Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Realidade do Brasil x realidade brasileira

É de se esperar que os cursos de pós-graduação no Brasil, principalmente aqueles em stricto sensu, de quem esperamos idéias inovadoras e que se propõem a modificar ou apresentar alternâncias de relevo nos campos do saber, atinjam a ponta e, portanto, melhorem o dia-a-dia dos brasileiros.

Para que eles se desenvolvam a contendo, os cofres públicos federais e estaduais disponibilizam verbas que garantem aos futuros pesquisadores dedicação de seu tempo para que as pesquisas se desenvolvam em um tempo hábil e em condições de estudo.

Quanto a essas verbas, não nos caberia, para o presente artigo, a discussão de que a sua disponibilidade seja suficiente ou não – o importante é que elas existem e são dadas.

Quanto a serem gastos públicos, é ponto pacífico. No entanto, o gasto público direcionado para um público de mestrandos e doutorandos não está somente na concessão das verbas, mas também no uso que a mão-de-obra que se propõe a treiná-la e o espaço físico disposto, também sejam contabilizados como gasto do Tesouro.

A realidade é outra

O gasto disponibilizado pelos cofres públicos tem um carimbo de que as pesquisas venham ao encontro da sociedade brasileira no intuito de melhorar a sua qualidade de vida e, portanto, nossa.

Para que a qualidade de nossos produtos atinja seu melhor, é importante fator a escolha daqueles que se beneficiarão não somente das verbas pessoais de custeio, mas também daqueles que se beneficiarão da utilização das vagas postas à disposição da sociedade em um processo de seleção.

Por isso, dada a importância de tais cursos (e não estamos desprezando os cursos de graduação, que também merecerão este tratamento), o processo de seleção deveria ser o de mais alto teor classificatório, enxergando no mérito da proposta de pesquisa, na capacidade intelectual do proponente, no olho clínico do entrevistador, professor já experimentado e em nível educacional comprovado, a real pontuação para aquele que, utilizando as verbas públicas, através de bolsa ou utilização do espaço físico proporcionado e ocupação de mão-de-obra qualificada, seja habilitado ao grau da pós-graduação.

São essas as realidades brasileiras esperadas nos processos de seleção. Mas a realidade do Brasil não é essa.

Tendo a oportunidade de acompanhar parente próximo na busca de aprovação ao curso de mestrado em Educação em duas universidades federais, pude testemunhar com a sua luta e em conversas com candidatos ao curso, pessoas muitas vezes residentes em locais distantes dez, treze horas, que a realidade do Brasil é outra.

Escola pública não vai bem

Vendo frustradas as tentativas de aprovação, causou-me curiosidade pesquisar naquelas duas universidades o perfil dos aprovados. O que havia em comum entre eles era a origem da graduação e, em um percentual de quase 100%, eram originados na própria universidade ou estavam ligados a programas cujos orientadores estavam à frente.

À primeira vista, nada haveria de mal nisso, pois poderíamos pressupor um trabalho anterior em consonância com a linha de pesquisa da universidade. Mas, tal fato relevante não deveria constar no edital e com pontos adicionais a serem considerados? Qual seria o papel dos ‘outros’? Compor um número que dê substância ao curso? Vir a suprir uma vaga que porventura o postulante de mesma origem não seja capaz de atingir? No nosso entender, qualquer uma delas prejudica o destino da utilização da verba pública. Principalmente na área da educação.

Motor do desenvolvimento de qualquer país, a pesquisa é a resposta aos problemas da sociedade. E educação é o principal motor desse desenvolvimento. Em sendo uma verba pública, e portanto devendo retornar à sociedade em forma de soluções, a universidade cada vez mais se volta para a realidade brasileira, e não para a realidade do Brasil. Realidade brasileira seria 98,8% das crianças nas escolas, englobando-se aí a pública e a privada. A realidade do Brasil é a escola pública. E essa não vai bem.

Modificar nossa matrix

Um dos motivos porque não vai bem é porque cada vez mais os graduados em licenciaturas são preparados por uma universidade distante da realidade do Brasil e próxima à excelência das estatísticas da realidade brasileira. Mesmo nos estágios obrigatórios, o graduado é preparado para encontrar uma escola nos moldes universais com os parâmetros de educadores estrangeiros, que se chocam com a realidade do Brasil e, por que não, deveriam se sentir enganados.

Um dos motivos desse engano continuado não seria porque, corroborando a nossa constatação acima, os pesquisadores saem da própria universidade, elaboram teses em linha com o que aprenderam e se propõem a solucionar casos dentro de uma realidade brasileira, e não dentro da realidade do Brasil?

