‘Octavio Ianni, um dos mais sólidos cientistas sociais da esquerda brasileira – o que não quer dizer que eu concordasse com ele, já que esquerdista em sua solidez ou sólido em seu esquerdismo -, morreu acreditando que a mídia era o novo Moderno Príncipe, numa referência à visão gramsciana de partido. Para Ianni, a mídia é que havia se tornado, como queria Gramsci para um partido, o verdadeiro imperativo categórico, capaz de definir o verdadeiro e o falso, o moral e o imoral, sempre segundo seus interesses.
Eu discordava disso, embora apreciasse o achado. Até porque o professor entendia que essa tal mídia tinha, vamos dizer, a sua própria ideologia e teria construído os caminhos para impô-la ao resto da sociedade. Ianni morreu no dia 4 de abril deste ano. O PT já havia feito as lambanças ideológicas as mais improváveis. Quando o professor fez lá a sua formulação, certamente não contava que, no Brasil, a antes satanizada (pela esquerda) Rede Globo viesse a se transformar no principal veículo de propaganda do petismo, até então o maior partido de esquerda do mundo em país democrático.
Sim, é verdade: a proximidade do maior grupo de comunicação do país com Lula e seu PT só existe porque, afinal de contas, nem o líder nem a legenda se mostraram dispostos a levar a própria história a sério. Partido e presidente demonstraram ter passado os 20 anos anteriores apenas no gozo das delícias das bravatas. A um rendeu até aposentadoria precoce e permanente. Não há uma miserável convicção de ambos que não tenha sido derribada – se alguém se lembrar de alguma pauta de PT-Lula de oposição que tenha sobrevivido no governo, pode me mandar um e-mail, que publicarei aqui como novidade.
Ianni errava, vamos dizer, em ver a mídia como um ente de razão capaz de operar essa imposição de seus valores. Vá lá que os veículos os tenham, mas não são únicos e tampouco impositivos. Numa formulação mais simples: o PT aderiu ao que antes rejeitava (e, portanto, caiu nos braços do suposto moderno Príncipe Eletrônico) ou porque quis ou porque não tinha alternativas compatíveis com o que pregava antes (cada um escolha um dos dois motivos). Se fez porque o quis, responde por seus atos; se fez porque não tinha saída, é sinal de que não podia responder por si mesmo antes.
Mas sigamos: acho que Ianni se espantaria ao ver tal convergência de visão de mundo entre, por exemplo, o Jornal Nacional, o governo federal e seus outros interesses tentaculares. Não sei, por exemplo, qual é o critério jornalístico que fez a emissora decidir, na segunda-feira, não noticiar, no seu principal telejornal, o resultado da pesquisa eleitoral em São Paulo e no Rio, que ela mesma encomendara ao Ibope. As informações ficaram confinadas ao SPTV e ao Jornal da Globo, de menos audiência. Tudo é história, mesmo quando a farsa recalcitra.
Para todos os efeitos, é claro, o levantamento em que Serra aparece com praticamente o dobro das intenções de voto de Marta (30% a 16%) foi noticiado no jornal de interesse local – o SPTV -, aquele que retrata a praça do universo pesquisado. Como se a eleição na maior capital do país fosse um problema quase bairrista. Boa parte dos paulistanos, àquela hora, via a vida escorrer, inútil e pesadamente, numa das centenas de engarrafamentos. À hora em que Ana Paula Padrão deu os números, no jornal já vizinho da madrugada, aqueles mesmos estavam dormindo, preparando-se para os congestionamentos que inauguram as manhãs.
Lembro-me de um longínquo 25 de janeiro de 1984. Cheguei em casa cansado, molhado, faminto, moído por um dia inteiro de esforços para a realização de um megacomício em defesa das Eleições Diretas. Era militante de uma organização trotskysta. Cada um assumia como sua a responsabilidade pelo sucesso do evento – cuja realização, de resto, se deveu ao governador-estadista Franco Montoro, a ninguém mais. Mas cada Quixote tinha lá seus desafios pessoais a vencer. Diante do Jornal Nacional, perplexo, fiquei sabendo que participara apenas de um evento em comemoração ao aniversário de São Paulo… Os que gostam de reescrever a história a soldo hoje dizem que isso é uma falsa memória, que a TV Globo noticiou, sim, o evento com correção. Mentira! A referência às Diretas foi feita apenas no tal jornal local – e, ainda assim, com espantosa brevidade. O país tinha uma pauta, e a principal emissora do país, também.
É claro que essa questão da pesquisa eleitoral de São Paulo não tem a mesma importância. Mas revela, igualmente, uma coincidência de agenda entre a vontade oficial e a, por assim dizer, vontade do principal grupo de comunicação do país. Não, não estou aqui a sugerir, de maneira velada que fosse, qualquer forma de controle da informação. Quem gosta disso, de maneira manifesta, é gente como Luiz Gushiken ou Marta Suplicy – que, na segunda, reclamou dos ‘adjetivos’ dos jornalistas e da, na sua avaliação, confusão entre opinião e informação. Não deve ter nada contra, por exemplo, a linha adotada pelo Jornal Nacional.
Nesta terça, a propósito, os jornalistas foram à rua, naquele estilo muito característico de demonstrar o fato geral por meio da ocorrência particular – sempre tem uma Dona Maricota qualquer que justifica a pauta -, e, mais uma vez, exaltaram os empregos criados no Brasil, aquilo que parece ser efeito do borbulhante crescimento do país. Depois dos muitos testemunhos, alguns quase emocionados, chegou a hora de lembrar que os postos de trabalho criados eram temporários e com registro precário. Mas aí chegou a vez de o repórter se emocionar. E lascou (e vai entre aspas, juro): ‘Mesmo temporário, trabalho é algo que emociona um operário’. Nem me digam!
