Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sandra Brasil

‘Foi mal atendido em um restaurante? A companhia aérea cancelou um vôo na última hora ou extraviou a bagagem? O alarme na saída da loja tocou e sua bolsa foi revistada sem nenhum motivo? Até algum tempo atrás, a sensação de impotência, injustiça e constrangimento que tais situações acarretam era um sapo que a vítima engolia e pronto. Cada vez mais, porém, o sapo vem se transformando em uma pilha de notas de reais, fruto de indenizações em processos por danos morais que se acumulam em número crescente nos tribunais brasileiros. ‘Processo também tem moda, e este está na moda’, atesta o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Os números confirmam: em 1993, só o Superior Tribunal de Justiça registrava 28 processos por danos morais; em 2000, foram 1.331, a uma média de 100 por mês; em 2004, totalizaram 8.201 (683 por mês); neste ano, a média mensal está em 932, e subindo.

Ainda é uma quantidade microscópica se comparada aos milhões de processos anuais nos Estados Unidos, onde ações do gênero alimentam uma espécie de indústria e as indenizações chegam a milhões de dólares. Lá, ficaram famosos os casos de Stella Liebeck, que em 1992 sofreu queimaduras de terceiro grau ao tentar tirar a tampa de plástico do copo de café enquanto dirigia e ganhou 2,9 milhões de dólares do McDonald’s (posteriormente, porém, a indenização foi revista e reduzida para um total de 640 000 dólares, que também acabou modificado – Stella e o McDonald’s chegaram a um acordo de valor não revelado), e o de Deborah Martorano, que em 1984 recebeu um spray de perfume na Bloomingdale’s, ficou dez dias no hospital com asma e alergia, processou a loja e levou 75.000 dólares (as promotoras passaram a oferecer primeiro o perfume e, posteriormente, adotaram a amostra em palitos de papelão). No Brasil, o conceito de ‘proteção à dignidade e à honra’ só foi contemplado explicitamente no texto da Constituição de 1988. ‘A partir daí, a doutrina foi se sofisticando para abrigar a idéia da dor moral’, explica o ministro Mendes. O advogado paulista Ernesto Lippmann, autor de livros sobre o assunto, exemplifica: ‘Se uma pessoa morre acidentalmente numa cirurgia, a vida dela não tem preço, mas nem por isso o médico deve ficar impune’. Do alto de sua experiência na área, Lippmann garante: ‘É melhor sofrer com dinheiro do que sem ele’.

O casal mineiro Sálua e Wagner Amorim move um desses processos delicados por dano moral. Motivo: a gravidez indesejada que resultou no filho Enzo, hoje com 2 anos. Em 2002, Sálua e o marido eram estudantes universitários que não queriam ter filhos; três meses depois de pagar 800 reais pela aplicação de um contraceptivo subcutâneo, ela engravidou, por falha da médica, segundo afirma, na colocação do medicamento. ‘Pedimos uma indenização para o meu filho de quatro salários mínimos até ele fazer 18 anos, para custear sua educação. Há duas semanas, a Justiça fixou dois salários até ele completar 5 anos. Estamos recorrendo’, conta Amorim. Esse tipo de processo é demorado: leva em média de dois a seis anos para ser concluído. O resultado pode ser mais rápido se o caso for levado ao juizado especial de pequenas causas – que, no entanto, não julga causas superiores a quarenta salários mínimos, ou 12.000 reais.

O advogado gaúcho João Batista Vieira, 41 anos, já moveu três ações por danos morais em causa própria. Perdeu uma, contra um supermercado que limitara a venda de pó de café em promoção a cinco pacotes por cliente, e ganhou as outras duas. Contra um banco que encaminhou seu nome, indevidamente, ao serviço de proteção ao crédito, ele ganhou 50.000 reais. Contra a dona de um cachorro que andava solto e mordeu sua filha numa praia gaúcha, a indenização foi fixada em 6.000 reais. ‘A Laura tinha 3 anos e tivemos de levá-la para o hospital. Foi um trauma’, conta. Vieira afirma que moveu essa ação em caráter corretivo – ‘Tanto que entramos em acordo e aceitei receber a metade da indenização’. Empresas grandes sujeitas a um processo por dano moral muitas vezes preferem pagar a ser levadas ao tribunal. ‘A tendência é que busquem acordo nos casos em que sabem que serão derrotadas no final’, diz o advogado Paulo Guilherme Lopes. Nem sempre, porém, isso acontece, e as ações costumam ser longas. A artesã Ana Cláudia Travassos, 32, processa a rede de supermercados Wal-Mart desde 1997, quando o alarme foi acionado ao sair da loja em Bauru. ‘Os seguranças me abordaram no estacionamento. Juntou gente em volta. Foi um vexame’, conta. No ano passado, a indenização foi fixada em 13.000 reais. A empresa está recorrendo. A gaúcha Erica Helena Cocolichio, 31, processou em 1999 a Kraft, dona da Lacta. Motivo: achou larvas vivas ao comer um chocolate recheado com amendoim. Em outubro passado, ganhou o direito a uma indenização de 3.000 reais e se sentiu frustrada. ‘Ouvi muita piada por causa dessa ação. Sofri muita humilhação’, reclama. Já Roseli Gomes, 48, de Tubarão, em Santa Catarina, processou a Coca-Cola em 1993 por encontrar uma barata na garrafa da bebida semiconsumida. ‘Nunca vou esquecer aquele dia. Passei muito mal. E ainda fiquei conhecida na cidade como ‘a mulher da barata’, relata. Há um ano, a empresa foi condenada a lhe pagar 30.000 reais. O processo está em fase de execução, mas Roseli, que ganha 400 reais por mês trabalhando em uma lavanderia, já tem planos para a indenização: quer reformar a casa, que foi invadida por cupins.’