O paciente é tratado no hospital quando o seu problema é de posto de saúde.

Considerando o raciocínio simplista de que o graduado, ao encontrar a realidade do Brasil, vai vivê-la, experiênciá-la, sofrer as conseqüências no embate diário da escola pública, deveria ser ele, e tão somente ele, aquele a retornar aos bancos universitários, no nível de mestre trazendo os problemas da realidade do Brasil e propor soluções que mudem a realidade brasileira e a transportem do campo virtual para o real. Não seria essa a forma de modificar a nossa matrix?

Questão de sobrevivência

O feudo acadêmico deveria assim ser ocupado por professores da educação básica, visando às verbas públicas se direcionarem para a modificação. É claro que estamos falando da especialidade Educação, que no final das contas é aquela que modifica todo o processo de ensino de um país. Não gostaria de me ater às outras especializações. Mas será que elas também não estariam tratando da realidade brasileira, e não a do Brasil?

Ao contrário da importância na qualificação ao mestrado ser de graduados que atuem ou foram ex-alunos de orientadores, a verba pública, representada pelo espaço físico, intelectual e de utilização da mão-de-obra docente qualificada, não deveria ser justamente dos profissionais que atuam na realidade do Brasil, e não da realidade brasileira? Esses profissionais não trariam as angústias mais presentes da realidade do Brasil? Não seriam eles realmente os potenciais modificadores da realidade brasileira?

Cada vez mais massacrados pela realidade do Brasil, não vêem as possibilidades de trazer a experiência docente no nível básico para os bancos da Academia. Na busca de soluções, são colocados para o desvio, tendo em vista o seu afastamento temporal dos tempos de graduação e, portanto, terem perdido o tempo certo para a especialização. Teriam eles, sem dúvida, a possibilidade de contestar o saber acadêmico e burocrático da realidade brasileira, o professor de ensino básico é o verdadeiro e mais importante soldado nessa guerra particular.

Só se ganha uma guerra treinando soldados da frente de batalha e ouvindo suas necessidades, e não qualificando oficiais, sem o menor conhecimento prático. Profissionais debruçados sobre mapas estatísticos e nas salas protegidas dos feudos acadêmicos, ditando ordens que são ignoradas por uma questão de sobrevivência, porque são ditames determinados a uma escola e aluno ideais.

Como seria a releitura de Paulo Freire?

Em vários livros sobre educação no Brasil o enfoque é para a qualificação do profissional da educação básica, isso em se falando de realidade brasileira. Mas assim como os alunos, os seus professores são preteridos e, portanto, a realidade do Brasil é ignorada.

Corroborando esse pensamento gostaria de expor os textos abaixo:

‘As faculdades de pedagogia formam professores incapazes de fazer o básico, entrar na sala de aula e ensinar a matéria. Mais grave ainda, muitos desses profissionais revelam limitações elementares: não conseguem escrever sem cometer erros de ortografia simples nem expor conceitos científicos de média complexidade. (…) Minha pesquisa aponta as causas. A primeira, sem dúvida, é a mentalidade da universidade, que supervaloriza a teoria e menospreza a prática. Segundo essa corrente acadêmica em vigor, o trabalho concreto em sala de aula é inferior a reflexões supostamente mais nobres’ (DURHAM, Eunice. ‘Fábrica de maus professores’, revista Veja, São Paulo, Abril, ano 41, nº 47, p. 17, nov. 2008).

A continuar a perpetuação das escolhas, estaremos fadados a ter mestres analfabetos?

E, ainda, recorrendo ao mestre Paulo Freire, quando de seus contatos com o alu-

nado:

‘Eu falava um idioma intelectual que tinha aprendido na universidade. Eles falavam a linguagem da cultura de massa. Ambos os idiomas eram produtos de uma sociedade dividida segundo raça, sexo e classe social. Assim, você pode ver o projeto a favor do discurso libertador, inventando comunicações democráticas, que concebo como intercâmbios verbais que contradizem a hierarquia, transformando a separação de poder que existe entre professores (grifo nosso).

O que pesou, eu acho, foi recusar-me a instaurar a linguagem do professor como único idioma válido dentro da sala de aula. Minha linguagem importava, mas a deles também. Minha linguagem mudou e a deles também’ (FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia. São Paulo, Paz e Terra, 1997).

Como seria a releitura do texto do mestre Paulo Freire acima trocando os atores, sendo o aluno o professor do ensino básico, e como professores a Academia?

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Licenciado em Língua e Literaturas de Língua Portuguesa pela UERJ, pós-graduado em lato sensu pela UFJF