Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paulo Sotero

‘Duas semanas depois de deixar a prisão, onde passou 85 dias por se recusar a identificar uma alta fonte oficial numa investigação criminal sobre o vazamento da identidade de uma agente da CIA, a repórter Judith Miller, do New York Times, publicou ontem um depoimento em que incrimina o chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney, I. Lewis Scooter Libby. Mas uma matéria de mais de uma página que o Times publicou com o relato de Judith levanta dúvidas sobre a honestidade da repórter e deixa mal a direção do jornal, que se manteve solidária à jornalista antes e durante sua prisão, apesar das dúvidas que pairavam sobre sua conduta profissional.

O relato de Judith sobre o depoimento de quatro horas que ela prestou no dia 30, depois de ser libertada, perante júri popular de instrução que ouve o caso, confirma que Libby foi sua fonte e deixa claro que ele mentiu ao promotor federal Patrick J. Fitzgerald se negou ter sido um dos altos funcionários do governo que revelou a ela o nome de Valerie Plame e seu vínculo com o serviço clandestino da CIA. Plame, que aparece nas anotações de Judith sobre suas conversas com Libby como ‘Valerie Flame’ e ‘Victoria Wilson’, é mulher do ex-embaixador Joseph Wilson. Em junho de 2003, Wilson denunciou publicamente a falsidade de um dos argumentos usados pelo presidente George W. Bush sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. Em nada menos de cinco reportagens, baseadas em fontes anônimas da CIA e dissidentes iraquianos, Judith ajudara a construir esse argumento, que acabou sendo a justificativa para a invasão do Iraque.

A investigação federal foi provocada pela coluna que o jornalista conservador Robert Novak publicou no Washington Post e em outros jornais em junlho de 2003, na qual revelou a ligação de Wilson com Plame, citando como fontes dois altos funcionários da administração.

Alguns dias depois, o Post informou que dois altos funcionários haviam falado sobre a agente da CIA a seis repórteres de vários órgãos.

Em seu relato, Judith informa que Libby, por meio de seu advogado, tentou saber o que a repórter diria se prestasse depoimento sobre as duas entrevistas com o alto funcionário nas quais o nome de Plame foi mencionado. A jornalista afirma que interpretou a pergunta como um sinal de que Libby não queria que ela prestasse depoimento e decidiu desacatar a ordem judicial em contrário, respeitando o princípio da confidencialidade das fontes.

A versão, veementementenegada ao Times pelo advogado de Libby, agrava as suspeitas de que o assessor de Cheney violou lei de 1982 que proibe altos funcionários de revelar a identidade de funcionários dos serviços secretos de inteligência. A mesma suspeita pesa sobre Karl Rove, o principal assessor politico do presidente George W. Bush, que falou com outros jornalistas sobre Plame e Wilson. A possibilidade de Libby e Rove serem indiciados é levada a sério em Washington. Fitzgerald, o promotor federal, anunciará suas conclusões até o fim do mês.

CONSTERNAÇÃO

Se o relato de Judith complica a situação de Libby, o matéria do Times traz várias informações desabonadoras sobre a jornalista e deixa patente a consternação que o episódio causa no jornal. O texto, assinado por três repórteres, sugere, por exemplo, que Judith mentiu ao então chefe da reportagem do jornal em Washington, Philip Taubman, quando, indagada, negou ser um dos seis repórteres que, segundo o Post, teriam obtido da Casa Branca a informação sobre Plame. Levanta também fortes dúvidas sobre a integridade da repórter e do processo interno de decisão do jornal ao tentar explicar aos leitores por que Judith nunca escreveu sobre o que ouviu de Libby. Segundo Judith, ela ‘recomendou a matéria ao editor’ mas ‘ouviu um não’.

Jill Abramson, na época chefe da sucursal em Washington e hoje redatora-chefe do jornal, afirma que Judith nunca lhe fez tal recomendação. Peguntada sobre se lamentava a forma como o Times se comportou durante o episódio, Abramson respondeu: ‘A coisa toda’.’



