Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Paulo Roberto Pires

‘‘Falou-se muito pouco em literatura este ano’, reclamava um jovem escritor, aos tropeços, pelas ruas irregulares de Parati. Este ano, como a Carla Rodrigues bem diagnosticou em sua última coluna, a realidade arrombou a Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Parati. Das bombas em Londres à marca de dólar na cueca do PT, cada debate da Flip parecia, para ficarmos em metáforas literárias, ecoar os gritos do coronel Kurtz em ‘Coração das trevas’: ‘O horror, o horror!’.

Momentos de crise, como se sabe, servem também para aflorar uma quantidade extraordinária de lugares comuns e platitudes bem intencionadas. A pior delas, diga-se, é reafirmar a força da literatura que, quixotescamente, tudo vence, da infelicidade à miséria. Menos piegas e mais realista, Gonçalo M. Tavares definiu o escritor contemporâneo como o homem que, parado em uma quarta-feira qualquer, avista simetricamente dois domingos: o anterior ao dia em que vive, que é o passado da literatura, as influências e a ‘cultura’, e o domingo seguinte, que é o mundo contemporâneo e sua brutalidade, seus conflitos, suas paixões. É o tal do drama que o filósofo Theodor Adorno apontou na obra do poeta Paul Celan e Gonçalo assinou embaixo: escrever depois de Auschwitz, meu nego, é fogo na roupa.

Por isso, diria o jovem e querido escritor, o personagem central da Flip 2005 não foi o autor literário clássico, o homem de letras, o criador, mas o intelectual, aquele que faz da palavra intervenção e que, como o mundo, vive nas últimas décadas uma crise sem precedentes. Foi este personagem que, dissecado impiedosamente por Beatriz Sarlo, renasceu com vigor extraordinário na figura de Luiz Eduardo Soares – antropólogo, romancista, ex-secretário de Segurança do Rio de Janeiro e, como se viu no debate que o reuniu ao rapper MV Bill (parceiro no livro ‘Cabeça de porco) e ao jornalista Arnaldo Jabor, uma possibilidade concreta de retomar o diálogo entre a especulação teórica, a prática e uma reflexão simples e direta sobre temas que nos são fundamentais.

Com a contundência que lhe é peculiar, Beatriz Sarlo lembrou, em debate com Roberto Schwarz, que há um descompasso fundador entre o intelectual e os meios de comunicação. No olhar do jornalista, o intelectual fala javanês, é obscuro mas também útil para dar ‘peso’ à fugacidade de notícias e espetáculos. Do ponto de vista do intelectual, a mídia é um mal necessário, diluidora de sua consistência, mas com quem deve firmar um pacto quase faustiano que garanta sua sobrevivência social. Para Beatriz, o que explica isso é um desentendimento fundamental entre ‘estéticas discursivas’ distintas. Mais do que um efeito de palavras, a crítica argentina toca num ponto fundamental: não seria o momento de se pensar um modelo discursivo distinto, que se adaptasse ao meio de expressão que lhe é mais próximo?

Na acepção clássica do engajamento – como a Carla também resume exemplarmente na coluna – esta mudança seria considerada ‘rendição’ aos padrões de autoridade: o intelectual clássico é um profissional da negatividade, a oposição sistemática a qualquer padrão e modelo. Em nossos dias, esta negatividade termina por ser redutora e, sobretudo, carente de vitalidade. A chave é, lembra Beatriz, o cultivo de um pensamento desejante, que engula o mundo com voracidade e, neste mesmo movimento, questione todo o e qualquer tipo de certeza ou dogma sem, ao mesmo tempo, chafurdar no inferno das relativizações infinitas. Pensamento é ação e, mais ainda, ação com vontade, curiosidade, risco e sinceridade.

É este personagem novo, ainda a definir, que se desenha em Luiz Eduardo Soares. Assim como não teve medo de enfrentar a direção de Segurança de um dos estados mais problemáticos do Brasil, Luiz Eduardo enfrentou, no trabalho com MV Bill e Celso Athayde, o risco da trivialização, do barateamento do discurso sobre a violência, risco bem possível (e compreensível) quando se vive situação tão aguda. Abandonou a ortodoxia de métodos e conceitos para assumir, como mesmo falou, o método da humildade, ou melhor, do desarmamento de consciência: ouvir, ouvir e ouvir o que o seu ‘objeto’ tem a dizer para, imediatamente, tirá-lo da posição idealizada de objeto e pensar solidariamente a ele todas as contradições e desvãos que a complexidade da vida impõe.

No debate, coube a Luiz Eduardo a dificílima tarefa de suceder o perturbador testemunho de vida e reflexão de MV Bill: a platéia que enfrentaria estava banhada em sinceras lágrimas, exposta impiedosamente a seus preconceitos e ao drama que atinge números estarrecedores. Se Bill se portou como um conferencista, sentado ao microfone, Luiz Eduardo se portou como um rapper: de pé, dirigindo-se ao público e aos debatedores olho no olho. Nada disso, é claro, bastaria se o seu discurso não misturasse de forma tão impressionante vivência e números, casos e conceitos, vida e discurso.

