NOBEL DA PAZ
Claudia Sarmento
Nobel da Paz enfurece a China
As advertências prévias de Pequim não surtiram efeito: o Nobel da Paz de 2010 foi concedido ontem a um inimigo do regime, o dissidente Liu Xiaobo, de 54 anos, primeiro chinês a receber o prêmio. O comitê que anuncia a premiação em Oslo citou ‘sua longa e não violenta luta por direitos humanos fundamentais na China’ para justificar a escolha. O professor, crítico literário, ensaísta e ativista político, está preso desde o último Natal, condenado a 11 anos de prisão sob a acusação de ‘incitar a subversão contra o poder do Estado’ e ainda não foi informado da premiação. Além de ameaçar as relações bilaterais com a Noruega, poucas horas após o anúncio, a China convocou o embaixador Svein O.
Saether em protesto à concessão do prêmio. Vencedor do Nobel da Paz em 2009, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, pediu à China, através de um comunicado, que liberte Liu tão logo possível.
‘Nos últimos 30 anos, a China fez notáveis progressos em reformas econômicas e na melhoria da vida de seu povo, retirando centenas de milhões da pobreza. Mas este prêmio nos lembra que a reforma política não seguiu a mesma velocidade e que os direitos humanos básicos de cada homem, mulher e criança têm de ser respeitados’ dizia o texto.
A Anistia Internacional, além de vários outros organismos de defesa dos direitos humanos espalhados pelo mundo, engrossaram o coro e pediram que o dissidente seja libertado.
O anúncio — bem menos polêmico que o prêmio concedido a Obama — foi um recado à ditadura chinesa: apesar de sua crescente importância econômica, esperase que a segunda maior economia do mundo reforme sua política de direitos humanos e lembre que está mais sujeita a julgamentos internacionais.
‘O novo status da China deve implicar em maior responsabilidade.
A China viola vários acordos internacionais dos quais é signatária. O artigo 35 da Constituição chinesa estipula que os cidadãos gozem de liberdade de expressão, imprensa, reunião, associação, desfile e manifestação.
Na prática, os chineses estão sendo claramente privados desses direitos’, disse um comunicado do Comitê do Nobel.
Na internet, apenas a versão oficial
A reação de Pequim foi dura. Para o governo, a premiação é ‘uma blasfêmia contra os próprios princípios do Nobel’ e acionou a máquina estatal da censura, a chamada ‘Muralha de fogo’ que, apesar das pressões, está cada vez mais poderosa. A internet é controlada, e fóruns como Twitter e Facebook são proibidos, tornando-se difícil avaliar a repercussão no território chinês. A transmissão do prêmio pela CNN, por exemplo, foi bloqueada.
O microblog sina.com, espécie de Twitter chinês, também deletou qualquer menção à honraria.Tentativas de enviar mensagens de texto pelo celular com citações a Xiaobo falharam.
Somente no fim da noite na Ásia, horas após o prêmio, sites de notícia chineses começaram a mencionar o anúncio, enfatizando apenas o protesto do governo chinês.
— Temos que falar pelos que não podem — disse o presidente do Comitê do Nobel, Thorbjoern Jagland.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Ma Zhaoxu, não poupou críticas à escolha: — Liu Xiaobo foi condenado por violar a lei. Suas ações são diametralmente opostas aos princípios do Nobel, que deve ser dado a quem promove a paz entre os povos, a fraternidade internacional e o desarmamento.
Liu esteve entre os estudantes que lutaram pela democracia em 1989. Foi um dos líderes que negociaram a retirada dos manifestantes da Praça da Paz Celestial quando tanques atropelaram o movimento. Desde então, foi preso várias vezes, enviado a um ‘campo de reeducação’, banido do mundo acadêmico e impedido de ter seus textos publicados na China. Mesmo assim, é um dos autores do manifesto conhecido como ‘Carta 08’, em defesa da liberdade política e contra o monopólio do Partido Comunista, que se espalhou pela internet e foi assinado por milhares de pessoas — inspirado no movimento pela democracia na Tchecoslováquia na década de 70.
