Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Patrícia Brito

‘O jornalismo que se quer e o jornalismo que se tem. Os dois casos que, nas últimas semanas, levaram ao despedimento de jornalistas de peso no Brasil obrigam a uma reflexão sobre as fronteiras entre o jornalismo comprometido e a liberdadede imprensa. Até que ponto os interesses políticose privados se sobrepõem à verdade dos factos? A polémica está lançada.

Jornalismo e política, política e jornalismo. Nas últimas semanas o Brasil assistiu a, pelo menos, dois casos em que a influência do poder político foi decisiva para a destituição de jornalistas dos seus cargos em duas empresas de comunicação distintas. E se o afastamento de Jorge Kajuru da rede Bandeirantes, por ter criticado o governador de Minas, Aécio Neves, fez levantar algumas vozes indignadas, o de Alberto Dines do Jornal do Brasil, por ter denunciado as relações de amizade entre o jornal e o casal Garotinho, no Rio de Janeiro, constitui já em si uma ameaça a uma das mais elementares garantias dos profissionais da informação: a liberdade de imprensa.

Alberto Dines, além de ter trabalhado em Portugal, onde fundou a revista Exame e colaborou com o jornal Expresso, esteve 12 anos à frente da redacção do Jornal do Brasil (JB), tendo assumido o cargo pela primeira vez em 1962. Numa época em que se vivia a ditadura militar, o seu papel foi determinante para driblar a censura e para cumprir a obrigação de informar, tendo-se tornado num dos nomes de referência do jornal e do jornalismo independente, até que, no passado dia 11, o JB resolveu suspender a coluna que mantinha e assinava todos os sábados. Motivo? Retaliação pelo artigo que Alberto Dines publicou no site do Observatório da Imprensa, no qual denunciava as relações promíscuas entre os seus patrões e as autoridades do Governo do Estado.

Nesse artigo, que originou toda a polémica, Dines começa por apontar o dedo à cobertura feita pelos jornais O Dia e O Globo em relação à crise da Casa de Custódia de Benfica, onde ocorreu a sangrenta chacina de cerca de 30 pessoas: ‘Se o casal governador do Rio de Janeiro adoptou a táctica de omissão durante quatro dias para enfrentar a calamidade na Casa de Custódia de Benfica, cabia à imprensa fazer um estardalhaço federal. Pior que a mentira, é o silêncio’, denuncia, acusando os principais jornais estaduais de não terem dado à notícia o enfoque que ela merecia e que teria as devidas consequências: ‘Se a ingovernabilidade do Rio de Janeiro se transformar em questão nacional, o casal Garotinho conseguirá manter-se impune?’

Imparcial como nos habituámos a ler, Dines vai mais longe e olha para o próprio umbigo, criticando a postura do jornal de que era colaborador: ‘O JB abdicou de fazer jornalismo… neste momento é movido por dinâmica e prioridades diferentes das de um jornal’. E continua, exemplificando por que razões a cobertura noticiosa é deficiente e comprometida com as aspirações políticas da governadora Rosinha e respectivo esposo e provando que existem relações perigosas entre os dois poderes, como seria o caso da compra de manchetes: ‘Não apenas na invasão do Iraque mas também em Benfica comprovou-se que a imprensa é crucial para desmascarar governantes. Ou para servir inocentemente os seus ignóbeis propósitos’, conclui.

Na sequência deste artigo, o presidente do Conselho Editorial do Jornal do Brasil e herdeiro da família que dominou o diário carioca por muito tempo, José Nascimento Brito, enviou a Alberto Dines um e-mail no qual lhe comunicava que se encontrava ‘suspenço’ (sic).

O caso Kajuru.

Mas não se julgue que Alberto Dines é a única vítima destes caminhos do jornalismo no Brasil. Jorge Kajuru, o popular e polémico apresentador do programa Esporte Total da TV Bandeirantes, fora demitido dois dias antes por denunciar as injustiças cometidas pelo governador de Minas, Aécio Neves, e pelo presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), Ricardo Teixeira, no jogo disputado pelas selecções do Brasil e da Argentina no Mineirão. E tudo porque se limitou a relatar em tom de crítica que havia dez mil bilhetes gratuitos distribuídos por celebridades e amigos do governador de Minas, enquanto que os restantes 42 mil bilhetes disponíveis para o povo torcedor eram caríssimos.

E o que é que lhe valeu a tentativa de informar as pessoas sobre o que se estava a passar, cumprindo o seu dever profissional? Foi retirado do ar no intervalo do programa e demitido no dia seguinte. Apesar de ser uma figura polémica, nada justifica a maneira como Jorge Kajuru foi impedido de continuar a fazer o seu trabalho. E o próprio, numa nota distribuída pela emissora, acaba por pôr o dedo na ferida: ‘À Bandeirantes deixo a minha compreensão de que o mundo econômico é assim mesmo: um conflito permanente da liberdade de imprensa, neste Brasil mais chegado à liberdade de empresa e de autoridade. Nesses 30 anos de carreira muitas coisas perdi em função da minha postura mas, felizmente, duas coisas não vou perder jamais: a minha dignidade e o meu direito pleno de me indignar com as coisas erradas. Essas duas coisas pertencem a mim. Não estão em contrato e ninguém pode me tirar’.

