‘Desagradei imensamente parcela da elite, as pessoas que se negam a pagar um IPTU maior, a pagar R$ 6 de taxa de lixo para fazer o aterro, mesmo que gastem R$ 70 por mês para ter TV por assinatura
Imagine eu, abandonar a cidade? É tão fora do meu jeito de ser que não me passou pela cabeça essa interpretação; o que passou é que iam dizer que eu ia viajar às custas do erário
‘Não há fila no PT.’ Essa é a maneira pela qual Marta Suplicy, 59, admite estar disposta a participar do jogo da sucessão de Geraldo Alckmin em São Paulo. Sem citar Aloizio Mercadante, a prefeita rejeita a idéia de que o senador seja o candidato natural do PT ao governo do Estado em 2006, como defendem vários petistas graúdos.
‘Existem várias pessoas que se declararam candidatas e outras que se declararam não-candidatas. Eu não estou nessa confusão. Não está na hora de sair candidata a nada, mas também não está na hora de dizer que não vou ser candidata a coisa nenhuma’, disse Marta na última quarta-feira, durante entrevista à Folha em seu gabinete na prefeitura paulistana.
Bem-humorada, solícita e reconhecendo estar muito mais à vontade do que na entrevista concedida ao jornal durante a temporada eleitoral -’campanha é duro, a gente sofre muito’-, Marta afirmou que sua prioridade, depois de transmitir o cargo a José Serra em 1º de janeiro, será colaborar para a reeleição de Lula. Disse estar disposta a percorrer o Estado ou o país, pois considera as políticas sociais implantadas em São Paulo uma ‘referência nacional’.
Essa, afirma, é a marca que deixa após quatro anos à frente da cidade. Mas a ‘prioridade à periferia’ foi também, na avaliação da prefeita, uma das principais razões da rejeição a seu nome ‘pelos mais abastados’. ‘Uma mulher da elite, mas que fez o governo mais esquerdista do Brasil, desagradou imensamente a parcela mais conservadora da sociedade paulistana’, diz Marta.
Ela admite ter cometido um ‘erro de avaliação’ a respeito do impacto de sua viagem recente à Europa. ‘Como eu ia tirar dez dias sem remuneração, ia pagar a minha própria passagem e tenho um vice que é absolutamente competente, achei que eu poderia ir.’
Marta disse ainda que os atritos na campanha com o senador Eduardo Suplicy, seu ex-marido, não deixaram seqüelas: ‘Eu me dou muito bem com ele. Aí não tem estresse’.
Encerrada a entrevista, Marta quis mostrar aos jornalistas as dependências do prédio da prefeitura, edifício Conde Matarazzo, inaugurado em 1939. Fez com que conhecessem até o imenso banheiro do prefeito, com piso de madeira e paredes de mármore: ‘É lindo ou não é?’. Nada de fotografias, no entanto.
Depois, Marta foi à sacada do prédio, com vista para o Viaduto do Chá. Olhou para a rua, repleta de gente, e disse: ‘Gosto disso, dessa confusão, dessa energia’. Acenou a quem passava pela calçada, recebeu beijos e retribuiu. Apontou, a seguir, para o edifício no Vale do Anhangabaú onde fica o instituto de Fernando Henrique Cardoso. ‘Ele brinca que me dá tchau da janela. Agora vai ter que dar tchau para o Serra.’
Folha – Quais foram os marcos de sua gestão na cidade de São Paulo?
Marta Suplicy – Não dá para falar dos marcos sem falar antes da condição em que a cidade foi recebida. Encontramos o caos, além do que imaginávamos. Não só era um antro de corrupção. Faltava computador, os funcionários não tinham nenhum interesse em trabalhar, era um desânimo absoluto. Fora o aumento de pobreza.
Diante dessa situação, começamos a organizar a cidade e dar um olhar especial às pessoas mais pobres. Foi essa a prioridade. A revolução na educação, a implantação do Renda Mínima, a criação do primeiro sistema que realmente funciona de Bilhete Único. É o que vai ficar de marca, mas também o que dificultou a reeleição.
Folha – O que faria diferente?
Marta – Na tributação nós acertamos, era preciso fazer o IPTU progressivo, mas comunicamos tudo errado, perdi nisso.
Folha – Por que ‘tudo errado’?
Marta – ‘Martaxa’, por exemplo. Eles conseguiram um belo apelido, ainda que o PSDB tenha muito mais taxas de lixo e de luz em outras cidades. Eu devia ter explicado de outro jeito, não sei. Mas que eu fiz errado, é evidente.