O Globo

‘Judith Miller: ‘NYT’ faz autocrítica’, copyright O Globo, 17/10/05

‘Em artigo publicado ontem na primeira página, o ‘New York Times’ admitiu ter saído arranhado do caso que envolve sua veterana repórter Judith Miller. Libertada recentemente, Miller ficou 85 dias presa por se negar a divulgar a fonte que lhe revelara a identidade de uma agente da CIA. Altos funcionários do governo são suspeitos de terem vazado para a imprensa a identidade da agente.

O jornal disse que embora seus editores tenham apoiado Miller, pagando milhões de dólares para sua defesa legal, deixaram que ela lidasse com o caso como quisesse, e a consideraram ‘uma intrépida repórter cujos editores acharam difícil controlar’.

Miller acabou sendo libertada depois de afirmar que Lewis Libby, alto assessor do vice-presidente Dick Cheney, mencionara em conversas com ela a agente da CIA, sem, porém, identificá-la. Disse que não se lembrava de quem a identificara.

Os editores do ‘New York Times’ haviam apoiado a decisão da repórter de proteger sua fonte, mas internamente a equipe do jornal estava dividida e tensa, particularmente em relação ao modo como o diário estava sendo furado por outras empresa jornalísticas numa notícia que ele próprio publicara. ‘Nem o ‘Times’ nem sua causa saíram ilesos’, disse o jornal no artigo, acompanhado de um depoimento de Miller, na primeira pessoa, sobre seu testemunho judicial.

Editora diz se arrepender completamente

No caso judicial, altos funcionários do governo são suspeitos de terem vazado o nome da agente Valerie Plame – encerrando a carreira dela – em represália ao fato de seu marido, o diplomata Joe Wilson, ter desmentido um argumento do governo para justificar a decisão de atacar o Iraque.

Três tribunais – inclusive a Suprema Corte – se negaram a apoiar a decisão de Miller de não revelar a fonte, o que a levou à prisão. O ‘New York Times’ foi criticado por proteger a fonte da jornalista e esconder a identidade de Libby mesmo depois de outras empresas jornalísticas o identificarem. Perguntada se se arrependia da maneira como lidou com o caso, a editora Jill Abramson respondeu: ‘completamente’. Outros dois editores, Arthur Sulzberger Jr. e Bill Keller disseram que sabiam que a fonte era Libby mas respeitaram a decisão de Miller.’



Folha de S. Paulo

‘‘NYT’ reconhece ter falhado no caso da repórter Judith Miller’, copyright Folha de S. Paulo, 17/10/05

‘O jornal ‘The New York Times’ publicou ontem um texto em sua primeira página em que reconhece que falhou no tratamento dado ao caso da repórter Judith Miller, presa por 85 dias por se recusar a dizer à Justiça quem foi a fonte que lhe revelou a identidade de uma espiã.

O diário afirmou que ‘o ‘Times’ e a sua causa não vão emergir sem marcas [do caso]’.

O ‘NYT’ foi duramente criticado por proteger uma fonte do governo dos EUA que revelou o nome da agente secreta, supostamente para desacreditar um diplomata que defendia serem falsos os documentos que sustentaram a invasão do Iraque.

O jornal declarou que embora os editores tenham acobertado Miller, pagando milhões em honorários, eles haviam deixado o andamento do caso nas mãos dela. No texto, a jornalista é definida como sendo ‘uma repórter audaciosa a quem os editores acham difícil controlar.’

De fato, o editor investigativo Douglas Franz disse que Miller certa vez se chamara brincando de ‘Miss Run Amok’ (senhora corre solta) , porque, segundo explicação da própria, ‘posso fazer qualquer coisa que eu quiser.’

Três cortes, inclusive a Suprema Corte, condenaram Miller por proteger sua fonte, forcando-a a ir para a cadeia. Dentro do jornal, as equipes estavam divididas.

Enquanto o time do jornal era criticado pela história da prisão da jornalista, o ‘publisher’ Arthur Sulzberger Jr. e o editor-executivo Bill Keller a levavam para um hotel em Washington para receber uma massagem, uma sessão de manicure e um jantar.

O artigo do Times reconheceu que Miller, que já ganhou um prêmio Pulitzer para o jornal por artigos sobre a al Qaeda, era uma figura de pessoa de papel decisivo na redação.

Miller também chamou a atenção por suas reportagens sobre armas de destruição em massa no Iraque, que nunca foram encontradas. Em maio de 2004, o jornal publicou uma nota crítica de sua cobertura do início da guerra. O jornal declarou no domingo que cinco dos seis artigos publicados eram da autoria de Miller.

