‘Eis uma charada de Hollywood: se um carro sai de Los Angeles para Reno às 9h viajando a 50 km/h e um outro sai de Reno para Los Angeles no mesmo horário viajando a 65 km/h, quando eles se encontrarão? Resposta: não somos obrigados a fornecer essa informação. Foi sempre difícil arrancar números de Hollywood, mesmo quando contam histórias positivas. O mais recente exemplo é a crescente influência das vendas internacionais de DVDs.
Nos últimos dois anos, a Motion Picture Association of America (MPAA), organização de lobby dos grandes estúdios, alegou que Hollywood perde US$ 3,5 bilhões ao ano, fundamentalmente no exterior, com a venda de cópias ilegais de filmes, na forma de DVDs piratas e do equivalente asiático mais barato do formato, os VCDs.
Mas a MPAA não é tão ruidosa quanto se trata de perguntas sobre o montante que os estúdios de Hollywood vêm faturando com vendas externas legítimas de vídeos produzidos nos Estados Unidos (categoria que inclui DVDs, VCDs e fitas VHS). ‘Os números são confidenciais e nós não os divulgamos’, disse Barbara Berger, porta-voz da MPAA.
Com base na maior parte das estimativas, as receitas com vendas internacionais de vídeos americanos são a parte de mais rápido crescimento da indústria do cinema. A estimativa mais confiável vem da Screen Digest, companhia britânica de coleta de dados, que calcula que as divisões de vídeos domésticos dos estúdios de Hollywood tenham auferido US$ 11,4 bilhões em receitas de atacado, do total de US$ 24,6 bilhões que consumidores internacionais gastaram comprando e alugando vídeos domésticos em 2004.
O que é mais certo é que as receitas extraordinárias obtidas no exterior com a venda de vídeos começam a afetar a forma pela qual a indústria do cinema é gerida. A tendência vem inflando os orçamentos de filmes com grande potencial internacional (como ‘Batman Begins’, que deve estrear neste ano), alterando a maneira pela qual os astros negociam participação em lucros e levando os estúdios a gastar milhões no combate à pirataria, especialmente na Ásia e na Rússia, que temem possa ameaçar os lucrativos mercados em desenvolvimento.
‘Os vídeos domésticos internacionais são o último grande centro de lucros para os estúdios, e eles vão manter esses números os mais nebulosos que puderem, pelo maior tempo possível’, disse Ron Bernstein, que dirige o departamento de livros da International Creative Management na Costa Oeste americana, negociando participação nos lucros líquidos de filmes para os autores de livros em que eles são baseados.
Divisão de lucros
A questão de como dividir os lucros inesperados obtidos com as vendas de DVDs no exterior é um assunto delicado entre os negociadores trabalhistas de Hollywood desde o ano passado, mas os estúdios conseguiram manter sua posição. Os sindicatos dos roteiristas e diretores recentemente fecharam acordo para um novo contrato padrão com os estúdios, sem avanços quanto à questão dos DVDs. Na semana retrasada, o conselho nacional dos atores e a federação norte-americana de artistas de TV e rádio votaram por recomendar que seus membros aceitem um novo contrato com os produtores sem nenhum aumento no valor residual a ser pago em razão de lucros com a venda internacional de vídeos domésticos.
Ninguém alega que os estúdios estejam propositadamente subestimando o valor bruto das vendas externas de vídeos ou informando erroneamente os artistas de Hollywood que têm acordos de participação no lucro dos vídeos.
Mas a contabilidade de receitas de transmissão de filmes e programas de TV revendidos para novas exibições no exterior há muito tempo vem gerando bastante trabalho para os auditores. Quase nenhuma das multinacionais que controlam estúdios informa a parcela das vendas relativa aos vídeos nos documentos apresentados à Securities and Exchange Commission (SEC, agência federal norte-americana que fiscaliza os mercados de valores mobiliários), preferindo informar totais brutos para os filmes de cinema e vídeo em uma categoria unificada conhecida como ‘entretenimento filmado’.