Sua mulher, a poetisa Liu Xia, que vive em Pequim, afirmou não saber se o dissidente seria avisado do prêmio, porque não tem acesso a um telefone na prisão de Jinzhou, em Liaoning, no norte do país. Ela conseguiu dar declarações curtas a veículos internacionais e avisou que a polícia estava em sua casa e a levaria a Jinzhou.
‘Espero que a comunidade internacional aproveite a oportunidade para pressionar o governo chinês a libertar meu marido’, afirmou ela, por um comunicado da ONG Freedom Now.
A nomeação de Liu torna-o — pelo menos oficialmente — o primeiro chinês agraciado pelo Comitê do Nobel: em 1989, o Dalai Lama recebeu o prêmio, mas apesar de visto como cidadão chinês por Pequim, recebeu-o na condição de refugiado político na Índia.
Outro a ter enfrentado a fúria do governo chinês foi o escritor Gao Xingjian, laureado com o Nobel de Literatura em 2000. Vivendo na França, foi considerado um escritor francês.
Gilberto Scofield Jr.
Nobel expõe situação de 21 mil presos políticos
Para o autoritário governo da China, que gosta de dizer que não há garantia maior de respeito aos direitos humanos do que o crescimento econômico do país, responsável por tirar da miséria cerca de 300 milhões de pessoas nos últimos 30 anos, o Nobel da Paz dado ao dissidente Liu Xiaobo é praticamente um embaraço externo. Internamente, a censura à mídia estatal, às emissoras internacionais e à internet manterão o nome de Liu — e de todos os outros dissidentes — longe do conhecimento do chinês comum.
E graças a um sistema educacional que costuma poupar Pequim e culpar outros países pelas mazelas chinesas desde a primeira Guerra do Ópio (1839 a 1842), os poucos sites de discussão que ousaram comentar o Nobel foram bombardeados de mensagens de chineses que consideram a premiação ‘uma tentativa do Ocidente de humilhar a China e mantê-la no atraso’.
Mais de um bilhão controlados pelo governo Segundo a Dui Hua — ONG voltada para a libertação de dissidentes na China — o país possuía 21.845 presos políticos até junho: de participantes dos protestos que culminaram no massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989, até dissidentes que se opuseram à realização das Olimpíadas de Pequim, em 2008, e blogueiros que reclamam das violações de direitos.
Além da censura pura e simples, o governo da China controla o sistema judiciário, limitando o direito de defesa (há 120 mil advogados para 1,3 bilhão de pessoas), cerceia a liberdade religiosa (todas as autoridades religiosas se reportam ao Partido Comunista da China) e restringe a organização de grupos.
Pouco se combate o desrespeito e o preconceito contra minorias étnicas, os abusos na política de controle de natalidade por governos locais, as prisões arbitrárias de quem protesta sobre problemas ambientais ou corrupção no governo, além dos abusos trabalhistas de uma mão-de-obra que desconhece o que sejam férias, folgas ou respeito a horas trabalhadas.
A lista de dissidentes presos, sob prisão domiciliar ou sob estreita supervisão da polícia da China inclui ainda outros nomes desconhecidos dos chineses, apesar de só conhecidos por entidades de direitos humanos no exterior.
Como o do jornalista Shi Tao, condenado a 11 anos de prisão em 2005 por ‘revelar segredos de Estado de forma ilegal’.
Seu nome foi entregue ao governo pela Yahoo após Shi divulgar na internet medidas de segurança elaboradas pelo PCC, às vésperas do 15oaniversário do massacre da Praça da Paz Celestial.
A lista inclui ainda Gao Zhisheng, advogado famoso por defender camponeses expulsos de suas terras para a construção de empreendimentos imobiliários; Chen Guangcheng, o ativista cego que aprendeu advocacia para defender mulheres forçadas a fazer abortos; e a ativista Shuang Shuying, presa por reclamar das indenizações a moradores que perderam casas nas obras das Olimpíadas.
