‘Dois dos principais jornais do mundo publicaram, em sua edição da segunda-feira 21, textos que dizem respeito ao Brasil. O primeiro é o Le Monde, jornal de referência da França, que publicou entrevista com Claude Lévi-Strauss, o último sobrevivente dos grandes intelectuais franceses do século XX e que descobriu no Brasil, para onde veio contratado pela recém-criada Universidade de São Paulo, a vocação que o tornaria o mestre supremo da etnografia. ‘O Brasil representa a experiência mais importante da minha vida’, disse Lévi-Strauss. ‘Sinto por esse país uma dívida profunda.’
O então jovem professor francês viveu no Brasil entre 1935 e 1939. Essa experiência está relatada num livro capital, Tristes Trópicos. Só voltou ao país em 1985, por uns poucos dias, integrado à comitiva do então presidente francês François Mitterrand – e então lhe ocorreram coisas curiosas, relatadas na entrevista ao Le Monde. A São Paulo em que Lévi-Strauss morou tinha 1 milhão de habitantes. Agora tinha 10 milhões, e virara uma cidade ‘assaz assustadora’. Ele resolveu visitar a rua em que morara. Não que esperasse rever sua antiga casa – sem dúvida ela não mais existia -, mas pelo menos percorreria a vizinhança. Não conseguiu. Ficou preso num congestionamento de trânsito, e teve de desistir.
Restava tentar outra empreitada nostálgica. A partir de Brasília, Lévi-Strauss embarcou num pequeno avião para as solidões de Mato Grosso. O destino era a terra dos bororos, os índios que tanta importância tiveram em suas pesquisas. Do alto, quando se aproximaram, ele conseguiu divisar aldeias que, como em seus tempos, mantinham a forma circular, mas o avião não pôde descer. A pista era curta demais. Tomou-se então o rumo de volta, e no caminho adveio uma formidável tempestade. Eis então o grande pensador duplamente bloqueado. Na frustrada visita aos bororos, diz ele ao Le Monde ter exposto a vida mais do que no tempo de suas expedições científicas. A segunda vinda de Lévi-Strauss pode ser lida como uma metáfora. Até parece que o país tanto se tinha mexido que deu um nó em torno de si mesmo. Tornou-se intratável e impenetrável.
O segundo texto foi publicado no New York Times, ou melhor, no suplemento de turismo do New York Times. O mundo dos suplementos de turismo é um mundo à parte, como se sabe. Em suas páginas as coisas vão muito bem. Em outras seções de jornais estrangeiros, o Rio de Janeiro tem mais chance de aparecer quando o assunto é bala perdida ou crime organizado. Nos suplementos de turismo, a cidade retoma sua graça e seu esplendor. No caso, a reportagem de Seth Kugel, aliás um repórter que se revela inteligente e bem-humorado, tem enfoque na juventude dourada da cidade e no eterno clima de festa que a envolve. Claro, o texto de Kugel não tem, nem quer ter, a ciência e a sabedoria de um Lévi-Strauss. Mas contém lá a sua antropologiazinha.
O repórter do Times dirige um olhar arguto para a tribo que freqüenta as areias da Barra da Tijuca. Os americanos, diz ele, costumam conceber as praias como lugar de deitar-se ao sol, mas, no Rio, aquilo que ele chama de ‘social butterflies’, ou ‘borboletas sociais’, supera os que aproveitam o tempo de ócio para ler um livro na proporção de dez para um. Há trechos de praia onde vigora um perfeito clima de festa. ‘Tantas pessoas parecem conhecer umas às outras que lembrar de virar o corpo na areia, para bronzeá-lo por igual, é uma tarefa dispensável, tão freqüentemente é preciso levantar para saudar a chegada de mais um amigo, enrolado em mais um traje de banho impossivelmente miúdo.’
A festa na praia, quando a noite chegar, vai prosseguir, segundo descobriu Seth Kugel, nos bares do Baixo Gávea. O ‘murmúrio sedutor’ do português falado no Brasil é nesses lugares pontuado ‘pelos gritos de amigos cumprimentando uns aos outros, enquanto avançam pelo amontoado de gente para trocar duplos beijos nas faces’. O repórter vê aí a encarnação do ‘típico, puro Rio: barrigas bronzeadas e sorrisos transbordantes, celebração informal e trocas amigáveis’. Há problemas, claro – onde não há? -, e um deles, uma carioca conta ao repórter, é o estrangeiro confundir nosso estilo ‘liberal’ e nossa fartura de ‘calor humano’ com ofertas afetivas, quando não libidinosas. Mas o fato, nota o repórter, é que os brasileiros, ‘gregários por natureza’, gostam de orientar os estrangeiros, especialmente (que maldade, Seth Kugel!) ‘quando têm em mente que um dia visitarão o Hemisfério Norte e recolherão a retribuição pelos favores prestados’.