Sem um pingo de populismo, tomado por uma sinceridade focada, que dosa corretamente emoção e reflexão, Luiz Eduardo Soares mostrou, na prática, o quanto uma ‘estética discursiva’, no caso a do intelectual, pode ser repensada e remodelada. E o quanto esta atitude, muito mais do que uma ‘questão de estilo’, mostra-se a operação fundamental para restituir a consciência crítica em um mundo que, definitivamente, prefere o preconceito aos riscos da inteligência.’



Carla Rodrigues

‘O imperativo da escrita’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 11/7/05

‘PARATY – Escreve-se para narrar o que se vê e assim dar ao mundo realidade e consistência. A literatura é a única linguagem não-funcional com a qual entendemos aquilo que nos cerca, fora de discursos técnicos específicos como a linguagem científica, jornalística, política ou acadêmica. A literatura seria um inutensílio, definição do poeta Paulo Leminski lembrada pelo professor Cristóvão Tezza (Breve espaço entre luz e sombra). À margem dos discursos oficiais, a literatura oferecia uma porta para a liberdade, embora pareça estranho falar em liberdade ao final da 3ª. edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que começou impactada pelos atentados em Londres e repercutiu, durante os quatro dias de debates, violência e fundamentalismo, segregração racial e preconceito, tráfico de drogas e guerra religiosa. ‘O mundo atual nos faz contar histórias com um sentido trágico’, disse o anglo-indiano Salman Rushdie (Shalimar, o equilibrista), numa fala pontuada pela afirmação de que existe um tipo de literatura que se impõe ao escritor contemporâneo. ‘Se o mundo vier a ficar mais alegre, pode ser que meus livros também fiquem’, disse ele. Pela narrativa se pode entrar em contato com aquilo que nos explica ou nos justifica, e esse tema esteve em pauta em praticamente todas as 20 mesas realizadas na cidade.

O papel da linguagem começou a ser dado logo no primeiro dia de debates, quinta-feira, quando a cidade acordou com a notícia da explosão das bombas em Londres. As primeiras mesas do dia discutiriam o fim do romance, a poesia e a obra de Clarice Lispector. Benedito Nunes, Vilma Arêas, Marina Colasanti e Licia Manzo discutiram a literatura dessa mulher que tantas vezes disse que gostaria de não escrever, que procurou o silêncio, sem nunca encontrá-lo. ‘Por que narrar?’, perguntava o filósofo Benedito Nunes. Na obra de Clarice ele encontrou muitas respostas: narrar para revelar o que existe, para expor a tessitura do viver. Segundo ele, para Clarice, ‘escrever é submissão ao processo que ela não conduz, mas que por ele é conduzida.’Essa exigência de entrega de que fala Benedito aparece como um imperativo da escrita para muitos autores da FLIP.

O que se assistiu em Paraty dá ao leitor a sensação de que as questões do mundo contemporâneo invadiram a ficção, seja na prosa, seja na poesia. Só essa invasão explica os poemas do livro ‘Margem de manobra’, lançamento de Claudia Roquette Pinto pela editora Aeroplano. A violência urbana do dia-a-dia está toda lá, em versos comos os do poema ‘Santa Teresa’:Azul explosivo/verde lancinante/e o sol, onipresente,/halo/na cabeça da mulher escalpelada.

‘Eu só entendo a minha vida se escrever sobre ela, me sinto obrigado a escrever’, diz o israelense David Grossman, que tem na literatura uma ferramenta de viver num universo povoado de conflitos históricos e cotidianos. Mas nem todos os autores expressam essa mesma necessidade em relação à escrita. É o caso de Luiz Alfredo Garcia-Roza, consagrado autor de romances policiais. ‘Eu não escrevo por essa necessidade intestina do escritor, escrevo para tornar minha vida mais interessante, minha escrita não tem nada de metafísica’, disse ele, voz dissonante numa série de debates nos quais a tônica foi a defesa da escrita que ‘pode salvar a terra’. Talvez ele seja mais realista, menos romântico. Afinal, escreve-se cada vez mais também (ou principalmente) pelo imperativo do mercado e as disputais editoriais que se dão antes e durante a FLIP poderiam facilmente derrubar qualquer definição mais filosófica sobre escrita. Mas a objetividade de Garcia Roza só se sustenta até o momento em que ele explica como encara o desvendar de um crime nos seus enredos policiais: enigmas nos quais uma verdade se mostra, se insinua, mas mantém sempre uma área de sombra. Definição para filósofo nenhum botar defeito, e não por acaso seu detetive se chama Espinosa (também poderia se chamar Martin Heidegger).

Pensar a literatura como ferramenta de compreensão do mundo coloca autores e leitores no mesmo lugar, elimina as oposições entre quem lê e quem escreve. Ler também é uma forma de tentar entender o mundo pela escrita – como se a realidade se tornasse mais compreensível através do olhar que os personagens de ficção oferecem, como se esvaziar-se do seu próprio jeito de olhar e se transportar para o olhar do outro fosse um jogo duplo da literatura: ao mesmo tempo que nos leva para o outro, nos traz o outro. ‘A literatura pode tentar nos levar para o outro’, disse o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson na mesa em que tentou explicar por que escrever sobre guerra.