Gilberto Scofield Jr. foi correspondente do GLOBO em Pequim de 2004 a 2008
ELEIÇÕES
Cristiane Jungblut
Atrás de Deus e de Marina
O primeiro dia de propaganda eleitoral na TV e no rádio no segundo turno da campanha presidencial deixou claro que os candidatos do PT, Dilma Rousseff, e do PSDB, José Serra, estão dispostos a ir para o confronto nesta fase. Os dois disseram que são a favor da vida e mencionaram Deus, mas foi o programa de Serra que citou diretamente a polêmica questão do aborto e ainda usou a imagem de mulheres grávidas. O programa de Dilma, numa ‘tática do medo’, afirmou que num governo Serra ou no do ex-presidente Fernando Henrique, o Brasil não teria programas como o Bolsa Família, o Luz para Todos, o Minha Casa, Minha Vida e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os dois candidatos fizeram referências a Marina Silva (PV), candidata derrotada no primeiro turno.
Tucano na TV: ‘valores cristãos’
Dilma afirmou que fará uma campanha de ‘valorização da vida’ e que está ‘sofrendo na pele’ uma campanha caluniosa. Já Serra disse que sua campanha defenderá os ‘valores cristãos’, enquanto o locutor ressaltou que o tucano ‘sempre condenou o aborto e defendeu a vida’ e nunca se envolveu em escândalos. Os dois agradeceram os votos recebidos no primeiro turno e elogiaram Marina.
O programa do tucano mostrou que o PT foi contra o Plano Real e não votou pela eleição de Tancredo Neves, em 1985. Serra também explorou a falta de experiência política de Dilma. O locutor chegou a comparar Dilma ao ex-presidente Fernando Collor, afirmando que o Brasil já tinha esgotado sua cota de eleger ‘desconhecidos’. Mas foi a questão religiosa a mais explorada.
— Quero nesse segundo turno, acima de tudo, uma campanha em defesa da vida, uma campanha cheia de futuro e esperança no Brasil, com um compromisso com os nossos valores mais sagrados. E vamos debater com muita clareza qual dos dois modelos de governo é melhor para o nosso país. Estou sofrendo na pele uma das campanhas mais caluniosas que o Brasil já assistiu. Mas, igual ao presidente Lula, que também foi vítima de calúnias, não me afastarei do rumo certo — disse Dilma.
O próprio presidente Lula apareceu, defendendo Dilma: — O que vocês estão vendo acontecer com a Dilma aconteceu comigo no passado. Quando pessoas saíram do submundo da política mentindo ao meu respeito: dizendo que eu iria fechar as igrejas, mudar a cor da bandeira.
A locutora do programa do PT diz que Dilma está sendo vítima de uma campanha caluniosa na internet, ‘da corrente do mal’, mas diz que a petista é uma ‘mulher honesta e que respeita as religiões’. Ela pede às pessoas que entrem no site da campanha e respondam às mensagens com outra mensagem, a ‘corrente do bem’.
Serra disse que quer fazer um ‘governo de união’ e defender os ‘valores da família brasileira’. O locutor ressalta que Serra ‘sempre condenou o aborto’. Em seguida, o programa explora imagens de uma grávida, mostrando o programa ‘Mãe Brasileira’, do governo de São Paulo, porque ‘o dom da vida é o mais bonito e o mais sagrado que a gente recebe’.
— Quero ser um presidente com postura, equilíbrio e que defenda os valores da família brasileira, os valores cristãos, a democracia, o respeito à vida e ao meio ambiente.
Agora, somos esse sentimento de união. A união de todos os brasileiros de bem. Você me conhece: não mudo de opinião em véspera de eleição — disse Serra, acrescentando em outro momento: — Com Deus, com amor no peito pelo Brasil, braços dados, cabeça erguida e o coração leve, vamos à vitória pela Presidência e pelo Brasil.
Os dois programas também mostraram governadores e parlamentares eleitos. Dilma diz que tem o apoio de 11 dos 18 governadores já eleitos.