Que diferença entre um depoimento e outro… Claro, cada um segue sua própria pauta. Seth Kugel não se programou para uma impossível visita aos bororos, da mesma forma que Lévi-Strauss, ao que se saiba, jamais se sentiu tentado a uma noitada no Baixo Gávea. Cada um experimentou a sua espécie de Brasil. O do sábio francês revelou-se áspero e temível. O do repórter americano é um jardim das delícias, sem político malandro nem freira assassinada, onde não se toma conhecimento nem do tiroteio nas favelas, ali ao lado.’
ENTREVISTA / RICARDO KOTSCHO
‘Quarenta anos depois, repórter de si mesmo’, copyright copyright Unidade nº 271 (Jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo), janeiro-fevereiro 2005
‘Quatro décadas dedicadas ao jornalismo, mais de 3.000 reportagens realizadas, quatro prêmios Esso, dois Vladimir Herzog de Direitos Humanos e dois anos à frente da Secretaria de Imprensa do Governo Lula. O que poderia ser o início de uma tranqüila aposentadoria, para Ricardo Kotscho é sinal de que é preciso recomeçar. Às voltas com a elaboração de dois livros, um dos maiores repórteres brasileiros se depara com uma das mais difíceis reportagens da sua carreira: falar sobre si mesmo. Em entrevista ao Unidade, Kotscho fez um balanço da sua trajetória, no mês que comemoramos o Dia do Repórter, em 16 de fevereiro.
Unidade – Como você começou no jornalismo?
Kotscho – Uma brincadeira que faço sempre é quando a pessoa não dá certo na vida, vai ser jornalista. Daí quando não sabe escrever, vira fotógrafo. E quando não sabe nem tirar fotografia, vira chefe (risos). Comecei a escrever no jornal do Colégio Santa Cruz durante o ginásio, chamado Verbâmidas, que foi criado pela turma do Chico Buarque, que estava uma a frente da minha. Tinha um bom professor de português, o padre José de Almeida Prado e essa era a matéria que me dava melhor, escrevendo redação e tal. Quando eu tinha 12 anos, meu pai morreu e fui trabalhar numa banca de jornal. Naquela época saiu jornal toda hora e comecei a gostar desse ‘trem’, cheiro de pão quente era cheiro de jornal quente.
Durante algumas horas por dia eu trabalhava nessa banca perto de casa e com 16 anos arrumei emprego na Folha Santoamarense, um jornal de bairro que acabou logo, depois fui para a Gazeta de Santo Amaro, em 64. Esse jornal ainda existe. Pretendo visitar o dono que me convidou pra trabalhar lá, levando o livro. Fiquei até 67, quando um primo meu me disse pra ir na revista Realidade, porque ele tinha vendido enciclopédia Britânica pro pessoal e disse que tinha um primo jornalista – que era eu. Cheguei lá e o pessoal deu risada, dizendo ‘aqui só tem cobra, você ainda tem que gramar muito, trabalhar em jornal.
Daí me deram um bilhete para falar com o chefe de reportagem da manhã, no Estadão, e comecei a trabalhar no mesmo dia, em fevereiro de 77. Fiquei lá 11 anos. Arrumei um emprego graças à Realidade, mas nunca trabalhei lá. Foi a melhor publicação da história da imprensa brasileira. Na década de 80, a Folha tinha um intercâmbio com a USP para cursos de extensão de 1 semestre e muitos anos depois fui convidado (o Cláudio Abramo foi o primeiro e eu o segundo) para fazer e precisava ter um tema. Escolhi a Realidade.
Unidade – Em sua trajetória como repórter, quais matérias você destacaria?
Kotscho – Calculo, por alto, que fiz mais de três mil reportagens. É muito difícil escolher, porque as épocas são diferentes também. Eu divido esses 40 anos de carreira em dois períodos: primeiro de 64 a 84, da ditadura às eleições diretas, que foi a pá de cal da ditadura. Depois de 84 a 2004, quando já estava trabalhando no Palácio do Planalto. Duas reportagens tiveram maior repercussão e me marcaram mais. Do tempo da ditadura, foi a das mordomias, em 1975, a primeira série de reportagens com denúncias sobre corrupção e privilégios durante o regime militar. E depois a campanha pelas diretas na Folha, em 84, que foi uma campanha cívica e envolveu todo o País e a nossa geração.
Unidade – A reportagem, que é a essência do jornalismo, está mesmo em crise?
Kotscho – Desde que eu comecei a fazer reportagem, dizem que ela está em crise. É como Carnaval, Natal, tudo está em crise permanente, mas não acaba (risos). Nem o Jornal do Brasil, que está em crise há 20 anos, mas está aí, ruim pra caramba, mas tá na banca. Já participei de 500 debates e seminários sobre a ‘morte da reportagem’. Não vai morrer enquanto existir repórter. A verdade é que temos cada vez menos repórteres capazes de fazer uma boa reportagem, isso é um fato. Digo isso porque até outro dia estava no Governo e convivi com um monte de jornalistas, de diversos veículos, e posso garantir que existem repórteres ainda. Poucos, mas existem, em todas as redações.