O imperativo da escrita a que tantos escritores se referem seria simplesmente a adesão a uma literatura engajada, capaz de refletir sobre os problemas do mundo? Não pode ser uma resposta simples, porém insuficiente. Engajamento foi tema da mesa que concorre para ser considerada a melhor da festa: a reunião dos críticos literários Roberto Schwarz e Beatriz Sarlo. Ao discutir o papel do intelectual e a questão do engajamento, Schwarz mostrou qual é o modelo de engajamento no Brasil. Segundo ele, desde que Joaquim Nabuco defendeu o fim da escravidão, o intelectual engajado é aquele que trai a sua classe e coloca sua cultura em busca da solução do problema da exclusão. O modelo vigorou até 1964. Exilados durante a ditadura, quando os intelectuais brasileiros voltaram ao país encontraram os operários do ABC organizados sem que a participação da elite pensante se fizesse necessária. A promessa do fim da exclusão, no entanto, não se cumpriu nem no governo FHC nem parece que virá a ser cumprida no governo Lula. ‘O engajamento do intelectual tem servido para que a elite se considere moderna, sem mudar nada para os excluídos’, disse Scharwz.

A participação do rapper MV Bill na festa indica que, de fato, o modelo de tutela dos intelectuais está em xeque. Num discurso articulado, o jovem negro de 30 anos que emergiu da miséria do misto de conjunto habitacional e favela carioca chamado Cidade de Deus e que começou a ler jornal porque trabalhava como vendedor numa banca, mostrou que dispensa intelectuais do tipo Arnaldor Jabor. Virulento, superficial nas críticas, forçadamente polêmico, Jabor parece não ter-se livrado do modelo paternalista dos que acham que sabem o que é melhor para pretos e pobres, sem nunca ter sido nem preto, nem pobre. Tem muito a aprender com o antropólogo Luiz Eduardo Soares (Cabeça de Porco, co-autoria com MV Bill e Celso Athayde). ‘Nosso principal método científico é a humildade’, disse Soares. A mesma humildade que usou para ouvir os depoimentos de parentes de vítimas de violência policial serve também para que ele admita: ‘Nos anos 60, sabíamos quais eram as respostas. Hoje, somos capazes de reconhecer as nossas limitações.’

A literatura do não

‘Escrever é procurar entender. Escrever é tantas vezes lembrar-se do que jamais fui. Eu medito sem palavras e sobre o nada. O que me atrapalha a vida é escrever.’ O depoimento é de Clarice Lispector e mostra bem essa contradição entre o imperativo da escrita e o desespero de quem gostaria de parar de escrever. Gostaria? Num livro premiado, o espanhol Enrique Vila-Matas conta uma série de histórias sobre escritores que simplesmente disseram não à escrita. ‘Bartleby e companhia’ parte da síndrome do não do escrivão Bartleby, personagem de Herman Melville, para questionar o imperativo da escrita e mostrar a força do não. Vila-Matas recolhe depoimentos de diversos autores sobre a escrita, como esse de Marguerite Duras: ‘Escrever também é não falar. É calar-se. É uivar sem ruído.’ O autor encontra uma forma engenhosa de não escrever um livro, mesmo escrevendo: informa que o ‘Bartleby e companhia’é um conjunto de notas de rodapé de um texto inexistente.

Na mesa ‘O escrivão e o escritor’, que dividiu com o jovem português Gonçalo Tavares, Vila-Mattas explicou que Bartleby ‘trata do mistério daqueles que, podendo escrever, não escrevem, ou que uma vez tendo escrito, renunciaram à escrita.’ Ou seja, uma espécie de lugar de resistência a esse imperativo da escrita ao qual tantos escritores – bons ou ruins – se renderam. Mesmo ao recolher tantas negações da escrita, Vila-Mattas admite: ‘A literatura, por mais que nos apaixone negá-la, permite resgatar do esquecimento tudo isso sobre o que o olhar contemporâneo, cada dia mais imoral, pretende deslizar com a mais absoluta indiferença.’ Bartleby é complementado por ‘O mal de Montano’ (Cosac&Naify) , no qual o escritor espanhol faz uma espécie de cruzada contra a extinção da literatura.

A terceira edição da FLIP reuniu um grupo enorme de autores que vieram dizer a seus leitores que escrevem porque não há outra coisa a fazer. O jovem português José Luiz Peixoto (Nenhum olhar) , perguntado sobre a sobrevivência do romance, hoje atravessado por tantas crises estéticas e narrativas, respondeu: ‘O fim do romance seria o fim do mundo.’ Seria? Em Paraty, todos concordamos que sim.’