CASO JEAN MENEZES
IstoÉ

‘A farsa da Scotland Yard’, copyright IstoÉ, 23/08/05

‘Naquela fatídica manhã de 22 de julho, o eletricista brasileiro Jean Charles de Menezes tinha um encontro marcado com seu amigo e parceiro, o pedreiro Gésio de Ávila, 37 anos, quando a morte o encontrou. Por volta das 10h30, ele foi executado com oito tiros – sete na cabeça – pela Scotland Yard (a polícia metropolitana de Londres) num vagão do metrô da estação Stockwell. No dia anterior, atentados frustrados tinham deixado os londrinos em pânico, com a memória ainda reverberando os ataques terroristas de 7 de julho, que mataram 56 pessoas. ‘Nós íamos trocar a central de alarme de incêndio num flat’, contou Gésio de Ávila a ISTOÉ. Jean foi confundido com Hussein Osman, um dos autores dos ataques fracassados, que morava no mesmo prédio que o brasileiro, em Tulse Hill, zona sul de Londres. Mas o que parecia uma fatalidade se revelou uma sucessão de equívocos catastróficos. A lendária polícia britânica não apenas matou um inocente como mentiu deliberadamente ao dar sua versão dos fatos. Imagens veiculadas pela emissora de tevê britânica ITN desmontaram a versão policial de que Jean vestia um casaco pesado de inverno e levava uma mochila – o que poderia justificar a suspeita de ele ser um homem-bomba -, e de que fugiu dos policiais e pulou as catracas do metrô. Ao contrário, as imagens revelam o eletricista vestindo uma jaqueta jeans leve, passando tranqüilamente pela roleta com um tíquete pré-pago e até pegando um jornal gratuito distribuído no metrô. Jean só correu quando viu o trem estacionado na plataforma. Ele também não recebeu ordem de prisão e estava imobilizado quando foi alvejado. A ITN teve acesso a documentos secretos da Independent Police Complaints Comission (IPCC, a comissão independente que investiga as queixas contra a polícia). Como se não bastasse, outros veículos da mídia britânica revelaram que o comissário Ian Blair, chefe da Scotland Yard, tentou obstruir as investigações da IPCC sobre o assassinato de Jean Charles de Menezes.

No banheiro – Alguns detalhes são fundamentais para se entender como a polícia chegou a confundir o brasileiro com o fracassado terrorista Hussein Osman. Segundo a reportagem da ITN, o policial que monitorava o prédio em que Osman e Jean moravam foi ao banheiro no exato momento em que o brasileiro saiu do edifício, às 9h30 da manhã do dia 22 de julho. Assim, ele informou à central que não poderia ter certeza de que o homem que saíra era o suspeito Osman. O policial teria então sugerido uma checagem. Pelo visto, não foi levado a sério.

De acordo com o jornal Daily Mirror, a oficial de polícia responsável pela operação, Cressida Dick, determinou que o suspeito fosse capturado vivo em vez de ter dado a ordem para matá-lo, como se veiculara anteriormente. Os policiais resolveram seguir o eletricista, acionando em seguida o CO19, um comando especializado e autorizado a atirar para matar suspeitos de terrorismo. ‘Jean foi visto correndo na plataforma e entrando num vagão antes de ocupar um assento’, diz o documentário da ITN. Um policial à paisana que se sentou perto do eletricista disse à ITN que o brasileiro se levantou quando viu homens armados chegarem. ‘Ele avançou em minha direção e dos agentes. Empurrei-o de volta ao assento.’ Em seguida, o eletricista foi imobilizado e levou os tiros à queima-roupa. ‘Sabemos claramente agora que Jean Charles não estava fazendo absolutamente nada para levantar qualquer suspeita. Ele só teve a infelicidade de morar num prédio sob vigilância e de ser levemente moreno’, disse a advogada Harriet Wistrich.