‘O problema da contabilidade dos estúdios é que eles usam muitos truques, mas se mantêm nos limites da legalidade’, disse Ed Limato, co-presidente da International Creative Management, agência que representa Mel Gibson, Richard Gere e Steve Martin. ‘Até que realizemos uma auditoria, não conseguimos determinar a divisão dos números de vendas de vídeos no país e no exterior.’
Para Limato e outros agentes que trabalham para grandes talentos, 2004 foi um ano excepcional. Os astros puderam negociar uma fatia nas receitas de vendas domésticas de vídeo, ao contrário dos membros comuns dos sindicatos, que estão presos a contratos que prevêem pagamento fixo de royalties. Como resultado, os astros conseguiram faturar até 7% das receitas brutas de distribuição em vídeo como royalties tipicamente, US$ 1 por DVD de filme vendido. O resto do elenco tipicamente divide um total de 1,1% do total vendido.
O próximo projeto da série Batman, que estréia em junho, demonstra de que forma as vendas internacionais de vídeos domésticos estão alterando os cálculos de orçamento de alguns dos filmes mais dispendiosos. Roven conseguiu um orçamento de mais de US$ 180 milhões, baseado nas expectativas de altas vendas de vídeos no exterior e nos EUA. Estima-se também que o orçamento mundial de marketing do filme possa exceder US$ 100 milhões.
É um imenso investimento, se considerarmos que as receitas de bilheteria dos filmes da série Batman caíram mundialmente, a despeito da inflação do período, de US$ 411 milhões no primeiro filme, em 1989, a US$ 238 milhões para o quarto título, em 1997.
‘A Warner Bros. não estaria colocando dinheiro dessa ordem no filme, a não ser que alguém acreditasse que o investimento seria recuperado com as vendas de vídeos domésticos’, disse Roven.
Gastos não-monitorados
Mesmo assim, uma avaliação acurada quanto ao montante não é fácil de obter. Ainda que companhias independentes de informações nos EUA consigam acompanhar com precisão os US$ 27 bilhões em gastos anuais com vídeos no país, monitorando a leitura de códigos de barra, não há uma companhia de informações independente com poder financeiro suficiente para acompanhar os gastos internacionais da mesma maneira, seja o total de vendas de vídeos, seja a receita bruta com a distribuição internacional.
‘Não acompanhamos esses números porque eles são muito difíceis de obter’, disse Scott Hettrick, editor de vídeo doméstico da revista ‘Variety’ e editor-chefe da ‘Video Business’.
Quando se trata de seus maiores sucessos internacionais, os estúdios divulgam o número total de cópias distribuídas.
DVDs em alta
E o futuro pode trazer notícias ainda melhores para Hollywood. Historicamente, a venda de aparelhos de DVD tende a estimular mais gastos com filmes e seriados de TV nesse formato. Em média, um domicílio norte-americano equipado com um videocassete aumenta em US$ 100 ao ano seus gastos com produtos de vídeo quando o substitui por um aparelho de DVD, de acordo com a Adams Media Research, de Carmel, Califórnia. Se os consumidores estrangeiros continuarem comprando aparelhos de DVD e adquirirem filmes em DVD ao ritmo norte-americano, os números de venda internacional de vídeos podem subir acentuadamente.
A Warner Home Video, líder entre os estúdios com fatia de 20% das receitas de vendas no atacado internacional, conta com aumento dessa ordem. Um executivo da Time Warner informou que a Warner teve faturamento bruto de US$ 2,25 bilhões com vídeos no exterior em 2004, e que o total ‘poderia facilmente atingir os US$ 5 bilhões ou US$ 6 bilhões dentro de três anos’.