Jerônimo Teixeira

‘Os autores descobertos pela festa literária mereciam o anonimato’, copyright Veja, 20/7/05

‘Um dos grandes aborrecimentos de ter um evento como a Festa Literária Internacional de Parati (Flip) no calendário é a ‘revelação’ de escritores que ficariam melhor no anonimato. Foi o caso, no ano passado, de Marcelino Freire, cujo novo livro, Contos Negreiros, traz uma tira vermelha na capa, na qual se lê: ‘Autor revelação da Flip 2004’. E também de João Filho, autor de um único livro, Encarniçado, por uma editora que já nem existe mais. Incensado como grande descoberta da Flip deste ano, João Filho deverá figurar até num documentário do cineasta Bruno Barreto sobre a festa. Os dois autores entraram no circo literário com o mesmo número: o de escritor marginal. Ambos têm seu discurso choroso pronto para fisgar o público de ‘elite’ pelo seu ponto mais frágil: a má-consciência. O baiano João Filho já foi office-boy e vendedor de biscoitos e se apresentou na Flip como desempregado. O pernambucano Freire ganha a vida revisando anúncios para uma das maiores agências de publicidade do país – mas gosta de lembrar a infância sertaneja. A pobreza maior dos dois autores, porém, está no estilo de seus livros.

Freire, na verdade, despontou antes da Flip, com os contos de Angu de Sangue (2000). O que soava promissor no livro de estréia tornou-se, agora, monótono e cansativo. E, sob a falsa novidade da temática racial de Contos Negreiros, o autor se entrega a uma demagogia pegajosa. Permite-se até o elogio da ignorância em Totonha, a história de uma velha que se recusa a aprender a ler (será uma autocrítica enviesada?). O tom de denúncia é insuportável, e a linguagem ‘oral’ e ritmada tem momentos ridículos como os erres dobrados (negrrinhas, prreserrvarr) no conto Alemães Vão à Guerra, que fazem os personagens soar como os nazistas farsescos da série cômica Guerra, Sombra e Água Fresca.

João Filho ainda tem a ilusão de que pode chocar com histórias de crimes sanguinolentos (já vimos em Rubem Fonseca) e mutilações sexuais (bem antes, no Marquês de Sade, no século XVIII). E tem uma fé ingênua no poder de sua linguagem, arremedando uma prosa à la Guimarães Rosa. Ao contrário de Rosa, porém, ele mistura as palavras numa cacofonia irritante. Nota-se que o autor se encantou com a própria ‘inventividade’, repetindo efeitos sonoros como ‘fungos de ferrugem’ ou ‘retinto’reto’ (só a cabala explica o apóstrofo entre as duas palavras).

A literatura brasileira tem uma bela tradição de escritores que dramatizaram a miséria. Basta lembrar Os Ratos, de Dyonelio Machado, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que apresentavam a pobreza sob uma luz impiedosa. O populismo de Jorge Amado, de outro lado, criou pobres heróicos ou matreiros. Mas até o populismo, por equivocado que seja, pelo menos é um programa político. Freire e João Filho não têm política nem estética. Apenas transformaram a miséria em peça de marketing. São o equivalente literário do Fome Zero.’



Antonio Gonçalves Filho

‘O colecionador de prêmios’, copyright O Estado de S. Paulo, 17/7/05

‘O escritor catarinense Cristóvão Tezza completa 30 anos de carreira literária recebendo, na quarta-feira, o maior prêmio literário da Academia Brasileira de Letras por seu romance O Fotógrafo (Rocco, 223 págs., R$ 27), considerado o melhor livro de ficção publicado no Brasil no ano que passou. Tezza, um dos autores mais cotados para receber o prêmio Portugal Telecom, participou como convidado da 3.ª Festa Literária Internacional de Paraty, realizada na semana passada. Foi na cidade litorânea fluminense que ele recebeu a reportagem do Estado para entrevista exclusiva, em que falou de literatura e política.

Autor de 11 romances desde 1975, quando foi lançado A Cidade Inventada, Tezza, professor universitário e ensaísta, é autor de um elogiado trabalho sobre Bakhtin e o formalismo russo. Seu livro O Fotógrafo conta um dia na vida de um profissional contratado para fotografar uma modelo. Ele acaba se envolvendo com ela, enquanto sua mulher ensaia um caso amoroso com o professor, casado com a analista da modelo.

Como surgiu O Fotógrafo?

Gosto muito de fotografia. Sou fotógrafo amador, sempre brinquei com isso. Tinha uma primeira cena da cabeça, a de um profissional contratado para fotografar uma modelo, uma cena banal. Quando comecei a escrever, senti que a força do livro residia no fato de se passar num único dia. Daí a questão de recuperar a tradição do narrador onisciente do século 19, do narrador sabe-tudo que tinha a premissa de ser capaz de dar conta da realidade. Meu narrador sabe tudo sobre os personagens, mas não sabe nada do mundo. É um narrador fracassado.

Em O Fotógrafo, você trata da interação entre imagem e palavra, esse trânsito que sempre existiu e que a arte conceitual tornou ainda mais evidente. Passado esse período, a palavra está sendo expurgada das artes plásticas. Como você analisa essa ligação entre as duas?

