‘Assisti em Chicago ao confronto entre George W. Bush e John Kerry.
O debate presidencial americano chama atenção por muitos detalhes entre os quais o fato de que não é um evento exclusivo, como ocorre no caso de outros países. Bastava clicar o controle remoto para verificar que paralelamente ao confronto, corria uma programação normal. Seria isso o indício de um desinteresse eleitoral que obviamente relativiza o campo do político, subtraindo dele a importância que possui em outros países, sociedades e culturas? Certamente o político tem menos importância nos Estados Unidos, um continente que tem hoje a maior renda do planeta e o número de automóveis é muito maior do que de habitantes. Não vamos falar do resto nessa sociedade não apenas englobada pelo consumo como um valor social, mas – e esse é ponto-chave – que pode realizar na prática esses valores, comprando e gastando como bem entende.
Por causa disso, tomei a ausência de interesse pelo debate por parte dos americanos como um sintoma de que em países onde tudo vai bem no plano econômico – descontando, evidentemente, o risco das tais ‘bolhas’ que dizem existir no sistema americano – o político, sobretudo o ‘político-eleitoral’ não tem o mesmo peso de países que ainda buscam erradicar de seu sistema público uma máfia de candidatos irresponsáveis, egoístas e caras-de-pau.
O fato de a eleição no Brasil ter o halo de um rito de mudança com toques messiânicos, tem uma nítida relação menos com uma ingenuidade atribuída ao povo simples e ignaro e muito mais com uma aguda consciência de que o voto pode melhorar a vida pública naquilo que ela tem de mais carente: a ausência de regras claras, o bom gerenciamento dos dinheiros e coisas coletivas, a igualdade perante a justiça, as leis e as oportunidades. Louve-se, portanto, o entusiasmo eleitoral brasileiro, sobretudo quando se observa que ele vai ficando mais maduro e tem razões que a razão elitista desconhece.
Mas na América da abundância e do gasto, onde falar em bilhões de dólares virou banalidade, eleger um ‘outro’ significa – quem sabe? – correr o risco de furar certas bolhas e, com isso, de perder certos contratos – sobretudo os contratos da área militar e petrolífera.
No plano mais simples, mas revelador dos estilos sociais de debater, impressionou-me o controle do mediador, bem como o dos candidatos, coisa que obviamente ocorre também entre nós, mas o que mais me chamou atenção foi a franqueza com a qual os ‘candidatos’ se criticavam e iam em frente, sem acusações pessoais de caráter emocional como quase sempre ocorre no Brasil.
Para mim, essa postura é culturalmente importante nos Estados Unidos que apreciam nos seus líderes o ‘coolness’, o controle e a frieza. Ao contrário do Brasil, o berro, o grito e a indignação não pesam muito nesse país plasmado pelos valores Iluministas e onde a racionalidade se exprime nessas caras de jogadores e pôquer que Bush e Kerry apresentaram no debate.
Outro dado curioso nesse debate, daí a sua importância simbólica, é que ele se realiza com os Estados Unidos em guerra e debaixo de um conjunto de leis extremamente severas relativamente ao poder da justiça militar e dos órgãos de segurança que suspenderam os famosos direitos humanos que, essa América pioneiramente implementou e que sem dúvida constitui o seu maior patrimônio.
Nesse contexto, não é nada fácil para o candidato da oposição questionar o presidente do seu próprio país, quando sua crítica pode e tem sido, veladamente ou não, tomada como sendo antipatriótica. Curioso que ninguém nos Estados Unidos tenha apontado como a campanha resvalou para acusações pessoais contra Kerry, quando os republicanos colocarem em dúvida o seu heroísmo no Vietnã.
Pior que tudo isso, é como a guerra contra o terrorismo e a decorrente invasão do Iraque têm impedido a discussão séria de temas básicos no plano social e econômico como a questão da bolha da Previdência, da dívida interna, da educação, etc. De fato, como debater esses temas quando o país, nas próprias palavras do seu presidente (que detém segredos militares), está numa cruzada contra o mal representado pelo terrorismo (o que, diga-se logo, ninguém disputa) e, como decorrência, contra tudo o que o atual governo tome como contrário aos seus interesses?
Esse, parece-me, é o pano de fundo desse debate e eleição. Daí porque fiquei impressionadíssimo com o desempenho de John Kerry que, sem entrar no mérito de uma gravíssima questão na qual repousa a honra nacional, abalou a retórica dualista de George W. Bush. Um discurso fundado no ‘Nós’ contra ‘Eles’, no Bem contra o Mal, permeado de uma tonalidade paternalista e pessoal que surge como um retrocesso num país em que o presidente é o cidadão número um, mas não é de jeito nenhum o tomador de conta de todo mundo. Ao conseguir complicar alguns pontos como, por exemplo, o antiamericanismo que o governo Bush tem aumentado, bem como o seu sensível e paulatino isolamento da ONU e dos seus aliados, Kerry fez algo muito difícil: introduziu a nuance num discurso preto no branco, tão ao gosto dos americanos.’
Paul Krugman
‘Oito mentiras no debate de hoje’, copyright O Globo, 13/10/2004
‘‘Não é difícil prever o que o presidente Bush vai dizer hoje à noite. Aqui estão oito mentiras ou distorções que serão ouvidas, e a verdade sobre cada uma delas.
EMPREGOS: Bush vai falar do 1,7 milhão de empregos que criou desde o verão de 2003 e dirá que a economia está ‘cada vez mais forte’. Isto é como se gabar de tirar 4 no seu exame final, quando precisava de no mínimo 5 para ser aprovado. Bush é o primeiro presidente desde os anos 30 a perder empregos. A economia precisa de pelo menos 1,6 milhão de novos empregos anuais só para dar conta do crescimento populacional. Os ganhos do ano passado mal atendem a isso e fizeram pouco para compensar as enormes perdas anteriores.