O que não existe? É gente dentro das redações com poder de mando que banque esse negócio. Se não tivesse gente bancando, a matéria das mordomias não teria saído até hoje, nem o massacre dos posseiros, a luta pela terra e várias outras matérias que já fiz. O que também falta é mais tesão desses bons profissionais para brigar lá dentro, porque ninguém dá nada de graça. Uma coisa que posso falar com orgulho é que, embora eu fosse um funcionário do Governo, eu passava sugestões de pautas que nada tinham a ver com o Governo aos jornalistas que eu achava que tinham jeito pra coisa. Eles foram fazer essas matérias, que depois saíram publicadas. Eu viajava e via os fatos acontecendo e pensava: por que ninguém ia fazer matéria lá? As pessoas iam cobrir a visita do presidente, chegavam um dia antes e depois iam embora. Isso demonstra que quando o cara quer fazer, ele faz, encontra boas histórias. E os jornais vivem disso.
Unidade – O que exatamente aconteceu na Folha depois da Campanha pelas Eleições Diretas?
Kotscho – Uns foram demitidos e outros pediram demissão. Vivi duas crises muito semelhantes, uma no Estadão em 77 e outra na Folha em 84, onde acabei ficando depois. Digo que é parecido porque foi uma passagem de geração. Em 77, a 4ª geração da família Mesquita estava entrando no jornal, houve mudança de prédio, reengenharia, contrataram muitos seguranças e obrigaram o Clóvis Rossi, que era o editor chefe, a fazer um grande corte na redação. Houve um confronto entre a geração que trabalhou lá durante a ditadura, enfrentando censura e tudo mais, e a nova ordem que se instalou no jornal. Fizemos uma edição extra no Unidade, chamada ‘Dias de crise no Estadão’, nunca vou me esquecer.
Daí aconteceu uma coisa curiosa que me fez lembrar do vínculo com a questão da Folha em 84, que também foi uma passagem de geração, quando o Otávio Frias Filho assumiu a direção da redação.
Havia a turma antiga, que não era nem tão antiga, porque tinha gente de todas as idades, mas era basicamente o time que fez as diretas. Hoje em dia, passados 20 anos, até entendo isso, uma questão de afirmação de uma nova ordem. O que ficou depois disso tudo, tanto na Folha quanto no Estadão, é que os bons profissionais continuaram trabalhando, cada um num lugar.
Não me arrependo de ter participado daquele movimento, acabei saindo dos dois lugares, participei da luta junto com os outros, embora não tivesse nenhuma questão pessoal. Tanto que numa reunião na Folha, em 84, quando colocaram até gravador na mesa, chamaram o Paulo Francis de Nova Iorque para dar uma força ao pessoal que estava assumindo e ele disse ‘Kotscho, você está reclamando do que? Você faz o que quer aqui dentro’. Eu disse que não estava para me defender nem nada, mas que era um dos representantes da redação, o CCRE.
Em cada processo traumático desses, houve uma diferença muito grande. Em 77, o Sindicato dos Jornalistas era muito mobilizado. Saíram na época mais de 40 pessoas, demitidos ou que quiseram ir embora. Na época, pedi demissão e fui trabalhar como correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha, que foi profissionalmente muito bom pra mim. O Clóvis Rossi foi parar em Brasília, o Sérgio Mota Mello não sei aonde, depois nos encontramos novamente. Quando voltei ao Brasil, nos encontramos na IstoÉ, com o Mino Carta. Foi um outro bom momento. Depois essa mesma turma fez o Jornal da República, depois a maioria foi para a Folha, um outro bom momento, porque eram os anos de abertura.
Unidade – E como foi a greve dos jornalistas em 79?
Kotscho – Não acompanhei o início do processo, porque eu estava viajando, fazendo reportagem fora. Quando cheguei, já estavam fazendo a segunda assembléia no TUCA. A verdade é que, ao invés de aumentar a mobilização em torno do Sindicato houve um esvaziamento a partir de 79, muita gente perdeu o emprego, foi bastante traumático. Até o David de Moraes (ex-presidente), que é um cara muito legal, foi bastante criticado, mas ele não tinha culpa nenhuma. Todas as categorias profissionais daquela época estavam reivindicando direitos através de greve, e o jornalista, um ser politizado, que cobria greves, então o clima era propício a isso. Nenhum jornal ou revista deixou de sair e nenhum telejornal deixou de ir ao ar. A greve estava difícil: piquete, brigas, polícia, gente jogando pregos nos pneus dos caminhões que distribuíam os jornais, pichando os muros da cidade com a frase ‘não compre jornais!’, daí alguém pichou embaixo ‘minta você mesmo’ (risos).
Unidade – Como você descobriu o Sindicato dos Jornalistas na sua vida?