— Quero começar este programa agradecendo a Deus por me ter concedido uma dupla graça: ter sido a candidata mais votada no primeiro turno e ter a oportunidade agora de discutir melhor minhas propostas e de me tornar ainda mais conhecida. Chamo sua atenção para o fato: se a gente somar meus votos com os da candidata Marina Silva, a gente vê que cerca de 67% dos brasileiros querem uma mulher na Presidência.
O programa do PSDB mostrou os governadores eleitos Geraldo Alckmin (SP), Antonio Anastasia (MG), Beto Richa (PR) e Raimundo Colombo (SC), além do senador eleito Aécio Neves (MG).
— Queria me congratular com a Marina Silva pela votação expressiva.
Ela contribuiu para o jogo democrático no Brasil. Com Deus, com amor no peito pelo Brasil, braços dados, cabeça erguida e o coração leve. Vamos à vitória pela Presidência e pelo Brasil — afirmou Serra.
O locutor do programa tucano diz que o PT de Dilma ficou contra Tancredo Neves e o Plano Real: ‘a Dilma, ninguém sabe, ninguém viu’.
Logo depois do almoço, o presidente Lula gravou mensagens para o programa eleitoral de Dilma e para as campanhas dos aliados que disputam o segundo turno. O compromisso, durante o expediente, obrigou o Palácio do Planalto a divulgar quatro versões para a agenda de Lula. Parte dos compromissos previstos para a tarde de ontem foi cancelada para que Lula se dedicasse às gravações, no estúdio montado pelo PT.
COLABOROU: Luiza Damé
BOLÍVIA
Janaína Figueiredo
Lei que ameaça imprensa é aprovada na Bolívia
Em mais um capítulo da disputa entre meios de comunicação e governos da região, o Senado boliviano aprovou ontem uma lei antirracista considerada uma ameaça à liberdade de expressão pela imprensa do país. Apesar dos protestos realizados nos últimos dias por jornalistas e diários, entre eles marchas e greves de fome, o Senado, controlado pelo Movimento ao Socialismo (Mas) liderado pelo presidente Evo Morales, deu sinal verde à iniciativa, pouco depois promulgada pelo Executivo. Importantes dirigentes do setor afirmaram que a nova lei representa um grande risco para os jornalistas e para as empresas, que poderiam ser punidas caso divulguem informações consideradas racistas.
— Vamos iniciar uma campanha para recolher assinaturas e tentar anular esta lei — contou ao GLOBO Pablo Zenteno presidente da Confederação de Trabalhadores de Imprensa.
Segundo ele, ‘os artigos 16 e 23 da nova lei representam um claríssimo ataque à liberdade de imprensa porque buscam censurar os meios de comunicação’.
Os artigos mencionados foram questionados pela oposição durante as mais de 13 horas de debate no Parlamento. O artigo 16 estabelece que ‘o meio de comunicação que autorizar e publicar ideias racistas e discriminatórias poderá sofrer sanções econômicas e a suspensão de sua licença de funcionamento, sujeita à regulamentação’. Já o artigo 23 determina que ‘quando o fato (de discriminação ou racismo) for cometido por um trabalhador de um meio de comunicação, ou pelo proprietário de um meio, não poderá alegar-se imunidade’ se for apresentada uma denúncia ou realizado um julgamento.
Sessenta jornalistas em greve de fome Para o governo Morales, a nova lei é ‘um passo no caminho da descolonização da Bolívia’.
— Esta lei vai acabar com esse ódio e essa ofensa que suportamos (os indígenas) — enfatizou o presidente.
O projeto foi apresentado em julho pelo deputado Jorge Medina, primeiro congressista negro da História da Bolívia. O documento diz que o principal objetivo da lei é ‘estabelecer mecanismos e procedimentos para a prevenção e a punição de atos de racismo e de toda forma de discriminação’.
— O acalorado debate entre maioria e minoria mostra que a liberdade de expressão está plenamente garantida — declarou o presidente do Senado, René Martínez.
Mas para um expressivo grupo de empresas e jornalistas locais, a iniciativa busca, principalmente, limitar a atividade do setor. Esta semana, vários jornais se uniram aos protestos e publicaram sua primeira página sem notícias, com a seguinte legenda: ‘Não existe democracia sem liberdade de expressão’.