A parte concessiva do período, esse ‘mesmo temporário’, poderia render um verdadeiro tratado de política econômica e de economia política, especialmente num país em que a precarização das condições do trabalho e o explosivo crescimento da mão-de-obra informal respondem pela queda da renda do trabalhador há 15 meses consecutivos. Mas isso, ora vejam!, é só economia, ou, mais amplamente, economia política. Uma bobagem, um detalhe irrelevante quando se sabe que trabalho é, antes tudo, matéria para a emoção. No universo do puro conceito, o mergulho é mesmo no obscurantismo. Dado que ser humano não é abelha, formiga ou cupim, o ‘ser operário’ não é uma imanência, mas uma condição vivida na prática. O ‘trabalho’ não emociona o operário, antes o define e lhe dá uma condição social historicamente determinada. O resto é má novela.
E, notem bem!, ainda assim, continuo discordando do companheiro Ianni. Nem a adesão, então, da Globo à fase Figueiredo da ditadura (a sua intimidade era com o regime ele-mesmo), ou a sociedade de valores que estabeleceu com a primeira fase do governo Collor, ou o estímulo a que os ‘fiscais de Sarney’ cantassem o Hino Nacional à porta dos supermercados durante o Plano Cruzado, ou a interdição do debate econômico nos anos FHC, nada disso foi capaz de mudar a realidade ou impedir a história de seguir seu curso, com a dose de indeterminação e imprevisibilidade que lhe são características.
Apontar, pois, certos alinhamentos não se reveste do caráter de ‘denúncia’ ou qualquer coisa do gênero. Serve apenas para mapear os caminhos que o poder busca para se exercer ou os caminhos percorridos por determinados grupamentos para manter, consolidar ou ampliar a sua influência. É um dado da realidade que deve servir de informação ao debate político.
Senhora do Destino
Estreou, a propósito, na segunda, a nova ‘novela das oito’ (que vai ao ar quase às 21h). Pus para gravar o primeiro capítulo e vi de madrugada – quando a turma do engarrafamento já está dormindo… Eu, a elite! Tudo feito com a competência técnica costumeira, de onde a Globo extrai o seu prestígio (e não das intimidades com o poder).
Mais uma vez, a ditadura militar aparece ali com a sua face horrenda, pretextando o que deve evoluir, sei lá, para uma história de dramas familiares e amorosos, íntimos da vida de todos nós (e, por isso, as novelas brasileiras fazem um justificado sucesso). Quem diria! Tenho 42 anos. Ainda me lembro das pororocas de ‘Amaral Netto, o Repórter’, apenas a fração tão edulcorada como virulenta da adesão do Grupo Globo à ditadura militar. Curioso esse pessoal: quando não está ocupado em depor governos (leiam os editoriais de O Globo na fase pré-golpe…), está ocupado em justificá-los. Qualquer um.
Com algum atraso, hehe…, as coisas são chamadas pelo seu devido nome. Imagino o presidente Costa e Silva, no primeiro capítulo de Senhora do Destino, a dizer algo como: ‘Mesmo temporário, trabalho é algo que emociona um operário’. Seria uma rima, mas a novela não teria solução. O corolário, pois, é o seguinte: vamos ficar com os ficcionistas. Não deixam de ser bons repórteres. E, não raro, têm mais imaginação.’
PENAS DE ALUGUEL
‘Quem são as penas de aluguel?’, copyright Folha de S. Paulo, 30/06/04
‘O vice-presidente José Alencar e o ministro Ciro Gomes fizeram gravíssimas acusações que, suspeito, ninguém vai cobrar.
Refiro-me à suposta (ou real) censura que ambos estariam sofrendo por conta da crítica aos juros altos ou por, segundo Ciro, pensar ‘alternativas que não sejam essa ortodoxia imposta por esse modelo econômico’.
O grave nessa história não é tanto a suposta censura. Embora nem o ministro nem o vice-presidente sejam de fatos sabotados quando emitem suas opiniões, o fato é que a ortodoxia criou uma forte asfixia no debate público, marginalizando os dissidentes (ou ‘debochando’ deles, como prefere Ciro).
Grave mesmo é a acusação de que o ‘deboche’ vem de ‘articulistas alugados’, segundo o ministro.
Ciro tem a obrigação elementar de dar nome aos bois. Quem são os alugados? Quem os aluga?
É bom deixar claro que não me sinto atingido, porque um dos poucos pecados que não cometo é defender o modelo atual ou os juros altos. Mas boa parte dos colunistas é fã de carteirinha do modelo.
Passam a ser todos suspeitos de estarem agindo não por convicção, mas por sórdidos interesses.
Assim como fica a suspeita de que alguém do próprio governo esteja alugando articulistas para defender o modelo. Afinal, quem, além das instituições financeiras, tem o maior interesse em que digam que a política atual é boa, correta e, portanto, não deve ser modificada? A resposta é óbvia: os setores do governo que a impuseram e a mantêm.
Não sei se o ministro terá a coragem de dar nome às penas de aluguel. Mas é do interesse dos próprios colunistas (e alguns são cabeças coroadas do jornalismo tupiniquim) cobrarem a lista, sob pena de permanecerem todos sob suspeita.’