Embora diga que a minha literatura seja visual, pois só escrevo o que vejo, há autores que têm um tal grau de abstração que você não vê nenhuma imagem em seus textos, como nos monólogos de Beckett. A literatura, para mim, é uma arte de cegos. É a construção do mundo via palavra. Agora, há um trânsito inevitável entre as artes visuais e a literatura, pois ambas são modos de representação, de recorte do mundo, principalmente no século 20, que registrou a invasão avassaladora da imagem como referência e até sistema de valores. E não só no século 20. Isso aconteceu em outros momentos, o período medieval, por exemplo. A história da pintura ocidental é a do didatismo da Igreja Católica, via imagem, num mundo de analfabetos. Mas, apesar disso, acho que são terrenos bem distintos. Embora a literatura influencie o cinema e vice-versa, ela não deve competir com a imagem. Como experimentação formal, foi fantástico o exemplo dos formalistas russos ou dos concretistas, que se apropriaram do signo gráfico e o transformaram num elemento importante da literatura. Foi um salto importante, mas é um erro estratégico a competição com o reino da arte, pois ela vai perder sempre. A literatura deve pegar justamente aquilo que é específico, a palavra enxuta.

Você fala da palavra como elemento de transformação, de criação do mundo, o que evoca o caráter sagrado do verbo. Para você, a palavra tem esse poder, esse sentido religioso?

Ela tem, porque o mundo é o que a palavra diz que ele é. Ela pode ser muito perigosa, principalmente quando aparece aliada ao poder ou à religião. Nesses casos, os efeitos costumam ser devastadores. Particularmente, vejo a prosa romanesca atual como um modo de representação do mundo que não se confunde com ensaio. De certa forma, ela é um ensaio colocado à prova, é como se você testasse as possibilidades da vida humana num mundo em que não se tem mais uma cosmogonia para cantar nem grandes valores éticos. Qual seria, então, o lugar do homem num mundo sem Deus? É essa resposta que meus personagens buscam. Embora eu, pessoalmente, seja ateu, eles acreditam em Deus. Deus é uma presença na vida. Ele tem de ser pensado.

Você evita palavras quando escreve?

Tecnicamente tenho o ouvido apurado para a questão do coloquial. Não sou preciso. Minha literatura não tem preciosismo. Tenho limite para o emaranhar das palavras, que é o limite do uso cotidiano, da força cotidiana das palavras. Essa é a minha matéria-prima, mas não evito palavras, não. O escritor não pode ter medo delas.

Você se arrepende de ter escrito algum livro?

Não, mas de vez em quando visito um sebo para ver se encontro os três ou quatro primeiros, não para reler esses livros, mas para os recolher. Isto é, quando os encontro, claro. Sou muito exigente comigo mesmo. Demorei muito para escrever alguma coisa que julgasse boa. Escrever me dá uma angústia séria. Fico sem dormir por causa de uma frase.

Quais são seus livros que você rejeita?

A Cidade Inventada, que é uma boa idéia nas mãos de um autor imaturo, depois O Terrorista Lírico e, finalmente, O Gran Circo das Américas.

A literatura contemporânea parece caminhar para um amálgama entre ficção e ensaio. Como você analisa o fenômeno?

Isso é um reflexo do impulso tecnológico do século 20, de uma certa tecnocracia literária, basicamente uma questão dos movimentos dos primeiros anos desse século, que trataram a literatura com o mesmo espírito de ciência que invadiu outras áreas. A lingüística, por exemplo, foi um avanço fantástico, pois se passou a ver a língua como sistema. Quando isso foi transplantado para a literatura, que trabalha com valores de cultura, e não propriamente com estruturas imanentes, tivemos surtos tecnocráticos. Acho que é uma fase que está se esvaindo. A ficção não pode ser simplesmente o espaço de ensaio sobre a ficção, em que o autor finge que não está aí, em que a literatura vira apenas um jogo de referências externas ou internas, como um cubo de montar. Acho que a literatura tem de ter a responsabilidade emocional da linguagem, que se perdeu um pouco. Não estou postulando uma literatura puramente conteudística. Ela é forma, mas tem de recuperar o poder de sua linguagem, a força de dizer o que diz e acreditar nisso.

Você, que escreveu sobre o formalismo russo e outros movimentos revolucionários da literatura, considera ainda possível a arregimentação de escritores em torno de uma idéia comum, em nossa época marcada pelo individualismo?

É, realmente estamos numa diáspora total, numa época de vale-tudo, que dessacralizou tudo. Temos, por outro lado, aquela faixa estreita que a gente considera alta literatura, mas ela está acantonada, sem saída, sem voz. O romance, no século 19, era a grande arena de discussão de temas da cultura ocidental. Deu, inclusive, raízes para criar filosofias como o existencialismo. Isso se perdeu, mas pode ser recuperado, numa outra perspectiva, com uma outra linguagem. Em geral, todos esses movimentos revolucionários são poéticos. Os poetas têm uma relação mais sagrada com a palavra e, embora vivam brigando, são mais gregários. O prosador é um solitário. Existem várias associações de poetas, mas nenhuma de prosador.