Pressões – A ITN revelou ainda que, no mesmo dia em que ocorreu o incidente, o comissário Ian Blair escreveu ao Ministério do Interior sugerindo que a ação da IPCC sobre o caso não deveria ser prioritária em relação às investigações da polícia sobre os suspeitos dos atentados do dia 21 de julho. Embora o Ministério tenha rejeitado a ‘sugestão’ de Blair, somente cinco dias depois da morte de Jean a polícia enviou os dados do caso à IPCC. Segundo as advogadas de defesa do brasileiro, Gareth Peirce e Harriet Wistrich, esse fato, por si só, comprometeu a credibilidade das investigações. ‘Nada do que a polícia havia dito desde o início era verdade. Queremos enfatizar agora que não podemos mais confiar no processo investigativo como está sendo realizado’, disseram as advogadas em nota, na qual pedem uma investigação pública sobre o caso. ‘A versão da polícia não apenas era incorreta, mas o público foi deliberadamente enganado com mentiras e meias-verdades’, disse Assad Rehman, porta-voz da campanha Justiça para Jean Charles de Menezes.

O governo brasileiro enviará a Londres, na próxima semana, uma missão do Ministério Público Federal e do Ministério da Justiça para acompanhar as investigações da IPCC. ‘As mais recentes notícias, acompanhadas de imagens de forte impacto, relativas às circunstâncias trágicas que resultaram na morte do cidadão brasileiro Jean Charles de Menezes, agravaram o sentimento de indignação do governo brasileiro’, diz uma nota do Itamaraty.’



Folha de S. Paulo

‘Agravam-se indícios de erros policiais’, copyright Folha de S. Paulo, 22/08/05

‘A publicação dominical britânica ‘The Observer’ reforçou ontem os indícios de que o brasileiro Jean Charles de Menezes, morto há um mês pela polícia britânica, que o tomou por um terrorista suicida, não apresentou nenhum comportamento que pudesse ser considerado suspeito.

Citando fontes policiais, a reportagem revelou que os três policiais encarregados da vigilância de Jean Charles não consideravam que ele estivesse armado ou a ponto de explodir uma bomba. Uma das fontes, relata o jornal, afirmou que nada do que Jean fez deu a impressão, para a equipe que o vigiava, de que o brasileiro transportava explosivos.

Jean Charles, que era eletricista e tinha 27 anos, morreu no último dia 22 de julho com oito tiros, sete deles na cabeça, disparados num vagão de metrô por uma unidade especial da polícia que o confundiu com um terrorista suicida.

Segundo o ‘Observer’, os membros da equipe de vigilância queriam deter o brasileiro, mas tiveram ordem de confiar a operação à unidade especial, que estava autorizada a ‘atirar para matar’, recebida depois dos atentados de 7 de julho, que mataram 52.

A fonte disse ao ‘Observer’ que os três homens da equipe de vigilância nunca teriam entrado no vagão com Jean se achassem que ele tinha uma bomba.

Depois da morte, a polícia britânica afirmou que Jean saíra de uma casa no sul de Londres que estava sob vigilância da polícia por conta das investigações do fracassado atentado de 21 de julho. ‘Posteriormente, ele foi seguido por policiais até a estação de metrô. Sua roupa e seu comportamento reforçaram as suspeitas’, indicou a Scotland Yard.

Mas documentos vazados na semana passada revelaram que a versão inicial da polícia não se sustentava. Imagens da câmera de vigilância do metrô mostraram que Jean vestia roupas normais e entrou calmamente na estação. Foi imobilizado por um policial antes de receber os tiros fatais.

A família de Jean Charles agora pede a renúncia do chefe da polícia, Ian Blair, e o julgamento dos policiais envolvidos. O governo vem dando apoio a Blair.’



CAPOTE NO CINEMA
David Carr

‘Dois filmes tentam explicar o fenômeno Truman Capote’, copyright O Estado de S. Paulo / The New York Times, 21/08/05

‘Truman Capote ficaria muito feliz por saber que não apenas um, mas dois filmes vão homenagear sua vida neste ano e no próximo. Capote e Have You Heard? giram em torno de seu assunto favorito – Truman Capote. E a convergência dos filmes, com a perspectiva de conflito, acrescenta uma promessa de delícia que ele usaria babador para saborear.