Se o dinheiro continuar entrando com essa facilidade no mercado internacional de vídeo doméstico, os orçamentos dos grandes filmes continuarão a subir e produtores como Roven serão beneficiados. ‘Hoje em dia, o dinheiro é que manda, baby’, diz ele. Tradução de Paulo Migliacci’
RÁDIO
‘A nova era do rádio’, copyright Veja, 2/03/05
‘Cinqüenta anos depois do fim de sua era de ouro, o rádio parece estar reencontrando o seu vigor. Ele está presente na casa de nove em cada dez brasileiros, é influente na cultura e na política, tem enorme apelo sobre os jovens e ultimamente renovou sua capacidade de revelar estrelas para o showbiz. De acordo com o Ibope, mais pessoas sintonizam o rádio do que assistem a televisão diariamente na Grande São Paulo – um quadro que se repete na maior parte das metrópoles brasileiras. O número de emissoras não pára de crescer no país: são mais de 6.000, soma inferior apenas à dos Estados Unidos. Numa pesquisa recente com jovens de todo o Brasil, 89% apontaram o meio como sua segunda fonte de entretenimento, logo atrás da TV e à frente dos encontros com os amigos. Isso de segunda a sexta. Nos fins de semana, a situação se inverte: os jovens preferem ouvir rádio a ver televisão. A popularidade com a garotada explica, em boa medida, por que o rádio recupera o seu prestígio e volta a fazer estrelas. O radialista Milton Neves, por exemplo, é hoje um dos nomes fortes da Rede Record, enquanto os humoristas do Pânico, revelados pela Jovem Pan, animam os domingos da RedeTV!. E há inclusive quem busque o caminho inverso. O apresentador da Rede Globo Luciano Huck considera o rádio um veículo ‘charmoso’. É dono de duas emissoras no Rio de Janeiro e comanda um programa dedicado à música lounge. ‘Estamos falando de um veículo com 83 anos de idade no país, mas um corpinho de 18’, diz Antonio Rosa Neto, do Grupo dos Profissionais do Rádio, instituição que presta assessoria às emissoras.
A influência do rádio se estende por várias áreas. É estratégico para a indústria fonográfica incluir seus artistas na programação das emissoras, nem que seja pagando uma comissão – o velho jabá – aos programadores. O rádio também demonstra força política. Nos grandes centros ou no interior do país, as concessões são disputadas com voracidade pelos políticos. Estima-se que 45% das emissoras do país pertençam a essa classe. ‘O rádio cria um vínculo entre comunicador e ouvinte que faz dele um instrumento precioso para fins políticos’, diz o sociólogo Fernando Lattman-Weltman. Das câmaras municipais aos gabinetes do Executivo, não faltam exemplos de carreiras fomentadas no rádio, como a do ex-governador fluminense Anthony Garotinho ou a do senador gaúcho Sérgio Zambiasi, que ganharam fama à frente de programas assistencialistas. O rádio é, ainda, uma ferramenta dos grupos religiosos, que detêm cerca de 35% das emissoras do país. Nessa área, destaca-se o padre Marcelo Rossi, o maior fenômeno da história recente do rádio. Seu programa na Globo AM chega a receber 3.500 telefonemas por dia e é ouvido por 2 milhões de pessoas em São Paulo, Rio e Belo Horizonte.