A relação entre autores e editores, hoje, também não ajuda muito. Numa época como a de José Olympio ou Ênio Silveira, exigentes e criteriosos, parecia mais difícil publicar e mais fácil manter os escritores unidos em torno da alta literatura, não?

Trapo, livro de 1988, foi escrito seis anos antes e recusado por vários editores. Hoje seria muito fácil publicá-lo. O livro virou um bom negócio. Uma prova disso é a entrada de editoras estrangeiras no mercado, embora isso ainda seja um mistério para mim. Publica-se muito, houve uma certa banalização da literatura. A relação ética do escritor com o ato de escrever talvez tenha de ser renovada.

Você é acossado por seus personagens com questões éticas?

Não. Faulkner dizia que o escritor precisa de três coisas: imaginação, experiência e observação. Eu diria que meu ponto forte é a observação. Sou um observador e toda a minha imaginação decorre dela. Então, convivo demoradamente com meus personagens. Tem, sim, algum grau de possessão, quando me coloco na pele do outro, mas não no sentido da metempsicose espírita. Você simplesmente passa a ter responsabilidade quando cria o ponto de vista de um personagem. Não se pode fazer qualquer coisa. Esse é o segredo da prosa. Ela não te dá a liberdade da poesia. O poeta faz o que quiser da palavra. O prosador passa a palavra para outro. Não é possível dizer nada que não corresponda ao ponto de vista alheio.

Como você analisa os novos rumos da literatura contemporânea brasileira?

Acho que estamos numa fase de transição. Gosto da poesia de Paulo Henriques Brito, que é uma síntese fantástica não só do momento poético como da atual literatura brasileira.

E o quadro político do Brasil?

Factualmente é uma tragédia. Por outro lado, não é uma tragédia institucional. Formei-me sob uma ditadura militar e sei o que é uma questão institucional. A esquerda precisa rever sua mitologia, como defende a crítica argentina Beatriz Sarlo. A esquerda ainda tem o resíduo de uma visão partidária muito fechada. O famoso centralismo democrático está dando nessa pulverização. E, depois, há alguns cacoetes históricos, porque é inconcebível que PT e PSDB se juntem cada um com a sua direita. A gente ainda carrega nas costas a questão da escravidão, que foi devastadora. Estamos pagando o preço dessa herança escravocrata até hoje.’



HARRY POTTER
Eduardo Simões

‘Novo Harry Potter deve bater recordes de venda’, copyright Folha de S. Paulo, 18/7/05

‘Lançado nos primeiros minutos do sábado, ‘Harry Potter and the Half-Blood Prince’, o sexto e penúltimo livro da série, deve bater recordes de venda em todo o mundo. Somente nas lojas da livraria Cultura de São Paulo e Porto Alegre foram retirados 3.000 exemplares em inglês do livro, entre cópias encomendadas pela internet e compradas na hora, nas primeiras 12 horas de venda. Em todo o mundo, estima-se que 10 milhões de livros sejam vendidos em 24 horas.

Na Cultura do shopping Villa-Lobos, em São Paulo, que tinha mil exemplares importados no estoque, pouco depois de suspenso o embargo, à meia-noite, os fãs dispararam pelos corredores com o livro na mão, tentando descobrir que personagem havia sido morto no sexto volume da série. Alguns já sabiam de antemão que o segredo estava nas páginas 606, da edição americana, e 566, da britânica, vendidas no Brasil a um preço médio de R$ 98,50.

‘Não poderia ter sido ele’, reclamava, aos prantos, a estudante Esther Castellano, 15, sem revelar o nome da vítima da pena da autora, a escocesa J.K. Rowling nem o algoz do morto. ‘Acho que a reação vai ser péssima.’

A morte do personagem era a principal das perguntas dos leitores mais apressados, que desde as 17h ficaram em vigília no shopping, participando de cosplays [do inglês ‘costume’ (fantasia) mais ‘play’ (encenação)] e de um ‘quiz’, valendo uma cópia do livro, e que já haviam lido os dois primeiros capítulos do livro, ‘pirateados’ e divulgados na internet. Os fãs também queriam saber quem é o príncipe [que pode ser bastardo ou mestiço, pois a tradução da edição brasileira, da Rocco, ainda não foi divulgada] e se Ron e Hermione finalmente começam seu romance.

‘Li que Dumbledore [diretor da escola de bruxos Hogwarts] ia morrer, mas não quero que ele morra de jeito nenhum. E quero que o Harry continue solteiro. Ou a Rowling pode inventar uma namorada brasileira para ele’, rogava a estudante Aline Gavazzi, 15, que fingiu estar passando mal para conseguir da gerente da loja um pôster do livro, antes mesmo do lançamento. ‘Fiquei seis horas aqui, mas valeu a pena.’

Na livraria, oito caixas estavam prontas para atender aos clientes enfileirados desde as 23h. Alguns pais aproveitaram a carona dos filhos, como a jornalista Sílvia Bassi, 43, que acompanhou o filho Gabriel, 12, ambos vestidos a caráter, como bruxa e bruxo.