A fama e todos os seus dissabores foram obsessões persistentes de Capote, o que poderia explicar por que ele parecia disposto a fazer quase qualquer coisa para obtê-los. Enquanto fazia a reportagem de A Sangue Frio, a obra-prima que serve de moldura para ambos os filmes, Capote contou algumas mentiras para dizer uma verdade. Desse modo, ele se tornou uma aula prática de como a verdade jornalística é contada e obtida. É fácil esquecer, no atual contexto de jornalistas dispostos a ir para a cadeia a fim de proteger fontes, que grande parte da profissão envolve imperativos menos nobres.

Nos cinco anos em que trabalhou no projeto – que detalhou o assassinato, por dois jovens sem rumo, de quatro membros de uma família rural em Holcomb, Kansas, em 1959 – , Capote desenvolveu um laço emocional com ambos os assassinos, especialmente Perry Smith, outro homem miúdo que sonhava com o reconhecimento. Mas essa relação não o impediu de desenvolver um interesse enraizado pela morte dos dois, sem a qual sua obra mais importante ficaria inacabada.

Capote gira em torno da interpretação de Philip Seymour Hoffman para a persona do escritor: ele era, como demonstra Hoffman, independente, mas veio a encarnar questões mais amplas. Romancista que virou jornalista, Capote sabia que era preciso quebrar alguns ovos para fazer sua omelete. A Sangue Frio, publicado em 1965, foi apurado e narrado com sua própria desumanidade: o autor seduziu dois assassinos, convencendo-os a contar sua história, e então os traiu – um motivo recorrente que a escritora Joan Didion depois sugeriu ser a transação fundamental do jornalismo.

‘Capote é uma daquelas pessoas que representam algo maior que elas mesmas’, disse Bennett Miller, o diretor de Capote, que será distribuído pela Sony Pictures Classics. ‘Creio que sua ambição, seu tipo de sucesso e sua decadência são muito contemporâneos.’

Ao que parece, isso foi contemporâneo e ressonante o suficiente para atrair o interesse de dois cineastas. Capote baseia-se na biografia de mesmo nome escrita por Gerald Clarke, enquanto Have You Heard? se inspira nas entrevistas de George Plimpton no livro Truman Capote: In Which Various Friends, Enemies, Acquaintances and Detractors Recall His Turbulent Career (Truman Capote: No Qual Vários Amigos, Inimigos, Conhecidos e Detratores Relembram Sua Carreira Turbulenta). Mas as diferenças básicas terminam aqui. Cada filme é moldado pela reportagem e pela escrita de A Sangue Frio e concentra-se na motivação e na metodologia de Capote para contar aquela história sombria.

Capote, quase finalizado, será lançado em 30 de setembro (aniversário do escritor), enquanto Have You Heard?, com Sandra Bullock, Gwyneth Paltrow e Sigourney Weaver, entre outros, ainda está sendo editado e a estréia foi adiada para 2006 pela distribuidora, Warner Independent Pictures. Embora possa ou não haver um mercado para os dois filmes – vide Valmont e Ligações Perigosas, que retratam uma figura similar, ainda que menos fascinante -, há muito a remexer.

Os filmes começam com a improvável chegada de Capote, um romancista homossexual de Nova York, ao Kansas rural, para trabalhar em sua história e observar enquanto prepara sua teia de sedução. E ambos retratam um contador de histórias talentoso, mas venenoso, não um fabulista como Stephen Glass ou um fabulista/plagiador como Jayson Blair, e sim um escritor que apareceu com um romance de não-ficção que estabeleceu o padrão – para o bem ou para o mal – para tudo o que veio depois. Seria fácil argumentar que Os Exércitos da Noite, de Norman Mailer, ou a série de livros de história contemporânea de Bob Woodward não existiriam sem A Sangue Frio.

Quase todo mundo que escreve hoje deve algo a Capote. Romancista que desenvolveu interesse efêmero pelos eventos reais, ele transformou a monotonia do jornalismo em algo muito mais literário e substancial.

‘Nunca houve ninguém na vida americana remotamente parecido com Truman Capote’, disse Mailer, que uma vez sugeriu que Capote era o melhor fraseador vivo. ‘Não admira, portanto, que as pessoas ainda estejam fascinadas por ele.’

Desde o início, Capote mostrou uma total carência, um desejo de ser aprovado por qualquer um e quase todos. A maioria dos jornalistas chega à profissão com uma inclinação similar – por que correr o risco de cometer erros em público, se não pela recompensa do reconhecimento? Mas a profissão exige cooperação: o sujeito da história tem de ser envolvido no empreendimento, mesmo que raramente seja de seu expresso interesse. Capote demonstrou vivamente as artificiais manobras requeridas – o que é bom para o autor é vendido como bom para o sujeito.