Folha – Após a eleição, tornaram-se freqüentes notícias de atraso de pagamentos. Isso já era previsto na campanha ou o cobertor estava mais curto do que a sra. pensava?
Marta – O 13º da prefeitura foi pago. Não foi pago celetista de autarquia, o que é diferente. Metade dos municípios brasileiros não vai pagar 13º. São Paulo vai.
Nós temos um repasse de R$ 23 mi do SUS, feito regularmente, que nunca atrasou. Na segunda-feira, em vez de R$ 23 mi, vieram R$ 11,6 milhões. O que que aconteceu? Ajuste de caixa federal.
Uma das coisas que eu tenho claro é que nós vamos cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Vamos pagar os nossos fornecedores, apesar de um certo clima de tumulto no final do governo.
Folha – O secretário de Finanças da prefeitura afirma que a LRF vem sendo cumprida. Já os tucanos apontam o não-pagamento de parcela da dívida da capital em novembro. Quem está certo?
Marta – Foi pago ontem [quarta-feira]. E vai ser pago tudo certo, o que não foi pago vai ser.
A dívida era de R$ 100 mi. Nós pagamos R$ 30 mi. Faltaram R$ 70 mi de um dinheiro do SUS que tinha de entrar, que tinha sido negociado dois meses antes, e que não entrou. E eu mandei pagar ontem, mesmo não tendo entrado. Olha, todo dia é um sufoco: briga pelo dinheiro do ministério que não solta, pelo precatório de R$ 62 mi do governo do Estado que deveria entrar e não entrou.
Folha – Qual será a sua atividade política no próximo ano?
Marta – Recebi vários convites, que estou estudando, para falar sobre a experiência da prefeitura no exterior. Vou fundar o instituto. Ainda não temos o nome, mas já temos muito bem claro o que vai ser: um arquivo de todas as nossas políticas públicas para as prefeituras interessadas.
E vou trabalhar na reeleição do presidente Lula. Me coloquei à disposição do José Genoino e do Paulo Frateschi [presidentes nacional e estadual do PT]. Disse que posso andar pelo Estado, ir onde eles acharem interessante. Posso também me engajar nacionalmente, porque hoje as políticas de São Paulo para os pobres são uma referência nacional.
Folha – E a perspectiva de sua candidatura ao governo do Estado?
Marta – A minha intenção é continuar na vida pública. No momento, quero ajudar na reeleição do Lula. Na época certa, o partido vai avaliar quem tem mais condição de ajudar a candidatura do Lula e como. Agora não adianta ficar pensando em si próprio. Tem que pensar no que é mais importante para o Brasil. No meu entender, é que o Lula continue. E eu vou ser um soldado nisso.
Não está na hora de sair candidata a nada, mas também não está na hora de dizer que não vou ser candidata a coisa nenhuma. O partido vai decidir quem é o melhor candidato. Tem vários.
Folha – Alguns consideram que existe uma fila de petistas para a vaga na eleição ao governo de São Paulo, e que o senador Aloizio Mercadante estaria em primeiro lugar. A sra. acha que existe uma fila?
Marta – Não. Existem várias pessoas que já se declararam candidatas e outras que se declararam não-candidatas. O Palocci [ministro da Fazenda] e o Dirceu [ministro da Casa Civil] disseram que não são. O Genoino já disse que não é. Eu não estou nessa confusão. Estou com outros propósitos, mas não digo que não vou ser. Não posso decidir isso agora.
Folha – Há, no PT, quem defenda uma prévia para escolher o candidato do partido a senador por São Paulo. A sra. vê essa idéia com simpatia? A sra. acha que o senador Suplicy é o candidato natural?
Marta – É evidente que o Suplicy é o candidato natural. E tenho certeza de que vai ser ele o candidato. No PT, a prévia é um direito. O próprio Suplicy disputou com o Lula. Mas não tem a mais leve chance de alguém ganhar do Suplicy numa prévia -e dificilmente em uma eleição para senador.
Folha – Ficou alguma rusga entre ele e a sra. da época da campanha? Marta – Eu me dou muito bem com ele, é o pai dos meus filhos. Ele foi recentemente na minha casa, no batizado da nossa netinha Maria Luiza. Aí não tem estresse.
Folha – Na campanha, falou-se muito do preconceito de que a sra. teria sido vítima, e a contrapartida dele seria a sua suposta arrogância. O Serra, dizem, também seria arrogante, mas esse rótulo não colou nele, colou na sra. A sra. se considera vítima de preconceito?