Kotscho – O Sindicato, na época da ditadura brava, estava na mão da pelegada, há anos. Ninguém vinha aqui, porque eles tomavam conta. Era o tempo da mudança entre o Romeu Anelli para o Audálio Dantas, em 75. Mesma época da morte do Vlado, em outubro, mas a mudança foi no começo do ano. Um grupo de jovens do Estadão me chamou para participar desse movimento, na época eu era muito desligado, como se dizia na época, alienado mesmo. Meu negócio era futebol, sair à noite e tal. Bom, me disseram que, como o Sindicato está ruim, vamos participar da eleição para mudar. Daí surgiu o movimento de fortalecimento do Sindicato (MFS), que depois virou ‘MOFOS’ (risos).
Não fiz parte dessa diretoria, participei mais tarde. Depois participei da FENAJ, como vice-presidente, quando o Audálio Dantas foi eleito presidente, em 81, logo depois que ele saiu do Sindicato. Como o Estadão era aqui do lado, a gente vinha, brigava, fazia e tal. Foi muito importante isso. Quando saiu aquela matéria sobre as mordomias, pesou a barra pro meu lado. Muito jornalista foi preso, perseguido e acabou dando no assassinato do Vlado. Mas não dá pra comparar o que acontecia naquela época com o que acontece hoje, porque ali era uma questão de sobrevivência. Atualmente se discute valor de PJ, quanto se deve pagar ao free lancer, era outro contexto. Mas não sou saudosista, acho que meu tempo é o agora. Esse pessoal que está entrando na profissão agora, na faixa dos 20, 30 anos de idade, vai pegar um Sindicato de outra maneira. Por exemplo, não dá pra comparar o Sindicato dos Metalúrgicos de hoje com o da década de 70.
Unidade – Que tipo de mudança pode acontecer?
Kotscho – Vou contar uma conversa que tive com o presidente da Associação Nacional dos Jornais, Nelson Sirotsky, que conheço há muito tempo. Falamos sobre problemas tanto do lado do profissional quanto do empresário. Não são todos santos de um lado e diabos do outro. No final, ele virou pra mim e disse que uma regra do jogo clara interessa aos bons profissionais e às boas empresas também. Só não interessa às empresas picaretas e aos profissionais picaretas.
Disse a ele e também ao Sérgio Murillo (presidente da FENAJ), que, da mesma forma como acontece em outros setores econômicos, tem que haver uma discussão permanente entre o lado patronal e o dos jornalistas. Mas não sinto esse diálogo no nosso meio. É sempre um confronto. Toda vez que se discute imprensa, alguém diz que querem acabar com a liberdade de imprensa. Não! É justamente o contrário! É garantir liberdade de imprensa, mas liberdade para todos, principalmente para a sociedade saber o que está acontecendo. O diálogo demora, é frustrante, mas tem que existir.
Unidade – Como foi a experiência de ser repórter à frente da Secretaria de Imprensa do Governo? Como foi ‘mudar de lado’?
Kotscho – Como tudo na vida, a gente acaba se acostumando. Foi mais ou menos como em 95 fui convidado para ser diretor de jornalismo de uma rede de televisão, uma rede pequena (CNT), mas foi tudo novo pra mim, mudar para televisão e para uma nova cidade, Curitiba. Dessa vez o susto não foi tão grande, porque já havia feito as campanhas do Lula de 89, 94 e 2002. Conversei muito com a Ana Tavares, que foi a Secretária de Imprensa durante os oito anos do Governo FHC, que é uma velha amiga minha e da minha mulher, que me deu muitas dicas. Mas, por mais que você esteja preparado, é um choque muito grande nas primeiras semanas, dos dois lados. Primeiro, porque era uma grande novidade para todos nós ali, porque a grande maioria nunca tinha sido do Governo, a começar pelo presidente. Os principais ministros também. Dos ministros do Palácio do Planalto, acho que só o Dulce teve uma experiência no Governo, na prefeitura de Belo Horizonte.
E os jornalistas, por sua vez, estavam lá há muito tempo e queriam que tudo continuasse como era. Só que o presidente que assumiu era completamente diferente do que saiu, em tudo. No início, houve muito problema com a segurança, porque não estavam acostumados com um presidente que vai para o meio do povo, foi muito tumultuado. Depois de uns dois meses, resolvi mudar tudo. Percebi que no Governo não foi tão fácil como foi na CNT ou no canal 21 (Bandeirantes), quando resolvia mudar, falava com o dono e pronto. Então fui falar com o presidente, que queria mudar tudo, até a estrutura física. Ele disse que tudo bem, pode fazer.
Quando resolvi derrubar todas as paredes da Secretaria de Imprensa foi um fuzuê, e o seguinte: descobri que podia fazer tudo aquilo sem fazer licitação, sem gastar nada do Governo, porque eu não ia construir nada, apenas derrubar paredes e divisórias. Queria ter uma redação onde eu pudesse ver as pessoas e o que cada um estava fazendo. De onde veio a expressão ‘repartição pública’? É porque é tudo repartido, cada um ficava numa salinha e você não sabe o que estavam fazendo.
Unidade – Como era a equipe que trabalhava com você?