Onda de solidariedade.

Estas duas demissões vieram atear o rastilho de uma discussão de fundo sobre o jornalismo que se quer no Brasil, sociedade dita democrática e plural, que não cumpre uma prerrogativa tão básica quanto a da liberdade de imprensa, fazendo saltar em sua defesa várias vozes respeitáveis. Foi o caso de Zuenir Ventura, jornalista há mais de 50 anos e escritor, que recentemente foi presidente do júri que atribuiu o Prémio Camões e que escreveu sobre o caso de Alberto Dines: ‘Foi um prejuízo tão grande para a imprensa carioca quanto para os leitores. Perdemos todos. Acho que só quem ganhou foi o casal Garotinho, ao se ver livre de um implacável crítico do seu desgoverno’.

Foi também o caso de Juca Kfouri, que escreveu para o Lance um artigo intitulado ‘O preço de ser digno’, no qual sai em defesa do colega Jorge Kajuru: ‘Diante de uma proposta para que se desculpasse das justas críticas que fizera à verdadeira farra deslumbrada que foi a organização do jogo entre Brasil e Argentina – que deveriam ser dirigidas ao governador tucano de Minas Gerais – o jornalista preferiu o caminho de casa. No que fez muito bem’. E mais acrescenta: ‘Kajuru denunciou no ar que os deficientes físicos estavam sendo tratados como gado no Mineirão, em oposição ao tratamento dado aos convidados do governo mineiro e da CBF… se isso não é notícia, vamos todos para casa. Com a consciência de que quem se curva diante dos opressores mostra o traseiro aos oprimidos, frase genial de Millôr Fernandes.’

O debate continua aceso no Brasil, tendo servido para desenterrar outros casos isolados que aconteceram no passado e que apresentam a mesma natureza. Como a denúncia feita por O Globo de 22 de Setembro de 2003, segundo o qual uma inspecção do Tribunal de Contas do Estado constatou que o actual secretário de Segurança do Rio usou 118 mil reais de recursos da publicidade do governo, em 1999, para pagar ao JB quatro reportagens favoráveis à sua gestão. Ou ainda, como o caso que a Folha de S.Paulo traz à luz na edição de 2 de Setembro de 2003, mostrando que o governo do Paraná, durante a gestão de Jaime Lerner (PFL), em 2002, comprou reportagens em 68 jornais e seis revistas.

Trecho do texto de Alberto Dines

Lido na sessão mensal do Conselho de Comunicação Social (órgão auxiliar do Senado Federal). Brasília, 23 de Junho de 2004

(…) A questão da liberdade de opinião não é uma questão subjetiva. É concreta, objetiva, porque se relaciona diretamente com a credibilidade dos veículos de informação perante

as sociedades onde circulam. E credibilidade não é uma questão abstrata, uma imprensa sem credibilidade é uma imprensa descartável, falida.

Para que a imprensa credencie-se como Quarto Poder é indispensável que aprenda a conviver com as críticas, ela não pode manter-se num Olimpo imune às queixas e reclamações. Os recentes pedidos de desculpa de grandes organizações jornalísticas internacionais como o New York Times, a BBC e na semana passada a Folha de S. Paulo (inspirada no Correio Braziliense de Ricardo Noblat) representam um avanço extraordinário em matéria de busca de legitimidade. Não podemos esquecer que a comunicação social é o único negócio privado que goza de privilégios constitucionais. Indispensável uma contrapartida.

Isto significa que a cruzada atual pela credibilidade e integridade da imprensa num mundo cada vez mais enredado pela mentira deixou de ser uma bandeira particular de jornalistas ou de empresários. É uma cruzada que deve envolver patrões, empregados e até desempregados. É uma cruzada que deve envolver leitores, ouvintes e telespectadores. Estaremos traindo a sociedade se não soubermos repassar-lhe o nosso ceticismo. Todos dependem da qualidade da informação, todos devem agarrar-se à qualidade da informação, todos precisam igualmente da qualidade da informação para sobreviver e prosperar.

ENQUANTO ISSO, NA EUROPA…

Será que o jornalismo vai bem?