Marta – Acho que isso não foi o motivo de eu ter perdido a eleição. Deixei isso claro. Perdi a eleição por erros que a gente cometeu nesse três anos e meio, em relação à saúde, por exemplo.
Logo que assumi, daquele jeito meu, disse ‘não estou satisfeita e acho que ninguém está’. E pareceu que a saúde era horrível. A saúde não é pior nem melhor do que a de qualquer cidade ou a do Estado. Mas acabei diminuindo os ganhos que a gente obteve, como ter feito cair pela metade os casos de HIV positivo, ter conseguido uma queda substancial na mortalidade materna e infantil.
Eu acho que isso [o preconceito] ajudou [na derrota], mas não me tirou mais votos de pessoas que já não iam votar em mim. Foi muito duro pessoalmente. Mas não que tenha tirado votos. Percebo que há pessoas que gostam de ter a minha pessoa para ser desconstruída, falar mal, fofocar…
Folha – Por que, prefeita?
Marta – De repente é eleita prefeita de São Paulo uma mulher da elite, do PT dito light, mas que faz o governo mais esquerdista do Brasil. Isso desagradou imensamente a parcela mais conservadora da sociedade paulistana.
Teria desagradado também se fosse um petista radical, mas desagradou com outra conotação porque era uma pessoa, uma mulher, que pertence a esse grupo.
São pessoas que até podem ter percebido que muito foi feito também para as classes mais abastadas, mas que se negam a pagar um IPTU maior, a pagar R$ 6 de taxa de lixo para fazer o aterro, mesmo que gastem R$ 70 por mês para ter TV por assinatura.
Folha – A sra. relaciona sua derrota a escolhas políticas que fez?
Marta – As escolhas que eu fiz são as escolhas que a classe mais privilegiada não tolera se tiver que pôr a mão no bolso.
Folha – A sua viagem pós-eleitoral à Europa, para participar da reinauguração do Scala, em Milão, provocou reações muito negativas. Deu a muitas pessoas a sensação de que a prefeita havia abandonado a cidade. A sra. imaginou repercussão tão ruim?
Marta – Eu fiz uma avaliação totalmente equivocada sobre como essa viagem ia ser interpretada. Eu tive um convite há cinco meses do prefeito de Milão. Ele falava que fazia questão que eu fosse, que tínhamos sido parceiros todo esse tempo -quem fez a reforma do Scala foi a mesma pessoa que fez o projeto para recuperar a fachada do Teatro Municipal.
Quando eu perdi a eleição, eu liguei para ele e disse: ‘Quero agradecer, mas não posso ir. Perdi a eleição. Se eu sair vão dizer que eu fiz a viagem às custas do erário’. Imagine eu, abandonar a cidade? É tão fora do meu jeito de ser que não me passou pela cabeça essa interpretação. O que passou é que iam dizer que eu ia viajar às custas do erário. E ele me ligou: ‘Você é a minha convidada de honra. Gostaria que você reconsiderasse’.
Eu fiquei com uma batata quente na mão. E eu comecei a pensar como fazer para ir. Falei com o meu marido [Luís Favre]. E pensamos que eu poderia tirar uma licença não-remunerada. Trabalhei no dia seguinte à eleição, fiz todas as reuniões com os secretários, determinei o que tinha de ser feito. Fui a Brasília falar com o Lula para pedir uma postura de renegociação da dívida. Achava que estava tudo caminhando.
Como eu ia tirar dez dias sem remuneração, ia pagar a minha própria passagem e eu tenho um vice que é uma pessoa absolutamente competente, que já me substituiu em várias ocasiões, eu achei que eu poderia ir.
Passei antes em Paris porque o meu marido não via os filhos havia cinco meses, por causa da campanha, e, no final do ano, não vai poder ver por causa da transmissão do cargo.
Aí, chove dois dias depois que eu estava lá. Agora eu não sei se, chovendo ou não, como ninguém está com nenhuma boa vontade a respeito, não teria tido a mesma repercussão. Foi um erro de avaliação minha. Eu tentei fazer da melhor forma possível. E a repercussão foi essa que você mencionou. No dia seguinte à viagem estava aqui, estou aqui, vou ficar até o dia 1º. E isso as pessoas com o tempo acabam entendendo. Se teve alguém que defendeu essa cidade o tempo todo fui eu.
Folha – Passado o calor da campanha, que avaliação a sra. faz do prefeito eleito?
Marta – Acho ele competente, se saiu bem no Ministério da Saúde e vai ter seu primeiro cargo no Executivo agora. Essa avaliação vai ser mais importante daqui a quatro anos. Ele vai fazer um bom governo em termos de gestão, provavelmente. Em termos sociais, eu preciso ver o que ele vai fazer, não é a prioridade tucana.