Kotscho – Continuou com o mesmo número, troquei alguns, mas ficou em torno de dez jornalistas profissionais. Mas tinha muita gente na área técnica, som, vídeo, gravação, distribuição, xerox, esse negócio todo. O total de funcionários era de 70. Mas era uma estrutura pequena, porque muitas prefeituras têm mais jornalistas do que tem a Presidência da República. Mas não aumentei o número de jornalistas, porque descobri que não precisa ter mais gente, é melhor ter gente qualificada e motivada.
Montei uma redação em que um era responsável pelo atendimento a sites, outro às rádios, outro aos colunistas, outro aos repórteres especiais, outro aos comitês de imprensa, que é uma instituição do Palácio do Planalto, com cerca de 100 profissionais que precisam ser atendidos diariamente. Consegui não só reestruturar toda a Secretaria de Imprensa, mas inclusive os Comitês de Imprensa, que era um pardieiro, que tinha os carpetes sujos, fios desencapados, causando uma péssima impressão aos jornalistas estrangeiros ou a qualquer visitante que chegava no Palácio.
Montamos uma estrutura de redação com editorias e tudo começou a funcionar. No fim, a coisa já estava andando e percebi que se eu fosse embora, não faria a menor diferença. Tanto que no meu lugar ficou o Fábio Kerche, que era o meu adjunto. Acho até que a imprensa do Governo melhorou depois (risos).
Unidade – Tudo correu de acordo com o seu plano inicial?
Kotscho – O plano inicial era ficar um ano, mas não deu tempo nesse período. Então fiquei mais um para montar toda essa nova estrutura, daí consegui terminar isso no final do ano passado.
Unidade – Todo mundo diz que você caiu por causa do Conselho Federal dos Jornalistas…
Kotscho – Imagina, não foi nada disso! Isso é tão absurdo… vou te dar um outro exemplo: quando fui no programa ao vivo do Alberto Dines, o Observatório da Imprensa, no dia em que o Governo tomou a decisão a respeito do visto do jornalista norte-americano Larry Rother, de tirar o cara do País e eu tinha sido voto vencido, fui contra e todo mundo sabe disso. Tinha combinado e não podia deixar de ir ao programa, porque a discussão era sobre o Larry Rother.
Só que antes dessa decisão do Governo, eu estava tranqüilo, porque todos eram contra a matéria que ele fez. Quando saí de lá, fui a um bar que tinha um monte de jornalistas e corria um boato de que eu tinha pedido demissão do Governo. Não tinha pedido demissão coisa nenhuma e tinha decidido ficar e brigar para que o Governo revogasse essa decisão, como de fato aconteceu naquela semana ainda. Mas pra muita gente, ficou isso.
É tão absurdo isso de que saí por isso ou por aquilo, saí porque eu quis, todo mundo em Brasília sabe disso. Tanto é que na minha despedida, fiquei muito emocionado, porque o presidente fez uma festa de última hora, coisa que ele não costuma fazer, e todo mundo chorou – inclusive ele.
Unidade – Mas é um elemento que aumenta essa confusão, porque na entrevista concedida à revista Caros Amigos (outubro de 2004) saiu que você não tinha intenção de deixar o Governo. Daí veio a história do Conselho e todo mundo juntou uma coisa com a outra…
Kotscho – Eu não podia falar naquela entrevista, que saiu em outubro, mas foi concedida em setembro, porque não posso anunciar uma decisão dessas pela imprensa. Naquela altura, eu já tinha resolvido. Mas tinha que conversar como todos no Governo antes. Sou ligado a essas pessoas muito antes do Governo Lula. Tinha que oficializar de forma correta.
Todo mundo que trabalhava comigo lá, ao redor, já sabia disso. O presidente sempre respeitou minhas posições. Nós discutíamos, divergíamos e tal. Inclusive, nessa questão do Larry Rother, ele dizia que entendia meu ponto de vista por ser jornalista. Nunca houve esse tipo de coisa, porque sou jornalista e ele é político, e somos amigos acima de tudo.
Esse cargo de secretário de imprensa, apesar do salário ser baixo, bem menos do que eu ganhava na imprensa, é muito cobiçado. Quando eu avisei que ia sair, vi um monte de gente querendo pegar o lugar, muito boato. Naquela entrevista da Caros Amigos, quis deixar bem claro que não pedi demissão naquele episódio.
Unidade – Você foi substituído por um sociólogo. A própria FENAJ protestou publicamente contra isso, já que ele não é um jornalista profissional. O Sindicato defende que a comunicação com os jornalistas esteja nas mãos de outro jornalista. Isso está incluído na defesa que é feita da categoria.
Kotscho – Quem ocupar esse cargo, independente da formação profissional, tem que ter duas coisas: primeiro, um ótimo trânsito dentro do Governo e junto ao presidente da república, e confiança absoluta. Segundo, tem que ter o respeito e a confiança dos jornalistas. Quando tive que escolher a pessoa que ficaria no meu lugar, falei com o presidente e foi automático. Ele tem absoluta confiança do presidente há vários anos e já trabalhava comigo há dois anos e tem a confiança de todos os jornalistas.