Segundo Amalia Pando, da rádio Erbol, ‘só nos resta esperar que esta lei não seja uma armadilha para os jornalistas’. Atualmente, cerca de 60 jornalistas estão em greve de fome, segundo o jornal ‘La Razón’.
Jornalistas acossados na região
As principais medidas adotadas por governos da América do Sul que atingiram recentemente a mídia:
ARGENTINA: O governo de Cristina Kirchner está em pé de guerra com parte da imprensa argentina desde 2008. Dentre os principais pontos de atrito estão a Lei de Serviços Audiovisuais, que tenta limitar o poder dos grandes grupos do setor, e a denúncia formal na Justiça apresentada por Cristina no mês passado contra o ‘Clarín’ e o ‘La Nación’ por uma suposta apropriação ilegal da fábrica de papel-jornal Papel Prensa.
BOLÍVIA: Os jornalistas criticam dois artigos da lei contra o racismo, sancionada ontem por Evo Morales.
No primeiro deles, a concessão de meios de comunicação que incorrerem em discriminação pode ser suspensa. Um outro artigo acaba com a imunidade dos jornalistas, que poderão ser julgados ante a Justiça por racismo.
COLÔMBIA: Os dois mandatos do presidente Álvaro Uribe foram abalados por escândalos envolvendo intercepções telefônicas ilegais de jornalistas. O ex-presidente assumiu nesta semana sua responsabilidade no caso.
EQUADOR: Rafael Correa propôs uma lei de comunicações que foi apelidada pela mídia local de ‘lei da mordaça’. O documento, que já passou por várias revisões, estabelece, por exemplo, que qualquer pessoa pode solicitar à Justiça a suspensão de uma investigação jornalística ao se considerar prejudicada pelas informações publicadas por um jornal ou divulgadas por um canal de TV ou emissora de rádio.
Além disso, criaria um Conselho de Comunicação com forte ingerência do governo. A lei ainda não foi aprovada pelo Congresso.
VENEZUELA: Dentre as principais ofensivas de Chávez à imprensa, constam a não-renovação da licença da RCTV, acusada pelo governo de participar do golpe de 2002; o fechamento de dezenas de emissoras de rádio consideradas de oposição e a pressão sobre a Globovisión, que, segundo o presidente, promove ‘terrorismo mediático’. O governo Chávez pretende ainda aprovar uma lei sobre delitos de mídia, que representa, segundo jornalistas locais, um grave mecanismo de autocensura.
HISTÓRIA
Roberta Jansen
O abolicionista das imagens
Numa época em que não havia televisão e a fotografia ainda era muito rara, os chargistas eram os reis da imagem na imprensa diária.
Por meio deles, se conhecia as feições das pessoas públicas, as cenas de acontecimentos políticos e até se fazia denúncias graves. Um dos maiores nesta arte foi Angelo Agostini, cujo centenário de morte é celebrado este ano. De 1864 a 1907, num período de intensas mudanças políticas e econômicas no Brasil, ele produziu quase ininterruptamente e foi o grande desenhista da luta contra a escravidão.
— É um momento de transição do Brasil em vários aspectos — sustenta o historiador Gilberto Maringoni, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cuja tese de doutorado foi sobre o chargista. — Do trabalho escravo para o assalariado, do Império para a República, da imprensa artesanal para a industrial.
Agostini vive nesse período e é isso que ele desenha.
Anticlerical e defensor do divórcio
Nascido em 8 de abril de 1843, na Itália, Agostini se mudou com sua família para o Brasil, mais especificamente para São Paulo, em 1859, durante o reinado de D. Pedro II. Na capital paulista, ele fundou duas revistas ilustradas de curta duração, ‘Diabo coxo’ e ‘Cabrião’. Logo ficou claro que o italiano, para não fugir ao estereótipo, tinha posições políticas fortes. E fazia questão de evidenciá-las em seu trabalho. Anticlerical fervoroso, favorável ao divórcio, defensor da República, Agostini se notabilizou, principalmente, por sua luta contra a escravidão.