Eu sei que é uma pessoa preparada e que tem outras propostas para cidade. E elas foram vencedoras, não as minhas.
Folha – A sra. leu um discurso após sua derrota, na reunião do Diretório Nacional do PT, que foi entendido como atribuição de responsabilidade ao governo federal pelo resultado em São Paulo.
Marta – Isso foi utilizado na tentativa de criar uma grande confusão com o Lula.
Folha – Mas falar que o ‘desgaste do governo federal teve um papel no resultado em São Paulo’ não é uma maneira de relacionar o que houve aqui ao cenário nacional?
Marta – Não. Eu posso ter apoiado a política de salário mínimo no ano passado -e apoiei. Apoiar é uma coisa, achar que não tem desgaste é outra. O que eu tenho que colocar é que eu apoiei a política econômica o tempo inteiro. E o presidente foi meu parceiro o tempo inteiro. Eu não posso culpá-lo de nada, muito pelo contrário. Como eu vou culpar quem me mandou os recursos para fazer o que eu pude fazer? Como vou culpar quem, quando eu pedi para gravar um programa de TV, e havia muito questionamento sobre isso no PT, disse: ‘Marta, se você acha importante, eu gravo’? Eu só posso agradecer ao Lula.
Folha – Houve, no PT, quem tentasse circunscrever as razões da derrota em São Paulo às suas opções e à sua personalidade.
Marta – Teve muita gente que tentou colocar a história do PMDB, dizendo que fui ‘turrona’. Eu gostaria de falar disso. Nada como um dia depois do outro.
O meu foi o governo petista que fez o maior leque de alianças para governar: PC do B, PTB, PL, PMDB. E marchamos juntos para a eleição. No dia de assinar o acordo aqui, eles trouxeram o Quércia [Orestes, presidente do diretório estadual], e ele pediu uma sala privada e falou que queria a vice.
O acordo com o PMDB não foi rompido a nível municipal, foi rompido em outra esfera. E a minha posição de bater o pé, que eu não iria aceitar o Michel Temer de vice, saiu no ‘Roda Viva’ de forma bastante espontânea, natural e infeliz, que foi dizer que ‘[um vice do PMDB] não era de confiança’. Eu sabia que eu ia colocar uma quinta coluna aqui dentro e, durante a campanha, eu não tinha nenhuma garantia de que eles não iam bater no Lula e eu ia ficar com uma armadilha seríssima na minha chapa. E foi o que aconteceu. Depois de o Michel Temer passar a campanha inteira na chapa da Luiza Erundina batendo no governo federal, isso se concretizou com a cisão no PMDB e a rasteira no governo federal. Nada como um dia depois do outro.
Folha – A sra. considera que o resultado das urnas foi justo?
Marta – Não dá para questionar a população. Cada um votou segundo a sua consciência. O tempo vai dizer se foi justo ou não.
Folha – O que vai fazer no dia 1º depois de transmitir o cargo?
Marta – Eu vou descansar numa praia alguns dias. Depois vou começar a organizar o instituto.
Folha – FHC vai ficar com ciúmes…
Marta – O Fernando Henrique tem um instituto com o nome dele, o meu não vai ter isso. O instituto dele é para preservar a história dele, a trajetória política dele. O meu é para preservar o que foi feito para a população em termos de política inovadora social.’
SAÍDAS PARA A MÍDIA
‘Tempo de Ousar’, copyright Carta Capital, 28/12/04
‘Parece praga. Pois, há tempos, desde quando ainda trabalhava como repórter, só ouço falar nisso: as empresas de mídia estão em crise financeira. Sobram dívidas, falta gente, falta dinheiro para tudo, passaralhos sobrevoam as redações. Mas será que é só mesmo uma questão de grana, fruto de investimentos malfeitos pelas empresas, quando o câmbio era de mentirinha? Ou vivemos, de fato, nesses últimos anos, uma tremenda crise de criatividade, de ousadia e de talento para ganhar, com medo de perder o jogo?
Faço muitas perguntas quando escrevo porque, ao contrário de certos colunistas que já sabem tudo e não se preocupam em brigar com os fatos que contrariam suas teses, tenho cada vez mais dúvidas do que certezas na vida. Deve ser a idade. Só sei que esta choradeira generalizada, tanto de empresas como de profissionais, não vem de hoje, vem de loooonge, como diria o velho Leonel de Moura Brizola. Alguma coisa mudou no nosso ramo ainda no fim dos anos 80 do século passado.