Não acho, nesse caso específico, que tem que ser uma coisa só dos jornalistas, mas respeito a posição da FENAJ e do Sindicato. Mas ao meu ver, isso não é o mais importante. O que conta mais é essa relação de confiança com os dois lados do balcão, você fica no meio. Se você tiver absoluta confiança do Governo e, ao mesmo tempo, dos jornalistas, e o Fábio Kerche tem.
Unidade – Como era um dia típico na Secretaria de Imprensa do Governo?
Kotscho – É mais ou menos como numa redação, uma anti-rotina, porque tínhamos muitos eventos externos, viagens para mais de 30 países e em todos os Estados brasileiros. Em Brasília, acordava cedo, assistia os telejornais da manhã, recebia uma sinopse da Radiobrás chamada Mídia, que é um negócio muito legal, porque não é uma sinopse escrita. São as principais matérias políticas e econômicas dos principais jornais brasileiros. Recebia logo cedo, assim como todos os ministros e o presidente recebem também. Daí quando fosse ao Palácio lá pelas oito, oito e meia já tivesse uma idéia do que estava acontecendo.
Além disso, tem uma reunião com representantes dos vários setores de comunicação do Governo. Faziam relatórios com uma avaliação da mídia e uma avaliação política do dia. Quando tinha que falar alguma coisa ao presidente, ia direto na hora que ele chegava. Tinha esse acesso direto a ele, isso foi combinado antes, senão não dava pra trabalhar. Ou ele me chamava para esclarecer alguma coisa. Daí começava a pauleira, os jornalistas me procuravam, se eu tinha alguma informação já passava, se não tinha ia apurar.
Muitas vezes ainda não havia uma posição do Governo sobre algum assunto e os jornalistas já queriam saber. Na minha função, não podia especular. Ou é ou não é. Adotei a seguinte norma: não tiro ninguém do caminho. Se o repórter está no caminho certo, deixa ele seguir em frente. Também nunca privilegiei ninguém, do tipo ligar pra pessoa e dizer que tinha algo legal pra ele, exclusivo.
Unidade – Qual é o comportamento dos jornalistas que cobrem as notícias de Brasília?
Kotscho – Eu já tinha feito coberturas presidenciais, mas eventualmente e geralmente no exterior. Mas ali em Brasília, no dia-a-dia, eu nunca tinha feito essa cobertura. No on-line é um perigo com a informação. O cara ouve uma frase qualquer, bem de longe, gravou assim… de vez em quando sem nem chegar com o gravador perto, acha que entendeu uma coisa e tal, corre no on-line e põe. E aquilo ali começa a ganhar vida própria, porque no on-line um copia do outro e quando chega às cinco da tarde, aquilo já virou fato consumado e vai para as matérias, para a televisão e para o rádio.
Por exemplo, um on-line deu o dólar um real a mais do que estava a cotação do dia. Uma falha, um erro, não sei. Mas para mudar levou vinte minutos. E em vinte minutos você derruba a bolsa. E outra coisa também, que eu senti e que eu não sabia: existe uma competição entre profissionais do mesmo veículo. O que sempre entendi foi competição entre diferentes jornais, entre diferentes televisões. Então te ligam cinco pessoas do mesmo jornal, da mesma revista, da mesma televisão para tratar do mesmo assunto. E um fica chateado com você e tal por que já tinha falado com outro. ‘Ah, mas eu já falei com fulano’, ‘pô, mas por que você falou com ele e não falou comigo?’.
Unidade – Por que isso acontece?
Kotscho – É uma guerra pela manchete. E como todo mundo precisa trazer um furo, forçam a barra. E aí entra uma expressão que aprendi lá que é turbinar matéria. Às vezes tem um pequeno negócio que o cara ouviu num restaurante, que algum secretário de não sei quem falou para não sei quem e tal. A pessoa, ao invés de checar aquele negócio e ver se é aquilo mesmo, para sair na frente, publica assim mesmo manchete.
Por exemplo, teve um episódio lá entre dezenas, que cancelaram uma viagem do Lula. Um cara ouviu alguém falar não sei o que e saiu na primeira página de um grande jornal. E não havia nada daquilo. Isso é quase diário. Essa extrema competitividade, a concorrência entre os profissionais. Eu sofria muito com isso, mas imagino que os profissionais também.
Unidade – A pauta era sempre a mesma ou havia originalidade em enfoque? O pessoal estava sempre atrás de inovação?
Kotscho – Raramente. A impressão que eu tenho sobre é que existem uns satélites que distribuem pra todo mundo. E mais que isso, não é só a pauta, o enfoque dado geralmente é o mesmo também. Aí eu descobri como é esse negócio. Por exemplo: tem um evento qualquer no qual o presidente está lançando um programa qualquer. Enquanto ele está falando, os jornalistas já estão conversando entre eles e falando, ‘olha, aqui ele quis dizer isso. Aqui ele tá respondendo aquele negócio de fulano de tal. Aqui não sei o que…’. De tal maneira que, quando o presidente termina de falar, já há um consenso entre os jornalistas que ele quis dizer tal coisa. E que o mais importante que ele quis dizer foi tal coisa. Aí o lide no dia seguinte é igual em todos os lugares.