‘Aluguei as fantasias na hora do almoço e vim direto do trabalho para cá’, contou Bassi.

Aberta 24h, a loja da livraria Siciliano da Cidade Jardim registrou uma venda modesta nas primeiras horas: até o meio-dia de sábado, apenas cinco cópias haviam sido compradas. A expectativa da rede, no entanto, é de que a metade dos 2.800 exemplares importados seja vendida até hoje.

No mundo

O Brasil foi um dos 15 países que tiveram o lançamento de ‘Harry Potter and the Half-Blood Prince’ simultaneamente orquestrado nas primeiras horas do sábado. Em Sidney, na Austrália, mil fãs fantasiados embarcaram num trem chamado Gleewarts Express que os levou a uma local secreto fora da cidade, onde receberam suas cópias.

‘Há tantas perguntas sem respostas. É tão estimulante… Algo aconteceu, uma ponte caiu’, adiantou Elizabeth Mackay, 15, ao ler as primeiras páginas do livro.

Houve corrida de leitores às lojas também em Nova Déli, Pequim e Nova York. Em Edimburgo, 2.000 crianças assistiram à chegada de Rowling a um castelo do século 11, onde a autora leu trechos de um capítulo do livro.

No Reino Unido, cerca de cem livrarias, com 350 mil cópias em estoque, abriram no primeiro minuto do sábado para atender a seus clientes. Lá, o lançamento foi acompanhado de uma guerra de preços: uma cadeia de supermercados ofertou o livro por 4,99 libras (cerca de R$ 20), menos de um terço do preço de venda recomendado, que é de 16,99 libras, e bem abaixo das 8 libras, valor necessário, segundo especialistas, para equilibrar as contas.

Os primeiros cinco volumes da série Harry Potter venderam até hoje quase 270 milhões de cópias em 200 países. O livro foi traduzido para 62 idiomas.’



SEXTANTE
Jerônimo Teixeira

‘A família dos best-sellers’, copyright Veja, 20/7/05

‘A editora carioca Sextante emplacou onze livros na lista de mais vendidos de VEJA desta semana – ou seja, ocupou mais de um terço dela. É um resultado que vem se repetindo regularmente e confirma a Sextante, empresa de porte médio que ainda não completou dez anos de atividade, como o grande fenômeno do mercado editorial na atualidade. Seu maior sucesso é o thriller O Código Da Vinci, do americano Dan Brown, com 840.000 exemplares comercializados (e mais 30.000 de uma edição especial ilustrada). No entanto, o Código é um livro excepcional para a empresa, cujo sucesso está fundamentado num dos nichos mais lucrativos do mercado: a auto-ajuda. A Sextante – que em 2004 faturou 25 milhões de reais e neste ano espera chegar aos 30 milhões – é uma empresa familiar. Trata-se de uma sociedade entre os irmãos Marcos e Tomás Pereira e seu pai, Geraldo Pereira. O clã tem tradição na indústria livreira: Geraldo é filho de José Olympio, um dos editores mais importantes do país no século XX.

Apesar de serem conhecidos pela agressividade no mercado, os Pereira têm um jeitão boa-praça, sereno, muito de acordo com quem leva a vida publicando obras de aconselhamento espiritual. E sempre tiveram grande faro para garimpar obras de potencial no gênero. Um exemplo é Um Dia ‘Daqueles’, do australiano Bradley Trevor Greive, publicado em 2001 – um livro simpático mas anódino, com frases inspiradoras acompanhadas de fotos de bichos. Os irmãos Pereira compraram os direitos do livro na Feira de Frankfurt, na Alemanha, por um adiantamento de 5.000 dólares. Só depois souberam que o preço era um tanto extorsivo: outra editora havia pago a mesma quantia para lançar a obra num mercado bem mais vigoroso, o Japão. ‘No avião de volta para o Brasil, eu me remoía de remorso’, lembra Tomás. Mas o investimento foi rapidamente recuperado: Um Dia ‘Daqueles’ é hoje o segundo livro mais vendido da editora, com 740.000 exemplares.

A fidelidade à linha editorial, aliás, quase custou à Sextante a perda de seu maior sucesso. Geraldo teve acesso ao livro de Dan Brown em 2003, antes de seu lançamento nos Estados Unidos. Marcos e Tomás não se animaram muito em comprar seus direitos, por julgarem-no fora da área de interesse da Sextante. Mas o pai devorou o livro e cismou que deveriam lançá-lo. ‘O argumento que nos convenceu foi que ele prometeu nunca mais insistir para publicarmos outro thriller’, diz Marcos. O livro foi comprado com um adiantamento de 12.000 dólares, oferta que bateu por pouco a de um gigante editorial brasileiro. Em retrospecto, uma pechincha.