Percebi que a imprensa brasileira estava deixando de cobrir o Brasil fora do eixo Brasília-Rio-São Paulo, no dia em que me deparei com minha própria ignorância. Repórter de um dos maiores jornais do País, na época, descobri que não sabia quem era Chico Mendes. Explico: no dia em que ele morreu, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, com quem estava começando a trabalhar como assessor, em sua primeira campanha presidencial, me ligou de madrugada para encontrá-lo logo cedo no aeroporto e seguir para Xapuri, no Acre.
Antevéspera do Natal de 1988, não me animava nada viajar para aquele mundão perdido na floresta num avião pequeno. Sem confessar que não sabia nem quem era Chico Mendes, arrumei alguma desculpa e não fui. Lembro-me que ainda cheguei a argumentar bestamente que não daria para ir a todo enterro de sindicalista morto porque deste jeito a gente não faria campanha… Acabou indo com ele nosso amigo Frei Betto e, na volta, fiquei sabendo que eles passaram um sufoco danado para chegar lá no meio de um temporal.
Não só eu não sabia quem era Chico Mendes, como a imprensa brasileira quase toda só descobriu a importância do líder seringueiro depois que saiu uma alentada reportagem no New York Times, com chamada de primeira página e tudo. Quantos outros Chicos Mendes não devem existir espalhados por este Brasil afora, hoje, que nunca mereceram a visita de um repórter ou uma notícia na imprensa?
Vamos tentar entender o que aconteceu, ainda antes do advento da TV a cabo, da internet, da telefonia privatizada e de tantos outros sorvedouros de dólares que levaram a mídia em geral à atual situação de penúria. Nos longos tempos da censura dos militares, que não deixaram nenhuma saudade, a imprensa não podia falar de política, do que acontecia nos gabinetes dos generais em Brasília, do poder, enfim. Em compensação, abria espaço para se tratar de qualquer outra coisa, de índios a garimpeiros, de sem-terra a sindicatos, de igrejas a lupanares, de novas fronteiras agrícolas a novas tendências da cultura, e de personagens até então desconhecidos, como Chico Mendes.
Todos os grandes veículos se orgulhavam de suas generosas equipes de sucursais e correspondentes, que enviavam notícias e reportagens de todos os muitos Brasis que aqui coabitam. Apesar da censura, cada jornal ou revista era capaz de surpreender seus leitores com revelações, novidades, pessoas e lugares estreantes no noticiário. Por isso, ao contrário do que acontece hoje, eram diferenciados, cada um tinha sua própria cara, seu caráter único em lugar do pensamento único vigente. Por isso, também, ao contrário do que acontece hoje, o telejornalismo vinha a reboque da mídia impressa.
Hoje, o único veículo que faz uma cobertura verdadeiramente nacional, com equipes de jornalistas em praticamente todas as regiões do País, é a TV Globo, com suas afiliadas. O restante limita-se a cobrir o que ocorre nas principais cidades e nos seus arredores mais próximos, de preferência sem tomar sol ou chuva, sem sair da redação. Já escrevi alguma vez que, se amanhã cortarem os telefones e a internet das redações, não tem jornal no dia seguinte. O que aconteceu? Em qualquer redação de mídia impressa, hoje, às 8 da noite, nenhum editor se arrisca a perder o noticiário do Jornal Nacional.
Em lugar da reportagem, ganharam espaço colunistas de todo tipo, lavradores de ‘bastidores’ e notas plantadas, esta praga que levou o Elio Gaspari a constatar que a imprensa brasileira tem mais colunas do que a Grécia Antiga. É uma deformação que levou os jornais – não só os três grandes, de circulação nacional, mas também os principais veículos regionais, que reproduzem as mesmas colunas – a se parecerem a cada dia mais uns com os outros.
Se alguém pegar um avião em Porto Alegre para ir a Manaus, e receber jornais novos em cada escala, vai achar que já leu tudo antes. O mesmo acontece com as semanais de grande circulação e pequena criatividade, que alternam os temas de suas capas (saúde, sexo, comportamento, dietas, religião, a nova mulher, o novo homem, o salto no futuro e, vez ou outra, um dossiê ‘explosivo’ ou uma fita ‘exclusiva’), fazendo a gente pensar que já viu aquilo em algum lugar no ano passado. Quanto mais reformas gráficas e editoriais fazem, mais todos se parecem.
