Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Reformas, dogmas e radiodifusão

Em seu discurso de despedida do Senado, já eleito Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso anunciou as diretrizes a serem empreendidas nos anos seguintes: ‘Resta, contudo, um pedaço do nosso passado político que ainda atravanca o presente e retarda o avanço da sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas – ao seu modelo de desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista’. Obviamente não se altera um modelo de desenvolvimento da noite para o dia (ou mesmo em quatro anos, como os previstos inicialmente), porém essa não pode ser justificativa para o imobilismo. Para isso existem as reformas administrativas, pelas quais os Estados são responsáveis. Na gênese das reformas, porém, residem problemas.

No Brasil republicano, as reformas mudam de roupagem formal – administrativas, de Estado, do Aparelho de Estado -, mas reforçam velhos dogmas, como a eficiência. Ora, argumentará o leitor, qualquer mudança na máquina pública deve idealmente almejar a eficiência. Não há dúvidas acerca desse postulado. O problema central resume-se ao conceito de eficiência, evocado como justificativa para o emprego de práticas mais ou menos democráticas, centralizadoras ou descentralizadoras, transparentes ou indevassáveis. Ou seja: ao significar tudo, eficiência não significa nada. A questão é como essa eficiência pode ser medida, o que remete a outro problema referente às reformas.

No contexto brasileiro, essas iniciativas tendem a prever soluções iguais para problemas dissonantes e, por vezes, opostos. No caso da reforma do Aparelho de Estado, defendida pelo ministro Bresser Pereira no governo FHC, o alcance da eficiência dependia de uma flexibilização (termo na moda) da gestão pública, prevendo novas estratégias e papéis para as instituições públicas, que, a depender de sua essencialidade ao Estado, poderiam ser administradas diretamente pelos governos ou pela sociedade. Daí advém o quadro clássico do período, a privatização de parte do parque produtivo nacional, de repente considerado não mais essencial ao Estado. Tecer comentários adicionais sobre esse ponto, aqui, representaria uma digressão incompatível com o limite de tamanho do artigo.

A privatização foi apenas uma das alternativas escolhidas pelo governo federal. Outra era a criação de novas entidades, não vinculadas ao Estado, que deveriam se responsabilizar por organizações não mais consideradas como estratégicas. Dentre essas estavam emissoras de radiodifusão, a serem gerenciadas pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), criada em 1995. Essa é organização social de direito privado, sem fins lucrativos e de interesse coletivo, cujo vínculo com o Estado se firma por meio de um contrato de gestão. Desde sua criação, opera TVE Brasil (Rio de Janeiro) e TVE do Maranhão (as duas únicas emissoras de televisão educativas federais que restaram); um canal de TV via satélite, a TVE Brasil; três de rádio, Rádio MEC AM 800, MEC FM 98,9 (ambos no Rio de Janeiro) e MEC-Brasília 800; e um canal de rádio por satélite, MEC-SAT 3.750.

Independentemente do juízo de valor que se faça acerca desse empreendimento, é preciso constatar, de antemão, a incapacidade do Estado brasileiro de lidar com uma estrutura de comunicação educativa própria – mais por ausência de diretrizes claras que por inviabilidade do projeto. Quando o decreto-lei 236, de 1967, tornou viáveis as emissoras educativas, esperava-se que a inovação pudesse servir de mecanismo auxiliar e alternativo à educação formal no Brasil. No entanto, o próprio documento, ao atribuir a transmissão de aulas, palestras, conferências e debates como a programação possível, ensaiava um projeto inócuo, a partir da crença de que um meio de comunicação de massa poderia formalmente substituir a escola em diversos níveis. Até o governo FHC, as emissoras educativas (não apenas as federais, como também as estaduais), em maior ou menor grau, acumulavam alguns bons momentos de experimentação em termos de linguagem, mas penavam com crises financeiras, ausência de infra-estrutura condizente, apropriação política e, principalmente, falta de identidade da programação. Não seria exagero dizer que o Brasil abdicou, durante décadas, de um projeto consistente de comunicação de massa educativa.

Debate de princípios

No que se refere especificamente às alternativas administrativas propiciadas pelo governo FHC, o repasse das emissoras educativas à organização social ignorou uma forte obstrução imposta pelo decreto-lei 236. Considerando-se que, via de regra, a principal fonte de renda de uma emissora é a publicidade e que o documento legal a proibia por completo, a comunicação educativa no Brasil sempre dependeu de repasses diretos do Estado. No mesmo marco legal em que estabeleceu as novas condições da Acerp, foi permitida às emissoras de radiodifusão submetidas às organizações sociais a veiculação de publicidade institucional e de apoio cultural. Na prática, as TVEs continuaram mormente dependendo de repasses do governo federal e da limitada publicidade institucional proveniente de empresas estatais.

A transição gerou um outro problema. Até então, os funcionários da TVE do Rio de Janeiro, em sua maioria, eram servidores públicos, com todas as implicações que a estabilidade tem em uma atividade naturalmente dinâmica e dependente de inovações. Criada a organização social, servidores perderam cargos de confiança, foram alocados em diversos ministérios e tratados como quadros em extinção, sofrendo prejuízos salariais crescentes com o passar do tempo. Por outro lado, a flexibilização permitiu a contratação de funcionários nos moldes da CLT, nem sempre por parâmetros objetivos, e mais valorizados que seus colegas de trabalho. A adoção da organização social padrão sem condicionantes específicas para as emissoras educativas significou a desvalorização do know-how.

Por fim, face à flexibilização descontextualizada e desligada da natureza da atividade em questão, perdeu-se uma excelente oportunidade de se resolver antigo vácuo aberto pela Constituição Federal, que previu, como sistemas da radiodifusão, o privado, o público e o estatal. Ao se configurarem como partes de uma organização social, logo desvinculadas diretamente do governo federal, as emissoras educativas permaneciam estatais ou tornavam-se públicas? E o que isso, àquele tempo, significava? Perdeu-se, enfim, um momento ímpar, que já fora iniciado com a criação de canais obrigatórios pela Lei do Cabo de 1995, para o debate acerca dos princípios do sistema público e de suas emissoras. O presente, a despeito da máxima de que a história não se repete, abre espaço para que esse necessário debate volte a ocorrer.

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Jornalista e doutorando em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV, autor de Políticas públicas para radiodifusão e imprensa (Ed. FGV, 2007) e organizador e autor de Estado e gestão pública: visões do Brasil contemporâneo (Ed. FGV, 2006)