DESEMPREGO: Bush vai se gabar do declínio na taxa de desemprego desde o pico de junho de 2003, mas ela só caiu porque alguns desempregados deixaram de procurar emprego e por isso foram retirados das estatísticas.
DÉFICIT: Bush vai dizer que a recessão e o 11 de Setembro causaram enormes déficits no orçamento. As estimativas do Escritório de Orçamento do Congresso mostram que os cortes de impostos causaram cerca de dois terços do rombo em 2004.
CORTES DE IMPOSTOS: Bush vai dizer que o senador John Kerry se opôs aos cortes de impostos para a classe média. Mas os números do Escritório de Orçamento do Congresso mostram que a maior parte dos cortes feitos por Bush foi para os 10% mais ricos, e mais de um terço para o 1% no topo, cuja renda média é de mais de US$1 milhão.
PLANO FISCAL DE KERRY: Bush vai dizer de novo que Kerry planeja aumentar impostos para os pequenos negócios. Na verdade, só um percentual mínimo seria afetado. Além do mais, a definição do governo de pequeno proprietário é tão ampla que em 2001 ela incluía Bush, que tem ações de uma madeireira – um negócio com o qual se envolve tão pouco que aparentemente se esqueceu dele.
RESPONSABILIDADE FISCAL: Bush vai dizer que Kerry propõe US$ 2 trilhões em novas despesas. Isto é um número partidário e muito maior do que estimativas independentes. Enquanto isso, como apontou o ‘Washington Post’ após a convenção republicana, os custos da agenda delineada por Bush ‘devem ultrapassar os US$3 trilhões’.
GASTOS: Sexta-feira, Bush disse que tinha aumentado gastos não relacionados à defesa em 1% ao ano, mas o número real é de 8%. Bush parece ter confundido suas promessas orçamentárias – que ele vive quebrando – com a realidade.
SAÚDE: Bush vai dizer que Kerry quer tirar as decisões médicas dos indivíduos. O plano de Kerry expandiria o Medicaid, assegurando que as crianças, em particular, tenham planos de saúde. O plano protegeria qualquer um contra despesas médicas catastróficas, uma ajuda particular àqueles que sofram de doenças crônicas. Ele não restringiria as escolhas dos pacientes.
Ao focalizar as mentiras e distorções de Bush, estou dizendo que Kerry não comete faltas semelhantes? Estou. Kerry às vezes usa linguagem taquigráfica que dá aos catadores de defeitos coisas sobre que reclamar. Ele fala de 1,6 milhão de empregos perdidos: isso se refere às perdas do setor privado, parcialmente compensados por empregos no setor público. Mas a taxa de criação de empregos é mesmo terrível. Ele fala do custo de US$200 bilhões da guerra no Iraque; até agora o custo é de US$120 bilhões. Mas ninguém duvida de que a guerra custará mais US$80 bilhões. A base do argumento de Kerry é correta.
As declarações de Bush, por outro lado, são fundamentalmente desonestas. Ele insiste em que branco é preto, e que fracasso é sucesso. Os jornalistas que se acham seguros ao gastarem o mesmo tempo expondo as mentiras dele e analisando as escolhas de palavras de Kerry estão traindo seus leitores. Paul Krugman é colunista do New York Times’’
O Globo
‘Cobertura exclusiva para uma eleição crucial’, copyright O Globo, 17/10/2004
‘O mundo nunca esteve tão diretamente envolvido numa eleição nos Estados Unidos. Milhares de brasileiros estarão atentos à disputa entre George W. Bush e John Kerry e aos interesses em jogo na votação do próximo dia 2 de novembro. Por isso, o GLOBO preparou para seus leitores, a partir de hoje, um noticiário exclusivo, que vai ajudá-los a entender, refletir e analisar todos os lados desta eleição, que será decidida voto a voto num país dividido.
Correspondentes e enviados aos EUA
Nossos correspondentes nos EUA, José Meirelles Passos (Washington) e Helena Celestino (Nova York), e os enviados especiais Dorrit Harazim e Toni Marques vão mostrar as principais características dos dois candidatos à Casa Branca, as peculiaridades do complexo sistema eleitoral americano e os reflexos desta disputa no Brasil e no mundo.
Os correspondentes exclusivos do GLOBO acompanharão de capitais de Europa, Ásia, Oriente Médio e América Latina a repercussão deste que é considerado um dos mais importantes processos eleitorais das últimas décadas.
Um time de especialistas convidados pelo jornal também trabalhará nessa direção, analisando, na seção ‘Por dentro da notícia’, as entrelinhas do processo eleitoral americano. Entre eles estão o teórico da comunicação Eduardo Neiva, professor titular da Universidade do Alabama em Birmigham; os cientistas políticos Clóvis Brigagão e Williams Gonçalves; o jornalista Caio Blinder (de Nova York); e o sociólogo Hélio Jaguaribe.
A partir de hoje, o leitor também terá acesso a novas seções na editoria O Mundo focadas especialmente nas eleições americanas. Em ‘Ronda pela mídia’, notas sobre o que é noticiado em alguns dos principais jornais, TVs, sites e blogs dos EUA e do mundo. ‘Anatomia americana’ mostrará retratos da realidade dos EUA nos estados e nas regiões onde a eleição está sendo disputada voto a voto.
No dia 31, um caderno especial
No domingo, dia 31, o GLOBO vai mostrar, com detalhes, num caderno especial, os principais temas envolvidos na escolha do sucessor da Casa Branca. Tudo isso para que, vença Bush ou Kerry, o leitor do GLOBO saiba todas as implicações do resultado e possa ter a sua própria opinião sobre os fatos.’