O grande problema, na visão já cansada deste velho jornalista, não é de projeto gráfico ou editorial, mas de projeto de vida. De que forma a mídia impressa pretende sobreviver, se não mudar seus conteúdos, melhorar a qualidade dos seus textos, buscar novos leitores sem perder os antigos, se não investir na formação de profissionais de talento e reconstruir suas redes de sucursais e correspondentes, um fantástico celeiro de bons repórteres?
Urge descentralizar recursos, pautas e bons profissionais para produzir um noticiário que não seja repetição do que as rádios, as tevês e os sites e blogs já informaram no dia anterior. Temos hoje um congestionamento de bons e caros jornalistas em Brasília, enquanto regiões inteiras do País continuam absolutamente virgens nas páginas impressas. Num país do tamanho do nosso, a mídia impressa será, como já foi, um instrumento vital para a integração nacional, se democratizar as informações e abrir espaço para notícias de e para o Brasil. Os meios eletrônicos jamais acabarão com os impressos, desde que esses, sem trocadilho, descubram qual é o seu papel na história.
Rádios, tevês e jornais têm naturezas diferentes, sim, mas a matéria-prima de todos os veículos é a mesma: a notícia ou a reportagem trazida por um profissional competente, que surpreende o freguês, prende sua atenção, garante sua fidelidade. Para isso, é preciso que a mídia impressa deixe de lado suas teses pré-fabricadas em reuniões de pauta e inverta de novo o processo. Ou seja, que seja capaz novamente de descobrir e trazer notícias, tendências e novos personagens da rua para a redação, e não encarregando seus pobres repórteres de buscarem aspas, se possível por telefone, para justificar suas maravilhosas teses. Isso não depende só de dinheiro, mas de tesão para virar o jogo diante de uma torcida cada vez mais exigente. Tem muita gente ainda usando sua agenda de fontes e cardápios de pautas da década passada, do século passado, sempre as mesmas.
Os mais diversos setores da economia brasileira estão passando deste ano para o próximo em pleno ritmo de crescimento, com investimentos em todas as áreas, gerando novos empregos e buscando novos mercados mundo afora num ambiente ao mesmo tempo de estabilidade e retomada do desenvolvimento. Claro que isso vai gerar também maior volume de recursos para a mídia, à medida que a concorrência crescente exigirá maiores investimentos em publicidade. A roda voltou a girar e a mídia, com poucas e honrosas exceções, parece ainda não ter-se dado conta disso.
Nas minhas quatro décadas de jornalista, completadas em outubro, já vi a imprensa brasileira passar por vários ciclos, por altos e baixos, com veículos subindo ou descendo no ranking de circulação e prestígio, publicações abrindo ou fechando, mas nunca a vi tão acomodada como agora, tão indiferenciada, tão conformada com a ladainha do ‘falta grana’ para fazer coisa melhor. Se falta, e não duvido que falte, é mais um motivo para ir à luta e buscar caminhos capazes de descobrir onde está a grana nova, em lugar de chorar a que foi perdida.
Aprendi isso com um veterano amigo, o publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira, 90 e tantos anos, que nunca se contentou com o que tinha. Repetia sempre uma frase atribuída a Nabantino Ramos, um dos ex-proprietários da Folha, mas que, desconfio, seja dele próprio: ‘É simples: um bom jornal se faz com bons jornalistas’. A cada ano, queria fazer um produto melhor e, para isso, dizia, precisamos ter, cada vez mais, melhores jornalistas. Por quê? Segundo as previsões dele, feitas ainda em meados dos anos 1980, em cada grande cidade só sobreviverá um grande jornal. ‘Vamos trabalhar para que seja o nosso’, desafiava. Se todo mundo pensar assim, com essa garra, certamente as coisas vão melhorar – para os veículos e para os profissionais do nobre ramo da informação.
Acredite quem quiser: já estava encerrando este artigo por aqui, dentro do espaço que me deram, quando me caiu nas mãos, enviado pelo amigo repórter Ilimar Franco e trazido por minha mulher, a Marinha, um texto do Gabriel García Márquez com um título tão sugestivo quanto verdadeiro, pelo menos para mim: ‘Jornalismo: a melhor profissão do mundo’.
Ao terminar de lê-lo, eu mesmo quase não acreditei: ele resume em módicos 21 parágrafos tudo o que gostaria de escrever sobre o tema imprensa – para o ano que vem e para todos os outros anos. Como os jovens editores desta respeitável revista não terão coragem de cortar García Márquez, reproduzo alguns deles:
‘(…) Os jovens que saem desiludidos das escolas, com a vida pela frente, parecem desvinculados da realidade e de seus problemas vitais, e um afã de protagonismo prima sobre a vocação e as aptidões naturais. E em especial sobre as duas condições mais importantes: a criatividade e a prática. (…) Alguns se gabam de poder ler de trás para frente um documento secreto no gabinete de um ministro, de gravar diálogos fortuitos sem prevenir o interlocutor, ou de usar como notícia uma conversa que de antemão se combinara confidencial.