Comercialmente, as rádios enfrentam o seu quinhão de problemas. Há anos seu faturamento estagnou-se na casa dos 4% do bolo de recursos de publicidade. Em desvantagem na disputa por verbas com a televisão e outros meios, as emissoras vêm buscando uma nova estratégia, que é a formação de grandes redes. As maiores delas são a Gaúcha Sat e a Jovem Pan, que controlam mais de 100 rádios cada uma. Há duas semanas, a Bandeirantes também atingiu essa marca. A empresa, que já detinha mais de noventa emissoras, acaba de incorporar mais seis, dentre as quais algumas das mais ouvidas em São Paulo, como a Nativa e a 89 FM. As redes são vistas com reserva por alguns especialistas, que acreditam que elas podem pasteurizar a programação musical das FMs. Esses temores, no entanto, têm sido desmentidos pela realidade. ‘As redes perceberam que têm de dar espaço para os noticiários e os locutores de cada região para não sofrer reflexos negativos na audiência’, diz o publicitário Paulo Gregoraci, do Grupo de Mídia São Paulo. De fato, o rádio tira boa parte de sua força da relação de proximidade com os ouvintes de uma localidade ou região. É isso o que explica o sucesso de um programa como Dona da Noite, que vai ao ar pela rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, e por outras 37 afiliadas da rede. Especialista em aconselhamento amoroso, o locutor Hamilton de Castro acalenta os insones mineiros há 29 anos. ‘Minha voz faz companhia aos ouvintes’, diz ele, que já foi padrinho de mais de 800 casais que se conheceram no programa ou durante os bailes e excursões que organiza.
Uma tendência no rádio é a segmentação. Emissoras popularescas que martelam axé, pagode e programas policiais sensacionalistas nos ouvintes têm como contrapeso aquelas que se voltam exclusivamente para a música clássica, o jazz ou o rock. Nos últimos quinze anos, surgiu ainda o filão do jornalismo em tempo integral. A pioneira foi a paulista CBN. ‘Nosso aliado é o congestionamento. O executivo fica preso no trânsito e liga para ouvir notícias e saber quais as vias em melhores condições naquele momento’, diz o apresentador Heródoto Barbeiro. Mas a mais surpreendente contribuição das rádios talvez seja a formação de uma nova geração de humoristas. Dos integrantes do Pânico à trupe do Na Geral, programa transmitido pela rádio Bandeirantes e possível atração futura da TV da mesma empresa, muitos têm conquistado espaço inclusive na televisão.
No ar há dez anos pela Jovem Pan, o besteirol do Pânico é o campeão de audiência na capital paulista do meio-dia às 2 da tarde, o ‘horário nobre’ do rádio. Transmitido por outras 42 emissoras, ele também lidera no ibope em cidades como o Rio de Janeiro. Em sua versão na TV, o programa alcança a média de 6 pontos, um belo desempenho para a RedeTV!. Ainda na linha do escracho, também fazem sucesso os comediantes Paulo Bonfá, Marco Bianchi e Felipe Xavier. Em meados dos anos 90, eles ficaram famosos na 89 FM, de São Paulo, com as piadas dos Sobrinhos do Ataíde. Em 2003 o trio se separou. Os dois primeiros continuam na 89, além de comandar o programa Rockgol na MTV. Xavier criou os personagens Incrível Rosca e Doutor Pimpolho, que são um hit na Mix. O primeiro é um machão sarado que esconde um segredo no armário. Pimpolho é um chefe autoritário, desbocado e mesquinho. Seria inspirado num conhecido empresário de rádio, mas Xavier desconversa quando se toca nesse assunto. ‘Ele é o chefe de todo mundo’, diz. No Nordeste, o maior fenômeno humorístico é de longe o radialista potiguar conhecido pelo codinome ‘Mução’. O locutor – cujo nome verdadeiro é Rodrigo Vieira – ganhou fama com um programa em que passa trotes telefônicos que sempre descambam para a baixaria. Os ‘mandantes’ são os próprios parentes e amigos da vítima, que fornecem a Mução informações para brincadeiras enlouquecedoras. Transmitido por 110 emissoras, o programa é abjeto, mas conquistou até gente famosa. ‘O presidente Lula tem o CD com meus melhores trotes’, afirma Mução. É o rádio no poder.