Nas palavras do próprio Joaquim Nabuco, a ‘Revista Ilustrada’, na qual Agostini desenhava, era ‘a bíblia da abolição dos que não sabem ler’. Os desenhos dos castigos impostos aos escravos tiveram, segundo especialistas, um impacto por vezes superior ao dos relatos orais ou escrito, sobretudo em regiões onde o contato com a escravidão não era tão direto.
— O que mais teve impacto foram seus desenhos da campanha abolicionista — avalia Maringoni, que falou sobre o tema no seminário ‘Angelo Agostini cem anos depois’, na Casa de Rui Barbosa, realizado em setembro.
— Com crueza de traço, ele revela as torturas, os flagelos, todo tipo de sofrimento imposto aos escravos, com um impacto grande na corte, como uma denúncia, quase um escândalo, uma vez que a opinião pública em geral não tinha tanto ideia desse tipo de agressão.
De acordo com os historiadores, o papel de Agostini na luta contra a escravidão teria sido tão crucial quanto o de abolicionistas tradicionais, mais conhecidos e reverenciados, como Nabuco. Mas seu papel acabou ficando em segundo plano.
A sua morte, em 28 de janeiro de 1910, menos de duas semanas depois da de Nabuco, no dia 17, acabou ofuscando até mesmo as celebrações póstumas.
— Ele foi um abolicionista de primeira hora e radicalíssimo — defende o pesquisador Luiz Guilherme Teixeira Sodré, curador da exposição ‘O chargista e seu tempo’, na Casa de Rui Barbosa, montada paralelamente ao seminário.
A ideia do evento, organizado pela historiadora Isabel Lustosa, era, justamente, resgatar a importância de Agostini, apontado pelos especialistas como um dos maiores chargistas do Segundo Império e um dos precursores mundiais das histórias em quadrinho.
— Não há nenhuma grande obra sobre ele, nenhuma obra específica.
Algumas dissertações de mestrado, uns artigos esparsos — afirma Isabel. — Nossa ideia era mapear o trabalho dele e desafiar a produção de novas obras, sobre o autor, mas também sobre o personagem, o homem que teve um papel político importante no seu tempo como abolicionista.
O trabalho é importante, justifica Isabel, porque, embora não se produzam muitos estudos acadêmicos sobre o chargista, seus desenhos servem de base para numerosas pesquisas.
— São uma fonte reconhecida de pesquisa dos costumes, da política da época — diz. — Claro que há um código a ser interpretado já que se trata de um registro crítico, uma charge. Mas é um instrumento fundamental de trabalho.
E não por acaso.
— Ele tinha uma linguagem cinematográfica antes da invenção do cinema — diz Maringoni. — Apresentava imagens sequenciadas, cenas de rua, crimes ou personagens como um verdadeiro folhetim ilustrado.
Mas, além dessa crônica desenhada dos fatos cotidianos da cidade, da rebelião pelo aumento da passagem do bonde, ao carnaval, publicados nos jornais diários, Agostini também fazia histórias em quadrinho. Para muitos, foi o primeiro do mundo a usar esse tipo de linguagem. De qualquer forma, todos concordam que ele foi o pioneiro no Brasil, trabalhando sempre com a difícil e trabalhosa técnica da litografia, como na imprensa.
— O traço dele é considerado mais acadêmico, mais formal — explica Pedro Krause, que fez pesquisas para a exposição.
— Mas era uma época em que quase não havia fotos na imprensa. A democratização da imagem de D. Pedro II ocorre com os desenhos dele, por exemplo. A mudança do traço das charges acontece justamente na virada do século, quando as fotos entram com peso na imprensa.
Até então o traço era mais formal mesmo.
Isabel Lustosa concorda: — Havia um certo compromisso do desenho com a realidade, uma vez que não havia fotos. Se pensarmos nesse contexto, veremos que seu traço não era tão formal assim.
Apenas se prestava a uma leitura mais direta.
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