‘Dados do próprio Ministério da Cultura, disponíveis na página www.cultura.gov.br, mais uma vez apontam para o triste quadro da concentração dos recursos das leis de incentivo à cultura para os projetos do eixo Rio de Janeiro-São Paulo. Foi assim nos governos Sarney, Itamar, Fernando Henrique e está sendo assim no governo Lula. Como se não bastasse a excessiva concentração de renda, de indústrias, de comércio e de população, os recursos de que o País abre mão em favor de projetos culturais acabam sendo direcionados para os mesmos centros, como se apenas a região Sudeste fosse capaz de ‘produzir e reproduzir a cultura brasileira’.
A dita ‘cultura brasileira’ parece ser muito mais do que sempre os mesmos grupos de teatro, de dança, de música ou de cineastas. Nossa diversidade cultural é estruturada de formas infinitas em todas as regiões deste País. Mas parece que as leis, os governos e as empresas que repassam recursos públicos para o setor cultural no Brasil não conseguem dimensionar esse fato.
Estatais como a Petrobras, que todos os anos aparece como a maior aplicadora de recursos do País por meio de leis de incentivo, concentram quase 80% dos seus recursos, ano após ano, em projetos do Rio e de São Paulo. O último anúncio da empresa, de apoio a novos projetos para este ano, indicou 141 pedidos; destes, apenas 11 eram da região Sul, ou seja, 7,8%. A própria empresa admite que ‘mais uma vez a maioria dos recursos ficou com a região Sudeste’ (68%).
As demais empresas que despontam nos primeiros lugares da lista do MinC nos últimos anos igualmente sofrem desse mal. Fundação Banco do Brasil, Itaú Cultural, Eletrobrás, entre outras, apóiam muito pouco ou quase nada os projetos fora do Eixo. Tudo em nome do marketing, quase nada em nome da cultura brasileira.
Essas empresas fazem marketing com recursos federais, investem muito pouco ou quase nada de recursos próprios e ainda se posicionam como as ‘grandes incentivadoras da cultura brasileira’. A nós, produtores do Sul, do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por enquanto, só resta espernear e denunciar mais um descalabro com o dinheiro público do nosso País. Ou as leis de incentivo sofrem um corte vertical já, com modificações estruturais profundas que garantam a participação nos recursos federais a todos os produtores do Oiapoque ao Chuí, ou a cultura brasileira cada vez mais será a reprodução do pensamento hegemônico que impera no País desde sempre.
Quando Gilberto Gil assumiu o Ministério da Cultura, prometeu fazer uma espécie de ‘do-in antropológico, massageando os pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos do corpo cultural do País’. Parece que o ministro precisa parar de cantar, acordar e começar a trabalhar, pois já se passaram mais de 500 dias de governo e ele continua apoiando as mesmas políticas, as mesmas práticas dos governos anteriores. No Brasil, tudo continua igual, na política e na cultura. E a imprensa… nem toca neste assunto. (*) Jornalista e Editor Chefe da revista Cartaz – Cultura e Arte’
DIREITO AUTORAL NA WEB
‘Novas idéias do MinC parecem desconversas sobre o problema’, copyright Folha de S. Paulo, 5/06/04
‘Fala-se sobre uma ‘reforma agrária no direito autoral’ (Ilustrada, 3/6). Em normatizar a cópia, licenciamentos e a distribuição de música pela internet. Foca-se a discussão nos direitos de produção e reprodução da propriedade intelectual e suas manipulações.
Mas a questão realmente importante com a relação à nova realidade do mundo digital se coloca menos na produção e mais na difusão, na circulação. A área que realmente precisa de uma reforma agrária é o latifúndio das telecomunicações com suas leis feudais, baseadas no poder econômico e na barganha política.
Os artistas independentes já encontraram formas novas de se organizar e de produzir, através de cooperativas, estratégias na internet e de uma nova visão sobre o direito autoral e a difusão da cultura. O ‘copyleft’ e os coletivos são uma realidade cada vez mais promissora em termos da organização dos criadores culturais.
Agora, a seara da difusão e distribuição dos bens culturais mantém-se intacta. A sociedade, sob a ditadura dos grandes monopólios, principalmente na televisão, controla e impõe no Brasil uma ditadura do gosto e do consumo.
É louvável que se comece a dar uma face mais normatizada aos novos mecanismos de distribuição de cultura, que encontra na internet seu espaço mais amigável para experimentação.