Rádio de esquerda ou de direita, a escolher
O grande salto tecnológico do rádio será a transmissão digital via satélite, que tem qualidade sonora muito superior à do FM e permite maior variedade de programação. A novidade ainda não chegou ao Brasil, mas na Europa já existem estações digitais abertas – isto é, disponíveis a qualquer um que tenha o aparelho receptor apropriado. Os Estados Unidos – país que tem a maior rede de estações convencionais do mundo – seguiram outro caminho: a rádio digital por assinatura. Há duas companhias que fornecem esse serviço hoje, a Sirius e a XM, cujo público-alvo é o ouvinte que escuta rádio no carro. O negócio ainda é incipiente: somadas, as duas companhias mal atingem 5 milhões de assinantes, em um país onde circulam cerca de 200 milhões de veículos. Bem mais popular é a rádio pela internet. Por meio da rede, muitas estações de AM e FM ultrapassam o alcance limitado de suas antenas. Pelo computador, é possível ouvir estações brasileiras em Tóquio ou Londres.
Entre as mais de 100 estações oferecidas pela Sirius, há uma com comentários políticos ‘de direita’ e outra ‘de esquerda’, para atender o ouvinte de qualquer tendência ideológica. Na velha rádio aberta, a tradição é menos pluralista. Nos Estados Unidos, o dial é dominado por conservadores extremados. O americano que rejeita jornais como o New York Times e até mesmo os noticiários televisivos por serem muito ‘liberais’ sente-se representado por reacionários fervorosos como Rush Limbaugh. O programa dele é um fenômeno: transmitido por cerca de 600 estações no país todo, atinge 20 milhões de ouvintes. A popularidade do apresentador sobreviveu até mesmo à revelação, em 2003, de que ele era viciado em remédios para dor. Limbaugh foi muito atacado por essa contradição: no rádio, ele defendia penas de prisão para usuários de drogas.’
TELEDRAMATURGIA
‘O País do folhetim’, copyright O Estado de S. Paulo, 27/02/05
‘Ao realizar brilhante análise do cinema e da televisão no Brasil, o cineasta Ugo Giorgetti declarou à Revista E, do Sesc/SP que ‘está mais do que na hora do governo entrar no conteúdo das televisões’.
Concordo com Giorgetti quanto à necessidade de intervir, mas discordo que deva ser no conteúdo. Tem que ser na ‘forma’, mesmo porque falar em mexer no conteúdo deixa margem às acusações de autoritarismo. Também porque devemos tomar cuidado com algumas avaliações sobre televisão que parecem óbvias e são problemáticas.
Refiro-me àqueles programas considerados ‘baixaria’, como Ratinho e congêneres. Quem os assiste é o povão de mais baixa renda. Esses programas atendem aos interesses do seu público; ou, analisando de outro ângulo, os chamados programas ‘de qualidade’ nada lhe dizem. Como se estabeleceu que os programas ‘de qualidade’ geralmente são os da Globo, que detém o monopólio dos investimentos publicitários – a programação dela persegue o gosto e a visão do público com poder aquisitivo -, corremos o risco de, com o fim daqueles programas de ‘baixarias’, acrescentar mais uma exclusão aos já excluídos.
Melhor deixar que as emissoras exibam o conteúdo que quiserem, e voltarmos a atenção para a forma em que a televisão brasileira está estruturada.
Primeiro vamos tomar forma no sentido de ‘modelo’. Nosso modelo de televisão mostra, de um lado, uma emissora que consegue 65% do share da audiência no horário nobre e 80% dos investimentos em televisão no País; de outro, as demais emissoras, disputando o que sobra.
Agora tomemos forma no sentido usual no meio televisivo de ‘formato’. O formato de programa que sustenta aquele modelo referido acima é a telenovela. Não vou entrar na questão de como a Globo adquiriu o inegável grau de excelência que apresenta e tornou dominante no país seu padrão estético. Vou me ater ao papel da telenovela, porque aí é que está o nó que atravanca as tentativas de modificação no panorama audiovisual.