Em entrevistas, Sulzberger e Keller disseram ter preferido seguir os princípios do jornalismo e não questionar Miller sobre as conversas dela. Quando voltou à redação do ‘The New York Times’ sob aplausos, Miller disse reconhecer que ‘The Times e eu não fizemos um trabalho suficientemente bom para que as pessoas entendessem o ocorrido.’’



JABÁ NOS EUA
Veja

‘Sucesso pré-pago’, copyright Veja, 19/10/05

‘Há duas semanas, uma reportagem de VEJA mostrou que uma velha prática continua em voga no Brasil: o jabá, aquele presentinho que as gravadoras distribuem aos meios de comunicação para conquistar simpatia e exposição para os seus lançamentos. A gravadora Warner deu trinta Ipods Shuffle (tocadores de música digital) a jornalistas e formadores de opinião, como parte do ‘pacote de divulgação’ de um novo disco da filha da cantora Elis Regina (1945-1982). Na semana passada, ao ser procurada pela revista, a Warner dos Estados Unidos disse que sua subsidiária brasileira não a informou da estratégia de distribuir os tocadores juntamente com o CD. ‘Até onde sabemos, não houve nada inapropriado no lançamento’, declarou, laconicamente, a relações-públicas da companhia, Amanda Collins, pega de surpresa pela história. O ‘mensalinho’ da Warner foi, sim, um gesto inapropriado. Mas é compreensível que a matriz seja evasiva. Nos Estados Unidos, o jabá é punido com rigor. A gravadora, aliás, está sob investigação das autoridades, assim como suas concorrentes EMI e Universal. A Sony/BMG, outra gigante do disco, acaba de ser condenada pela prática.

Dois meses atrás, a Sony/BMG foi obrigada a pagar uma multa de 10 milhões de dólares por causa da troca de favores entre a gravadora e diretores de estações de rádio. A companhia agraciava os radialistas com dinheiro, viagens, promoções e presentes (como aparelhos eletrônicos). Para retribuir, eles cediam espaço na programação, como comprovou uma investigação conduzida pelo promotor nova-iorquino Eliot Spitzer, que personifica a guerra contra o jabá nos Estados Unidos. A Sony/BMG usou do expediente para emplacar músicas de cantoras como Celine Dion e Avril Lavigne nas paradas. Na semana passada, dois executivos da Clear Channel, uma das principais redes de rádio do país, foram demitidos por aceitar suborno de gravadoras. Nos Estados Unidos, a chamada ‘payola’ – junção das palavras ‘pay’ (pagar) e ‘vitrola’ – resultou em escândalos nos anos 60 e nos 80. Agora, a Justiça parece ter se voltado com força inédita contra ela. ‘A prática é lesiva porque leva o consumidor a crer, equivocadamente, que todo o sucesso do artista se deve ao mérito próprio’, diz Spitzer. O combate à payola parte ainda de outro princípio: é impossível saber se, no íntimo, um formador de opinião elogiou um produto por convicção ou por desonestidade, mas a entrega e o recebimento de presentes criam uma dúvida que contamina o jogo.

‘Está claro que se trata de suborno’, disse o jornalista americano Frederic Dannen, autor de um alentado estudo sobre a indústria da payola, ao saber do ‘mensalinho’ da filha de Elis. Por aqui, infelizmente, há menos clareza. Poucos jornalistas devolveram o presente à gravadora imediatamente. Outros o fizeram de forma açodada, depois de saber que VEJA publicaria uma reportagem sobre o assunto. Outros, ainda, tiveram de consultar sua chefia para decidir se era certo ou não receber jabá. As manifestações sobre a reportagem de VEJA se desviaram do tema ou trataram a prática como um problema menor. Um dos argumentos é o de que o Ipod Shuffle custa apenas 99 dólares. Ainda que isso fosse verdade (e não é: a menos que tenham sido trazidos como contrabando, os aparelhos são vendidos no Brasil pelo preço mínimo de 600 reais), a tentativa de afagar e aliciar profissionais com um presentinho ‘da moda’ não estaria descaracterizada. Dizer o contrário é como pensar que o escandaloso mensalão é ‘somente’ caixa dois.’