Em Portugal

Depois de quase meio século de ditadura, o fantasma da censura política sobre a imprensa continua muito presente em Portugal. Isto quer dizer que não é fácil exercer sobre jornalistas portugueses uma forma de censura desse género, a qual, a acontecer, seria logo denunciada e traria conseqüências negativas para quem a tentasse exercer. Pelo menos, da forma como aconteceu a Alberto Dines e outros jornalistas brasileiros recentemente, o Observatório da Imprensa português não regista casos idênticos. Pode, é certo, existir outro tipo de penalização censória sobre os jornalistas, não tanto ao nível político, mas sim quando estão em jogo interesses do grupo em que se insere o respectivo órgão de comunicação ou dos seus proprietários. Falo aqui a título pessoal, não em nome do Observatório: como responsável por uma notícia (verdadeira e objectiva) indicando que estavam em curso dois processos judiciais por evasão fiscal contra um novo sócio de Francisco Balsemão na SIC, fui forçado pelo mesmo Balsemão, também proprietário do Expresso, a demitir-me do cargo de director-adjunto deste jornal (a alternativa era ser demitido compulsivamente). Também o cronista João Carreira Bom foi afastado deste jornal por ter escrito um texto crítico sobre Balsemão.Mas mesmo casos destes são raros em Portugal. O que não quer dizer que, estando os órgãos de informação deste país concentrados em três ou quatro grupos, não se sinta alguma pressão nas redacções para não se fazer trabalhos que ponham em cheque esses grupos. Pode assim existir, porventura, alguma auto-censura, para o tema específico dos grupos de média ou dos grupos económicos que estejam por trás deles, mas de uma forma um pouco subtil e indefinida. O assunto não está ainda bem estudado.

Joaquim Vieira, presidente do Observatório da Imprensa [de Portugal] e director da revista Grande Reportagem

O caso Le Monde

A questão que aqui levantamos merece uma reflexão extensível a toda a imprensa mundial, uma vez que, depois do que aconteceu com a cobertura da guerra no Iraque, negociada e comprometida, há outros sinais de alerta vindos de meios quase insuspeitos, como o Le Monde, jornal francês de referência. Há pouco mais de um ano, dois jornalistas publicaram o resultado de uma investigação na qual desvendavam ‘A face escondida do Monde’, explicando aos leitores como o triunvirato que dirige o jornal conquistara o poder em 1994 para instalar o jornal no âmago das redes de poder em França. A investigação também acusava os directores de tentarem influenciar o curso da política francesa em função de interesses e convicções próprias. Processo para cá, processo para lá, o livro vendeu 200 mil exemplares, até que no passado dia 7, os seus autores, a editora e os directores do jornal chegaram a acordo. Estes últimos retiram todas as queixas por difamação e os primeiros comprometem-se a não reeditar o livro. E foi este acordo que fez levantar vozes indignadas. Escreveu Daniel Schneidermann, antigo jornalista do Le Monde que ‘é uma data histórica para a liberdade de expressão em França: pela primeira vez, um homem poderoso obtém, sem processo, a proibição da reedição de um livro. E esse homem poderoso é um director de jornal’.Mais longe ainda vai o filósofo Bernard-Henry Lévy que não hesita em mostrar o seu desprezo pelos jornalistas e que escreveu o seguinte na sua crónica para o Le Point: Esta maneira de atear um incêndio, de soprar nas brasas do escândalo, de seduzir as pessoas com a baixeza da mercadoria e depois, uma vez embolsados os lucros da operação, capitular e consentir que o corpo do delito seja apagado, é medonha.’’



JORNALISTA ASSASSINADO
O Globo

‘Jornalista é assassinado com tiro na cabeça após ser rendido por bandidos’, copyright O Globo, 5/07/04

‘O jornalista Leonardo Blaz Cicoti, de 26 anos, foi morto com um tiro na cabeça, na madrugada da última sexta-feira, por volta das 2h. O disparo ocorreu a cerca de 50 metros do 35 Distrito Policial (Jabaquara), na Zona Sul.

Bandidos abordaram Leonardo na porta de casa

Aproximadamente à meia-noite, Leonardo foi rendido por dois homens na porta da garagem da casa dos pais, em São Bernardo do Campo, onde morava. Antes, naquela noite, ele tinha saído para jantar com um amigo.

O jornalista foi levado pelos bandidos em seu carro, um Gol azul. Segundo relato do pai de Leonardo, no 3 Distrito Policial, o aposentado Elídio Cicoti, um vizinho da família ouviu vozes vindas da rua e olhou pela janela. Percebeu então que o jornalista estava sendo abordado pelos assaltantes e avisou Elídio.

O aposentado se dirigiu, em seguida, à delegacia e registrou uma ocorrência de roubo. Segundo a dona de casa Conceição Blaz, tia do jornalista, a família acreditava que ele havia sido vítima de um seqüestro-relâmpago – no momento do roubo, além de documentos, Leonardo levava na carteira um talão de cheque e dois cartões de banco.

– Achávamos que ele seria liberado logo que amanhecesse, assim que os ladrões conseguissem sacar dinheiro da conta dele – disse Conceição.’