Reitero que nada tenho contra a telenovela. Passei vinte anos na TV Globo escrevendo telenovelas, ganhei dinheiro com elas e é provável que ainda volte a escrevê-las porque é divertido e o público gosta. O problema é que, tanto quanto a Globo, a novela adquiriu uma presença na vida nacional muito acima do razoável, muito além do saudável. Parece que o país se rendeu à novela. A intelectualidade não se peja em reverenciá-la (lembro que na década de 70 Dias Gomes era atacado por escrevê-las). A universidade trata a novela como manifestação superior de cultura.
O País se ufana do sucesso das novelas no exterior (sem atentar para o fato de que na maioria dos países é um produto segmentado, exibido à tarde, para donas de casa). Trata-se de um perigoso equívoco. A função do folhetim, como diz Umberto Eco, é consolar. Como tal, a novela não problematiza nada, apenas consola. A técnica folhetinesca consiste em dar ao público precisamente o consolo de que ele precisa.
Nada contra. Não serei eu que, além de noveleiro, presido a Associação dos Roteiristas, que vou falar mal da cultura de entretenimento.
Quem não precisa de um consolo de vez em quando? O problema é o exagero. Um país não pode ter como manifestação cultural mais importante o folhetim. Nosso público leitor é de 4 milhões de pessoas numa população de 180 milhões. Fica todo mundo vendo novela, falando de novela, tomando novela como referência. Nos capítulos finais, os cinemas se esvaziam, os teatros ficam às moscas, os restaurantes não têm ninguém. E achamos natural, sem nos dar conta de que isso vai contaminando a vida do País.
Lula foi eleito como um personagem de folhetim. Além disso, a novela é avara, tanto por não deixar espaço na grade para nenhuma diversidade, como para o mercado de trabalho. A Globo exibe novelas de 17h30 às 22h30. De segunda a sábado. Ah, sim, tem o Jornal Nacional. Mas este, em parte, também é estruturado segundo os princípios do folhetim: sensacionalismo, exacerbação das emoções, cuidado de não exibir cenas chocantes, reportagens consolatórias com pessoas que conseguiram realizar seus sonhos, enfim, em detrimento da perspectiva crítica.
O que sobra nesta grade de programação? Quando um filme brasileiro poderá ser exibido à oito da noite na televisão? – aí sim o público poderia avaliar o cinema brasileiro. No esquema atual, nunca. Nem filme nem outros formatos de produção dramatúrgica.
E o mercado de trabalho? Em que pese o fato da Globo, felizmente, ser a empresa que mais contrata artistas e técnicos, a alardeada maior produção de conteúdo nacional em horário nobre é conversa fiada.
Novela não são 200 programas. É um programa que dura duzentas horas e se estende por oito meses, empregando os mesmos autores, diretores, atores e técnicos. Se um dos horários ocupados com novela exibisse outro tipo de dramaturgia nacional, imaginem a abertura que seria! O modelo de televisão hoje está assentado nas novelas. As concorrentes da Globo, quando heroicamente se dispõem a concorrer, pensam em exibir novelas (porque não têm outra alternativa). Se não as produzem, compram no México, na Venezuela, na Argentina…
O Brasil é hoje um País de folhetim. Não resolvemos nossos problemas, mas sabemos nos consolar. E ficamos eternamente esperando a punição dos vilões que assolam o país e a redenção dos bonzinhos, sem final feliz à vista.
Se esse esquema mudasse, o dinheiro investido nas televisões não desapareceria. A televisão vive de publicidade, que existe porque os agentes econômicos têm que anunciar, é assim o capitalismo. Os bilhões que a televisão movimenta continuarão a ser movimentados num modelo diferente. O que podem migrar são as audiências, hoje cativas de uma programação monocórdia. A diversidade vai beneficiar o grande público e amplos setores dos produtores culturais, aumentando a oferta de programas e o mercado de trabalho dos artistas e técnicos.
Marcílio Moraes é dramaturgo e romancista, presidente da Associação dos Roteiristas (ARTV). É autor de, na televisão, Roque Santeiro, Roda de Fogo e Noivas de Copacabana, entre outros, e do romance O Crime da Gávea’