O mais grave é que tais atentados contra a ética obedecem a uma noção intrépida da profissão, assumida consciente e orgulhosamente fundada na sacralização do furo a qualquer preço e acima de tudo. Seus autores não se comovem com a premissa de que a melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor (…)
Quer dizer: as empresas empenharam-se a fundo na concorrência feroz da modernização material e deixaram para depois a formação de sua infantaria e os mecanismos de participação que, no passado, fortaleciam o espírito profissional. As redações são laboratórios assépticos para navegantes solitários, onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante.
(…) ‘Nem sequer nos repreendem’, diz um repórter novato ansioso por ter comunicação direta com seus chefes. Nada: o editor, que antes era um paizão sábio e compassivo, mal tem forças e tempo para sobreviver ele mesmo ao cativeiro da tecnologia. A pressa e a restrição de espaço, creio, minimizaram a reportagem, que sempre tivemos na conta de gênero mais brilhante, mas que é também o que requer mais tempo, mais investigação, mais reflexão e um domínio certeiro da arte de escrever. É, na realidade, a reconstituição minuciosa e verídica do fato. Quer dizer: a notícia completa, tal como sucedeu na realidade, para que o leitor a conheça como se tivesse estado no local dos acontecimentos (…)’
Nem sei se mestre García Márquez conhece a imprensa brasileira. Mas o seu exemplo, ao criar a Fundação do Novo Jornalismo Ibero-Americano, em Cartagena das Índias, na Colômbia, onde um grupo de veteranos jornalistas independentes promove oficinas para ensinar na prática o ofício a jovens profissionais, bem que poderia inspirar os pais da mídia daqui.
De nada adianta colocar a culpa de todos os nossos males na falta de grana ou na qualidade da formação recebida pelos novos jornalistas nas escolas. Jornalismo sempre aprendemos na redação, no dia-a-dia do trabalho, com aqueles que chegaram antes de nós. Agora, para terminar mesmo, fica mais uma pergunta: temos hoje na grande maioria das nossas redações profissionais habilitados a fazê-lo, como eu tive quando comecei? A resposta a essa pergunta tão singela pode ser uma boa pista para que a nossa imprensa entre em 2005 com o pé direito, contemporânea do mundo e do momento de mudanças que o País vive.’
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
‘É preciso ficar atento’, copyright O Globo, 22/12/04
‘É costumeiro acreditar na liberdade de expressão como um direito sem limites. Não é bem assim. Há certos pensamentos que um homem não tem o direito de ter e muito menos de expressar. Refiro-me as idéias anti-sociais, aquelas que contrariam a vida ela mesma: os preconceitos contra as minorias de modo geral, o elogio da violência e da tortura, a intolerância. Certamente poderíamos lembrar mais uma dúzia de idéias desse tipo com facilidade. Idéias que um cidadão não tem o direito de ter e muito menos de expressar.
Fora desse campo de fácil reconhecimento, a citada liberdade é evidentemente essencial para a dignidade humana. Quando expressamos coisas que cremos, nossa alma cresce. Quando vemos expressadas idéias com que não concordamos, isto nos faz pensar. Enfim, é sempre produtivo. Os espíritos reprimidos adoecem de rancor, tornando-se perigosos .
Sendo assim devem ser combatidos às últimas conseqüências os cerceamentos à liberdade de expressão, particularmente artística. Usando a arte (o cinema, o teatro etc.) como exemplo, não há por que impedir a expressão de sentimentos vulgares, idéias chulas, modos ingênuos de divertimento, atitudes iconoclastas etc… Isto é sempre bom, dialético.
Sempre que a esquerda ascende ao poder, devemos comemorar.
Não consigo apaziguar meu contentamento íntimo de viver num país governado por um ex-operário. Sinto orgulho desse fato, do que eu me lembre, único em tempos modernos. Anseio sinceramente para que essa situação permaneça por mais um mandato.