Unidade – E como você reagia quanto a essa prática?
Kotscho – Isso foi uma coisa nova para mim. Eu detestava essas coisas como jornalista., sempre fui muito ciumento com meu lide. Aí não tem como você desmentir ou corrigir. Se é um jornalista que escreve um negócio que não foi dito, né? Você pega a gravação e fala, ‘isso aqui não foi dito’. Agora, se é uma interpretação do que ele quis dizer… e aí entra o off, então não tem jeito. O off é um negócio que você não sabe da onde surgiu, como surgiu, porque o cara não pode dizer quem foi. E você não tem como desmentir um negócio que você não sabe de onde saiu. Daí um jornal pauta o outro e ‘suíta’ o outro, sabe?
Unidade – Por que sempre repercutem as informações do mesmo jeito, com o mesmo enfoque? É por causa dessa aparente velocidade frenética do jornalismo atual?
Kotscho – Não, é por medo do furo. Esse é o problema. Então as pessoas não se preocupam em ter uma informação exclusiva, em dar um enfoque diferente. Se tudo mundo tá igual, ninguém é furado. Entendeu? É esse o problema.
Unidade – Como era o relacionamento com os colunistas?
Tem os que ligam todo dia e você passa o que pode. Tem os que gostam de coisas mais engraçadas – e eu gosto dessas coisas engraçadas – e você passa pra pessoa porque sabe que só cabe naquela coluna, não adianta passar pra outro. Tem colunista que trabalha muito e tem colunista que espera que você ligue. Esses que esperavam ligação minha, se deram mal. Os que me ligavam para checar ou pedir alguma informação, eram bem atendidos. E quando eu não tinha, e muitas vezes aconteceu isso, eu dava uma de repórter: ia atrás do presidente ou dos ministros para saber a informação.
Não é um bicho de sete cabeças. Depois de algum tempo, você acaba encontrando uma forma de sobreviver na selva. É cansativo, porque você só trabalha. Sai à noite e só encontra jornalistas. Não desliga. Uma coisa boa, iniciativa do presidente, é que nos finais de semana a gente não ia falar nada sobre imprensa, porque os jornais e as revistas já estão acabando e não dá pra fazer mais nada, já está na banca. Então é melhor deixar pra segunda-feira. Diariamente, começava ‘as oito, oito e meia e ia até às nove, nove e meia da noite nessa rotina.
Unidade – Como você avalia o tratamento dado pela mídia ao projeto do Conselho Federal dos Jornalistas e o trâmite dentro do Governo?
Kotscho – Houve um verdadeiro massacre da mídia. Houve mudanças no texto do Projeto de lei, mas o massacre já tinha acontecido. Aprendi uma coisa nas campanhas do Lula que participei, que é não colocar a culpa em quem ganhou, mas procurar saber porque você perdeu. Acho que o projeto foi mal encaminhado por dois lados. Num lado, imaginava, como ex-dirigente sindical e jornalista, que isso estivesse muito amadurecido na categoria e que todos estivessem de acordo. Tanto é que, quando anunciei no Congresso dos Jornalistas em João Pessoa, em nome do presidente, foi tanto aplauso, que eu não esperava a reação que aconteceu depois. Não houve discussão nas redações e com os jornalistas mais famosos, aqueles 20 ou 30 que mandam na mídia brasileira ao lado dos donos dos veículos.
Por outro lado, houve falta de articulação no Congresso. Sempre que há algum projeto polêmico, você precisa de aliados dentro do Congresso Nacional. Quando começou a onda de ataques na mídia, fiquei perplexo! Porque ninguém está defendendo isso? É um negócio bom. A idéia é correta, temos que discutir o papel da imprensa e a regulamentação. Mas para conseguir isso, temos que ter aliados, dentro da categoria, entre os empresários da mídia e no Congresso. Mas acho que nada está perdido. Nunca se discutiu tanto a imprensa brasileira e o papel do jornalista quanto no ano passado. Aprendemos que, quando voltar o tema, terá que ser diferente. Teremos que nos organizar melhor e conquistar aliados. Essa não é uma questão dos jornalistas nem dos empresários de comunicação. É da sociedade brasileira.
Lembro que, no primeiro dia em que o projeto foi apresentado no Congresso, pedi que fosse distribuído nas redações para que todos soubessem, mas ninguém deu nada no dia seguinte. Daí pedi ao meu pessoal que tirassem cópias e distribuíssem no Comitê de Imprensa. Oras, se fosse algo contra a imprensa, teria amoitado. Eu que pedi que fosse divulgado. Quero deixar claro que não havia nenhum interesse do Governo sobre o tema, foi simplesmente o atendimento de uma reivindicação. Naquele momento, o Governo apresentava bons resultados na área econômica, a oposição e a mídia estavam sem bandeira pra bater no Governo e se apegaram nisso. Aquele negócio que queriam dizer de que a inflação vai disparar, o desemprego vai aumentar, o Governo acabar, não estava acontecendo mais.
