos que destruíram livros durante o século XX é longa e dela consta, por exemplo, o Estado Novo de Vargas, que levou à fogueira em 1937 1.694 livros de Jorge Amado.
Nada comparável, no entanto, aos milhões de livros de autores judeus queimados pelos nazistas. As fogueiras públicas precederam os fornos do Holocausto, numa demonstração da frase de Heinrich Heine que Báez usa como epígrafe: ‘Onde queimam livros, acabam queimando homens’.
Não são os ignorantes, diz o venezuelano, os únicos promotores da barbárie. Para Báez, intelectuais são grandes destruidores de livros. Seus exemplos vão de eruditos religiosos ao ministro da Propaganda nazista Joseph Goebbels, leitor apaixonado dos clássicos gregos.
O futuro, acredita Báez, permitirá a adição de novos capítulos ao seu livro. As bibliotecas virtuais, em sua opinião, não estão a salvo de ataques, saques e depredações.
– Nos próximos anos, hackers destruirão muitos livros digitais. A digitalização não é a salvação – afirma.’
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