Mas seria essencial que o governo se preocupasse com a quebra dos monopólios dos meios de comunicação. Que buscasse, ao lado da sociedade civil, a regionalização da produção na televisão e o acesso dos produtores independentes aos meios, que normatizasse as rádios comunitárias que, por ironia, sofrem mais perseguição neste governo do que nos anteriores, fruto de uma visão legalista ultrapassada. Que buscasse uma reforma no sistema de arrecadação de direitos autoriais, que ainda é muito falho.
Enfim, a discussão sobre a propriedade intelectual é a parte mais simples (e mais pacífica) do problema, uma vez que as forças sociais por si mesmas dão conta das transformações necessárias.
Fica no ar a impressão de uma política de desconversa, de tangenciamento da questão estrutural que cabe ao governo, assim como à sociedade, encarar.
Agora, para mexer com os grandes interesses econômicos que se apoderaram de concessões públicas e engessam a cultura do país, é que a gente precisa de uma política de cultura clara, sem ambigüidades e compadrismos. Será que o MinC atual irá avançar além da desconversa e atacar de frente a questão política envolvida? Livio Tragtenberg é compositor’
Diego Assis
‘Reforma agrária’ no direito autoral’, copyright Folha de S. Paulo, 3/06/04
‘Já pensou em copiar, recriar e distribuir de graça uma música de Gilberto Gil na rede? Agora pode.
O cantor e ministro da Cultura é o primeiro artista brasileiro a aderir publicamente à licença Creative Commons, que está sendo lançada oficialmente amanhã em debate no 5º Fórum Internacional de Software Livre de Porto Alegre.
Foi justamente essa licença, que permite que uma obra seja copiada, remixada e compartilhada digitalmente, que possibilitou ao DJ Dolores retrabalhar a faixa ‘Oslodum’, do disco ‘O Sol de Oslo’ (1998), de Gil, sem esbarrar numa jornada burocrática para a liberação dos direitos autorais.
A versão vai integrar um CD da edição de agosto da revista americana ‘Wired’, dedicado aos novos rumos da economia musical.
Aberta a qualquer produtor cultural interessado (músicos, cineastas, fotógrafos, escritores…), a Creative Commons, criada nos EUA em 2001, vem sendo adaptada por um grupo de especialistas da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio, desde meados de 2003. Disponível no www.creativecommons.org, tem como objetivo criar um meio termo legal entre o ‘todos os direitos reservados’, dos contratos de direito autoral tradicionais, e o domínio público.
‘Do jeito que está hoje é 100% não. Ninguém pode usar uma obra, para fins comerciais ou não, sem autorização. Tudo é protegido, mesmo que muitos artistas se interessem em liberar para conseguir divulgação’, afirma Ronaldo Lemos, 28, mestre em direito pela faculdade de Harvard e um dos principais responsáveis pela adaptação da licença para o país. ‘O Creative Commons joga com desde o ‘pode tudo’ até o ‘pode fazer alguma coisa’. Não são todos, mas ‘alguns direitos reservados’.’
‘É necessário mudar a idéia de que, se não controlarem todo o uso de suas obras, os produtores estão perdendo. Não temos controle se as pessoas assobiam músicas para elas mesmas ou as cantam no chuveiro’, disse à Folha por telefone Lawrence Lessig, professor da universidade Stanford e ideólogo do Creative Commons, que participa da discussão amanhã em Porto Alegre.
Um exemplo prático é a banda pernambucana Mombojó. Lançado há poucos meses de modo independente, o disco de estréia do grupo teve grande parte de suas faixas disponibilizadas gratuitamente na internet. ‘A briga maior de uma banda independente hoje é a distribuição. E a internet nos deu isso de presente: o site é o escritório da banda’, defende o vocalista Felipe S. Sob a licença Creative Commons, o grupo pretende liberar em seu site três faixas para remix de outros artistas.
Outros ‘independentes’, como a rede inglesa de TV BBC, também se pronunciaram sobre o modelo: ‘Creio que estejamos prestes a passar a uma segunda fase na revolução digital, uma fase mais focada no valor público que no privado; sobre serviços gratuitos, não pagos; sobre inclusão, não exclusão’, disse em agosto passado Greg Dyke, então diretor da estatal, anunciando a intenção de tornar livre, na internet, o uso não comercial do histórico acervo de programas da BBC. Na última semana, a BBC voltou a tocar no assunto, informando que usaria a licença Creative Commons para viabilizar legalmente o projeto.