Ao fazer isso, ele inaugurou um gênero, o ‘jornalismo literário’, construído sobre a intimidade. No melhor do gênero, o autor e, por sua vez, os leitores descobrem o que um sujeito pensa, sente e teme. Mas a intimidade freqüentemente requer um artifício específico: o jornalista senta-se diante do sujeito, todo ouvidos, eternamente simpático, decidido a ajudá-lo a contar ‘sua’ história. Mas o que é contado nunca é ‘sua’ história, e sim aquela que o autor escolhe. E assim que a caneta encosta no papel, muitas vezes tudo sai do controle.

Jeffrey R. MacDonald, um ex-médico e capitão dos Boinas-Verdes acusado de assassinar a família, encontrou um ouvido aparentemente simpático em Joe McGinniss, romancista de não-ficção que escrevera The Selling of the President. Ele permitiu que McGinniss assistisse a suas próprias reuniões com os advogados de defesa. Mas algo estranho aconteceu com Fatal Vision, o relato do escritor sobre o caso, no caminho para a impressão: ele passou a acreditar que MacDonald fizera exatamente aquilo de que era acusado.

Janet Malcolm escreveu um artigo na revista The New Yorker sobre a sedução jornalística que deu errado, sugerindo que ‘o jornalista precisa fazer seu trabalho numa espécie de anarquia moral deliberadamente induzida’. A própria Malcolm foi processada mais tarde por uma fonte desapontada e enfurecida.

Há outras dezenas de exemplos, mas as fontes primárias de Capote não estavam em posição de contestar muita coisa. No filme Capote, Perry Smith ouve falar que Capote fez uma festejada leitura em Nova York de uma história que chamou de A Sangue Frio. Capote diz a Smith que isto é um equívoco, que seu livro não vai se chamar assim.

‘Para contar a história que ele contou, é preciso ser uma pessoa astuciosa, que pensa rápido, e não está acima da manipulação das esperanças e sonhos da outra pessoa’, disse Douglas McGrath, o diretor de Have You Heard?

O público tem uma conhecida desconfiança da imprensa. São as pessoas que toleram o jornalismo, em todas as suas rudes e manhosas manifestações, que o têm na mais baixa estima. Elas aprenderam, muitas vezes dolorosamente, que uma fraude está embutida não tanto na narração, mas na apuração.

Embora a produção jornalística de Capote tenha sido reduzida, houve outros problemas, incluindo uma acusação de Marlon Brando de que ele usara uma longa entrevista confidencial no Japão para escrever um perfil explosivo. Lillian Ross, contemporânea de Capote na New Yorker, disse em mensagem eletrônica que William Shawn, então editor da revista, via o trabalho de Capote com suspeita. Shawn, escreveu ela, ‘tinha suas dúvidas e arrependimentos por ter publicado o trabalho de Capote, especialmente o artigo sobre Brando, e também A Sangue Frio’. ‘Sua influência não foi literária’, acrescentou Ross. ‘Ele demonstrou pragmaticamente a muitos jornalistas como ganhar dinheiro.’

O sucesso ou os métodos de Capote – faça sua escolha – ofenderam muita gente, incluindo críticos e alguns de seus concorrentes. Tom Wolfe, que elevou a abordagem da narrativa ficcional a outro patamar com A Fogueira das Vaidades, não está entre eles. ‘Sempre achei que ele era subestimado pelo mundo literário’, disse Wolfe. ‘Por ser tão universalmente popular, ele não agradou aos escritores que não suportam pessoas que ganham a vida escrevendo.’

O sucesso de Capote teve um preço significativo. Sua planejada seqüência para A Sangue Frio, Answered Prayers, virou um tormento, um romance que ele nunca conseguiu concluir, em parte porque o livro previa que obter o que se deseja pode ser danoso, segundo a biografia de Clarke.

Com relutância, depois de muita conversa, Capote testemunhou as execuções de seus dois protagonistas de A Sangue Frio – mas, ao fazê-lo, construiu a própria forca. Aparentemente, ele foi incapaz de reconciliar as necessidades de sua história com o destino dos homens envolvidos. ‘Antes de A Sangue Frio, Capote era uma pessoa normal, ainda que ambiciosa’, afirmou Clarke numa entrevista. ‘Ele disse na época que o livro o consumira até os ossos. Ele mudou.’ Tradução de Alexandre Moschella’