Foi graças a esse faro que a Sextante conseguiu expandir sua vendagem de 250.000 exemplares, em 1998, quando surgiu a empresa, para 2 milhões de livros no ano passado – e isso num período de retração do mercado (veja quadro abaixo). A família pretende continuar nessa toada. Neste ano, ainda vai lançar outro livro de Dan Brown, Ponto de Impacto, e espera fechar 2005 com 2,5 milhões de livros vendidos. No ano que vem, a Sextante fará sua primeira grande investida na área de não-ficção. Mas aí, definitivamente, o investimento não será tão às cegas: uma autobiografia de ninguém menos que Pelé.’



J. CARLOS
Suzana Velasco

‘J. Carlos, um designer na década de 20’, copyright O Globo, 17/7/05

‘A designer Julieta Sobral descobriu a inventividade de J. Carlos nas páginas de uma revista. Mas ali não havia um só traço das caricaturas que o fizeram reconhecido. O que despertou a atenção de Julieta foi o projeto gráfico, inovador para a década de 20, como ainda não se via nas páginas de publicações nacionais. Por trás disso, estava José Carlos de Brito e Cunha, o J. Carlos, que em 1922 assumiu a direção artística da editora ‘O Malho S.A.’, responsável por quatro revistas semanais.

Branco nas páginas e espaço entre as colunas

Para conhecer mais sobre ele, Julieta foi atrás de quem ajudou a difundir toda a obra de J. Carlos nos últimos dez anos: o caricaturista Cássio Loredano, que de 1995 para cá publicou cinco livros sobre o cronista visual. Da interação entre uma designer atenta para novas tecnologias e de um fascinado conhecedor do trabalho de J. Carlos surgiu o projeto cujo patrocínio foi aprovado este mês pela Petrobras, que dará R$ 264.292,15 para que seja realizado. Em um ano, a dupla vai digitalizar todas as páginas dos exemplares das revistas ‘O Malho’ e ‘Para Todos…’ de 1922 a 1930, além de lançar dois livros: um de Loredano, ‘J. Carlos n’O Malho’, e outro de Julieta, ‘J. Carlos designer gráfico’ — este uma versão para a dissertação de mestrado da designer, defendida na PUC no ano passado.

— Costuma-se dizer que não há design no Brasil antes da década de 60. Mas se há um projeto, há design. E J. Carlos, ao assumir a direção de arte da editora, fez um projeto diferente para o público-alvo de cada revista — avalia Julieta. — A mudança das edições é impressionante. Ele deixa brancos nas páginas, há espaço entre as colunas, as entrelinhas são mais generosas. J. Carlos é um Midas do design gráfico — diz ela, lembrando que o artista inspirou o designers paulistas Tony e Caio de Marco a criar a premiada fonte tipográfica Samba, em 2003, com estilo art déco.

A idéia partiu da dificuldade da designer em ter acesso e mesmo folhear exemplares das revistas antigas, que chegam a despedaçar na mão. Para Loredano, foi a chance de ver ampliado seu projeto de se debruçar sobre a obra de J. Carlos, que publicou mais de 50 mil caricaturas entre 1902 e 1950.

— Minha pesquisa sobre J. Carlos tinha uma grande lacuna, que era a década de 20. Um período importantíssimo para a história brasileira, com a Semana de Arte Moderna, o tenentismo e anos de estado de sítio. J. Carlos viu o Brasil rural se transformar em urbano, industrial, e eu não tinha a visão do cronista sobre esses acontecimentos — diz Loredano, que já publicou, além de um perfil de J. Carlos, as visões do caricaturista do Rio, do carnaval, da guerra e de datas cívicas.

Para digitalizar 53.568 páginas em 864 edições, Julieta e Loredano farão uma pesquisa na Biblioteca Nacional, no Rio, na Biblioteca Pública dos Barris, em Salvador; e no Museu Lasar Segall, em São Paulo. Depois disso, a dupla lançará o site ‘Memória gráfica brasileira’, com todas as páginas disponíveis na internet.

— J. Carlos fazia de propósito. Ele pensava ‘vou sacanear todos os desenhistas que surgirem depois de mim’ — brinca Loredano. — No início do século, as fotografias eram ridículas, porque o flash assustava os fotografados, enquanto as pessoas que J. Carlos desenhava eram lindas, maleáveis.

Próxima tarefa é livro com J. Carlos para crianças

Loredano ainda pretende lançar trabalhos sobre os traçados para crianças de J. Carlos e sobre seus desenhos de luxo. E vê outras facetas do caricaturista, como a de publicitário. Em 1911, na revista ‘Careta’, J. Carlos criou uma campanha publicitária para a companhia de gás. O leitor podia juntar 20 cupons de uma marca de fósforos, correspondentes a 20 edições da revista, e ganhar um fogão.

— Ele vendia ao mesmo tempo revista, gás, fósforo e fogão. Nem todo mundo ganhava o eletrodoméstico, mas o fogão a gás passou a ser difundido numa época em que o aquecimento era feito a lenha. E isso em 1911 — exalta Loredano, inconformado com o fato de J. Carlos ainda ser pouco conhecido. — Em 1995, eu já tinha 23 anos de carreira e praticamente ignorava seu trabalho. O Brasil é o país dos macacos, não há transmissão de conhecimento. Aqui, todo dia se começa do zero.’