‘A flexibilização da propriedade intelectual deixou de ser algo alternativo, que corre por fora dos marcos legais. Há uma aliança com o pensamento júrídico internacional’, declarou Gil. ‘O que estamos precisando é de uma certa reforma agrária no campo da propriedade intelectual.’
5º FÓRUM INTERNACIONAL DE SOFTWARE LIVRE. Debate Creative Commons, com Ronaldo Lemos (FGV), Gilberto Gil (MinC), Lawrence Lessig (Stanford), William Fischer (Harvard), Andre Midani (Warner) e Luís Nassif (colunista da Folha), entre outros. Quando: amanhã, às 17h15. Onde: PUC-RS (av. Ipiranga, 6.681, Porto Alegre, tel. 0/xx/ 51/3320-3500).’
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‘Para Lessig, ‘esperança está no Brasil’’, copyright Folha de S. Paulo, 3/06/04
‘Jamais houve um período na história em que nossa cultura foi tão controlada como hoje. A principal causa disso, afirma Lawrence Lessig, professor de direito da universidade Stanford, é a lei. Autor do recém-lançado ‘Free Culture: How Big Media Uses Technology and the Law to Lock Down Culture and Control Creativity’ (Cultura Livre: Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei para Obstruir a Cultura e Controlar a Criatividade), Lessig está no Brasil para discutir a implementação do Creative Commons, do qual é um dos criadores.
A obra pode ser baixada gratuitamente em www.free-culture.cc. De acordo com sua licença, ‘Free Culture’ pode ser redistribuído, copiado e até reutilizado em outros livros, desde que para fins não-comerciais e que, ainda, o nome de Lessig seja citado. (DA)
Folha – Que mudança a internet trouxe no modo como a cultura é produzida atualmente?
Lawrence Lessig – A tecnologia digital, não só a internet, possibilitou às pessoas produzirem cultura de uma maneira nova. A possibilidade de samplear conteúdo e remixá-lo, fazer colagens. E, por ser tão barata, mais pessoas podem participar criativamente.
Folha – O que você quer dizer quando se refere a ‘cultura livre’?
Lessig – Devemos pensar cultura livre como expressão livre, mercado livre ou sociedade livre. Não significa que não haja propriedade, mas que os limites da propriedade estejam balanceados por valores importantes de acesso e democratização de conteúdo. É um ideal que a maioria das sociedades livres respeita. Os Estados Unidos certamente respeitaram por muito tempo, mas acho que perdemos isso recentemente.
Folha – Dá para detectar o momento em que os EUA deixaram de ser uma cultura livre?
Lessig – Não tenho certeza. É como o sapo colocado em uma panela de água fervendo. Ele nunca percebe até que seja tarde demais. Estamos vendo isso acontecer. Já faz parte de nossa segunda natureza pensar que você precisa de permissão para fazer qualquer coisa com a cultura. E essa é a característica mais perigosa do sistema legal que está nascendo.
Folha – No livro, você afirma que a inovação técnica prevaleceu sobre os monopólios no passado. A internet não está conseguindo?
Lessig – Há duas coisas acontecendo. Uma é a atitude com a propriedade. Estamos mais céticos a respeito do poder que o copyright dá aos monopólios. A segunda é que esse poder está mais forte agora do que jamais foi. Ele é mais invasivo e cobre todas as áreas.
Folha – As gravadoras continuam processando quem baixa músicas ilegalmente. O que o faz esperar que isso mude em curto prazo?
Lessig – Acho que a indústria já venceu a batalha no curto prazo. Escrevo para alertar as pessoas do porquê de esse resultado ser algo com que deveriam se preocupar.
Folha – Você tem esperança?
Lessig – Não. Quero dizer, em certo contexto. Quando vou ao Brasil e vejo o que Gil está fazendo, acho que isso pode funcionar como uma mensagem alternativa ao governo dos EUA. É um grande motivo para ficar esperançoso. Vamos ver as conseqüências.
Folha – Como convenceria um artista a adotar o Creative Commons?
Lessig – No momento, dou a ele a chance de experimentar. Ver se ajuda a divulgar e vender sua música e encorajar outras inovações criativas em torno da obra. Se a experiência for ruim, vá tentar alguma outra coisa. Não deve haver uma ideologia que pregue um único modo de produzir e distribuir música e que quem se desviar disso passe a ser um criminoso.’