Não obstante, confessemos. Para nós artistas, é perigoso. A esquerda, em seu afã de salvar o mundo, é tradicionalmente, digamos, pobre de inteligência e centralizadora de poder. Tende a achar que aquilo que não é direta e obviamente social… não é social. Tem uma inclinação natural para o dirigismo, o autoritarismo. A vaidade de saber julgar o que é e não é socialmente útil. O erro é grave. Já aconteceu muitas vezes e, não há dúvida, surge neste momento uma a tendência de cometê-lo outra vez…
Outro dia escrevi que sou contra o Ministério da Cultura, que deveria ser substituído pelo Ministério da Arte. Foi apenas uma frase de efeito. O que desejei dizer é que a cultura é um conceito mais próximo da educação que da arte. É danoso confundir essas coisas. Reconheço que cultura é uma palavra simpática, sendo a outra antipática. Arte lembra aristocracia, elitismo etc… Porém estes são apenas preconceitos autoritários, digamos pouco inteligentes.
A arte nunca é alienada do processo social. A arte sempre constrói e, na verdade, é difícil construir, fora da arte. Todas as atividades deveriam ser exercidas com criatividade, com arte. A arte é a atividade mais importante do ser humano, embora isto não seja aparente. Talvez pelo seu processo lento de transmitir conhecimentos. A arte age como a pedra que cai na água, em círculos concêntricos cada vez maiores.
Ela atinge profundamente apenas alguns dos que a presenciam . Estes alguns, iluminados pelo ensinamento, transmitirão a muitos outros com a mesma profundidade com que foram atingidos. Nem por isso deixa de ter importância capital.
É a arte que lembra o homem das suas melhores virtudes: a dignidade, a honestidade, a civilidade etc. É a arte que constrói as civilizações lembrando aos homens a sua própria grandeza. A arte é o grande antidepressivo social. Cercear a liberdade de expressão artística, alegando alguma ideologia, é realmente um erro primário, básico, de conseqüências comprovadamente nefastas. Sem a arte é a barbárie. Basta lembrarmos a vergonha em que hoje se transformou a União Soviética.
Pluralidade é a palavra moderna. A diversidade confronta os talentos e incita-os ao trabalho. Pluralidades e diversidades são sinônimos de democracia. E a democracia apesar de seus imensos defeitos, cada vez mais evidentes, ainda é o melhor sistema.
Cuidado com os que tentam impedir a liberdade de expressão. São paranóicos ideológicos, ou melhor, radicais de pouca imaginação. Xiitas. Anti-sociais.
Pessoalmente, devo concluir, não creio que esse tipo de procedimento se torne grave num país comandado por um presidente como Lula. Mas é preciso ficar atento.’
CCS
‘Eleitos membros do Conselho de Comunicação’, copyright Jornal do Senado, 23/12/04
‘Os novos integrantes do Conselho de Comunicação Social foram eleitos ontem em sessão conjunta do Congresso Nacional. Os conselheiros têm mandatos de dois anos, que podem ser renovados por igual período. Alguns dos eleitos já fazem parte do colegiado.
O órgão é formado por 13 membros titulares e 13 suplentes, que representam empresas de rádio, televisão e imprensa escrita, além das categorias profissionais dos jornalistas, radialistas, artistas, profissionais de cinema e vídeo. Conta ainda com representantes da sociedade civil.
Cabe ao Conselho de Comunicação Social assessorar o Congresso na análise de projetos relacionados a liberdade da manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação; princípios que devem nortear a programação das emissoras de rádio e TV; propriedade de empresa de mídia; e outorga e renovação de concessão, permissão e autorização para a exploração dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens.
TV digital
Entre os principais temas debatidos pelo colegiado destacam-se a regionalização dos programas das emissoras de radiodifusão, a possível fusão das operadoras de TV por assinatura via satélite Sky e DirecTV, o sistema de televisão digital que deverá ser adotado pelo país e a proposta de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav).
Foram eleitos membros titulares do Conselho Paulo Machado de Carvalho Neto, Gilberto Carlos Leifert, Paulo Tonet Camargo, Fernando Bittencourt, Daniel Herz, Eurípedes Corrêa Conceição, Berenice Isabel Mendes Bezerra, Geraldo Pereira dos Santos, Dom Orani João Tempesta, Arnaldo Niskier, Luiz Flávio Borges D´Urso, Roberto Wagner Monteiro e João Monteiro de Barros Filho.
Os suplentes escolhidos para o conselho são Emanuel Soares Carneiro, Antônio de Pádua Teles de Carvalho, Sidnei Basile, Roberto Dias Lima Franco, Celso Augusto Schröder, Márcio Leal, Stepan Nercessian, Antônio Ferreira de Sousa Filho, Segisnando Ferreira Alencar, Gabriel Priolli Neto, Felipe Daou, Flávio de Castro Martinez e Paulo Marinho.’