Unidade – O Lula será candidato à reeleição?
Kotscho – Primeiro, nunca ouvi o Lula dizer que será candidato à reeleição. Segundo, eu sou contra o instituto da reeleição, sempre fui. De todas as experiências recentes na América Latina que conheço, o segundo mandato sempre foi pior do que o primeiro. Outro ponto: as idéias no Governo se cansam e se esgotam, e as pessoas também. Por isso sou a favor da renovação.
Lembro que o presidente Lula foi quem acabou com as reeleições no Sindicato dos Metalúrgicos e, por ser muito amigo do Lula e por saber que ser presidente da República é o pior emprego do mundo, não sou a favor da reeleição. Agora, vendo o quadro político de hoje como jornalista, não vejo outra maneira de prosseguir com esse projeto político.
Ele é um forte candidato à reeleição. Tenho certeza que, se um dia o Fernando Henrique Cardoso abrir o coração dele, o que é muito difícil, ele vai reconhecer que, se tivesse saído ao final do primeiro mandato, a avaliação dele na sociedade brasileira seria muito melhor do que foi depois do segundo mandato.
Unidade – Como é o projeto para o livro? Há um prazo para ser feito?
Kotscho – Serão dois livros, editados pela Companhia das Letras. O primeiro vai contar esse período de 64 a 2004, com o material que não saiu nos jornais e nos locais onde trabalhei, os bastidores da vida: pessoal, familiar, política, sindical, profissional, como as redações foram mudando. São dois períodos muito marcantes: 20 anos de ditadura e 20 anos de democracia, com o que foi mudando ao longo desse tempo, relembrando casos, personagens que eu convivi e termina com a experiência que vivi no Governo, em Brasília, que será o último capítulo.
O outro livro é uma seleção de 15, 20 reportagens, contando como surgiram as pautas. O prazo para terminar os dois é até o final do ano. O mais difícil será o primeiro, que vai precisar de bastante pesquisa. E tenho a sorte de ter guardado todos os blocos de anotação, desde o começo da minha carreira, uns 300, de todas as épocas. Até do Globo Rural, onde fiquei por algum tempo, eu guardei.
Unidade – E você é organizado?
Kotscho – Sempre pesquisei muito para fazer as matérias, qualquer uma, sempre ia nos bancos de dados da Folha e do Estadão, por dois motivos: para entender o assunto e para não repetir aquilo que já saiu. E fui guardando cópias disso tudo.
Por exemplo, ia fazer uma matéria na Amazônia e pegava os jornais da região, lia e guardava, para saber qual era o cenário na época. O mais difícil é organizar esse material. Sou organizado no sentido de guardar as coisas, mas não de ordenar. É um caos! Tenho umas 20 caixas cheias de papel, é muita coisa.
Unidade – Qual é relação entre um pai jornalista e uma filha na mesma profissão?
Kotscho – Não é fácil. Ao mesmo tempo que tenho muito orgulho, acontece muita discussão. Primeiro porque não estava nos planos dela ser jornalista, foi uma surpresa pra mim. Ela fazia teatro. Daí, no ano do vestibular, a Mariana escolheu jornalismo. (Kotscho tem duas filhas: Mariana, 32, jornalista; Carolina, 29, fez desenho industrial e trabalha com cinema e televisão).
Achei legal e falei pra ela que tudo bem, você vai fazer faculdade, mas vai ter que se virar, arrumar emprego sozinha. Ela conseguiu um emprego na Gazeta de Pinheiros, por coincidência também um jornal de bairro, do mesmo jeito que eu comecei. Trabalhou lá por alguns meses e depois foi para a televisão, onde acabou ficando. Mas ela me mostrava as primeiras matérias e eu só sei ler matéria com a caneta na mão.
Ela dizia: ‘não estou pedindo pra você mexer na minha matéria, é só pra você ler’. A gente conversa muito sobre a profissão, porque ela é muito firme nas convicções dela. Outro dia fui falar pra ela sobre essa geração, que ela é jovem, e ela disse ‘pára com esse negócio pai, já tenho 14 anos de profissão’. Levei um susto!
Unidade – Você é um repórter nato e, no momento, está fazendo outra coisa, que é a compilação de dados para os seus livros. Você tem vontade de voltar às suas origens?
Kotscho – Parece um absurdo, é muito estranho, porque passei a vida inteira falando dos outros, fazendo perfil, entrevistando os outros. E agora, pela primeira vez, vou escrever uma história, que é uma reportagem, sobre eu mesmo. Preciso tomar muito cuidado pra isso não virar uma coisa egocêntrica e, ao mesmo tempo, preciso encontrar os defeitos, senão fica falso.
Sem sacanagem, pretendo contar as mancadas também. Porque nesse tipo de livro o sujeito só conta as coisas que deram certo. Serei sincero o máximo possível, o mais próximo da verdade, que é o que a gente persegue a vida inteira.’