Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Ser de esquerda é ser uma mídia livre, fora daqui

Gosto especialmente de um miniconto do escritor checo Franz Kafka, A partida, no qual um criado pergunta ao cavaleiro para aonde este iria com seu cavalo, obtendo simplesmente a seguinte resposta: ‘Fora daqui’. Fora daqui, sem cessar, sempre fora daqui, como fora de todo dentro pessoal, institucional, simbólico, cultural, econômico, e sem levar provisões, é o não lugar a que se propõe ir o cavaleiro.

Em diálogo com esse visionário conto de Franz Kafka, penso igualmente que a partida constitui um exercício ininterrupto de produzir o ‘fora daqui’. Partir é literalmente sair de todo e qualquer dentro: o dentro eu, o dentro homem, mulher, homossexual, branco, negro, amarelo, familiar, profissional, nacional, linguístico, financeiro, de classe, donde podemos concluir, por oposição, que ficar é instalar-se ou inscrever-se como dentro.

Ficar ou tornar-se sedentário é uma forma de contribuir ou de dar sentido ao absurdo dentro que temos produzido: o dentro civilização capitalista como máquina que faz com que um dentro se constitua apesar de outro; o dentro dinheiro que se impõe sobre o dentro roubado, chamado de pobre; o dentro patriarcal e heterossexual, que humilha e assassina o dentro mulher, assim como o dentro sexualidades não heterossexuais; o dentro civilização cristã ocidental, com seu dentro de teatro de democracia a impor-se sobre o dentro muçulmano, inferiorizando-o e empurrando-o, como (não) alternativa, para o dentro despotismo, posto que ao fazê-lo vende a autopropaganda de que o dentro ocidental é dentro mais legítimo que o dentro muçulmano.

Um dentro faz guerra com outro dentro para se justificar e se afirmar como um dentro superior e assim se referencia como o dentro a ser desejado pelos outros dentro. E eis o surrealismo mundo de ‘dentros’ em guerras que produzimos.

Uma legião de dentros

Chamemos de modernidade ou pós-modernidade uma era histórica que se impõe como o único dentro viável e possível e que, por isso mesmo, inventa tecnologias que tenham como principal objetivo a produção sem fim de dentros. Chamemos esses recursos ou artefatos, em diálogo com Michel Foucault, de Vigiar e Punir, de tecnologias de produção de subjetividades e de interioridades. Chamemos, por fim, de mídias as tecnologias de fabricação de subjetividades que o dentro imperialista da modernidade controla e oligopoliza com o objetivo de garantir que as subjetividades modernas/pós-modernas estejam, mesmo que não saibam, a serviço direto e indireto do dentro imperialista, que é um dentro branco, homem, adulto, plutocrata, narcisista, racista, belicista, sexista, fascista, mesmo que não tenha um rosto assim composto; mesmo que seja um rosto de mulher, de um homossexual, pois faz parte das tecnologias do dentro ou de subjetividade jogar com os rostos e as identidades, fazendo-as interagir dentro de um mesmo sistema de dentro, que é o capitalista, que é o do uso das formas e dos perfis humanos a favor da produção/concentração da mais-valia branca, plutocrata, belicista, fascista.

Consideremos, como hipótese, que as máquinas midiáticas de fabricação de subjetividades modernas/pós-modernas sejam capazes de produzir identidades humanas que são tanto mais servis ao rosto do imperialismo ocidental quanto mais são programadas e reprogramadas para atuarem como o dentro da resistência, da luta, da crítica; como, enfim, um produzido dentro de esquerda que se presta, em última instância, a ser a esquerda que a direita necessita para ser mais direita, posto que, uma esquerda que afirme qualquer dentro, é antes de tudo uma esquerda que afirma o centro da máquina de produzir dentro, a máquina capitalista com sua máquina midiática de programar, editar, mapear, classificar e distribuir dentros.

É por isso, consideremos, que a esquerda, para ser esquerda, deve ter um único e exclusivo objetivo: sair do dento da modernidade capitalista e, portanto, constituir-se como um fora das subjetividades produzidas pelas tecnologias de subjetividades que a modernidade não cessa de inventar, por exemplo, com a máquina midiática televisiva, radiofônica, internética, com seus próprios dispositivos de dentro, como o dentro rádio para o povão, rádio para as classes médias; ou programa de televisão para donas de casa, para maridos entediados, para crianças solitárias. Tudo meticulosamente gestado para fabricar uma legião de dentros, o dentro marido entediado, o dentro dona de casa, o dentro criança solitária e todos isoladamente unidos e programados para dar sentido ao dentro capitalismo.

A mídia meio da liberdade

Nesse cenário do dentro da modernidade capitalista, com suas múltiplas armadilhas de dentro sobre e sob dentro, ser de esquerda é desejar e movimentar-se fora daqui, isto é, fora das subjetividades produzidas pelas tecnologias de dentro dos poderes atuais, inclusive e antes de tudo a subjetividade de esquerda. Ser de esquerda é, assim, constituir-se como um fora das subjetividades de esquerda; é se inventar como um fora esquerda, uma esquerda do fora, incessantemente.

Isso não quer dizer que ser de esquerda seja uma forma de satanizar as tecnologias de subjetividade produzidas pela máquina fascista do capitalismo. Pelo contrário, ser de esquerda é antes de tudo a produção de um fora que seja tanto mais fora ao capitalismo quanto mais lute para democratizar as tecnologias de subjetividades, a serviço do sistema de produção econômica, cultural e epistemológico do capitalismo. Ser de esquerda é procurar por do avesso essas tecnologias, fazendo-as ser um fora da subjetividade capitalista. Ser de esquerda é produzir tecnologias de subjetividade como ‘fora daqui’, fora das subjetividades capitalistas, inclusive as programadas subjetividades de resistência ao capitalismo, quando localizadas dentro daqui ao invés de fora daqui.

Ser de esquerda é produzir um fora daqui capaz de escolher o interlocutor que interessa nesse e naquele contexto histórico, o interlocutor a ser desprogramado e reprogramado para produzir o fora do capitalismo. Hoje esse interlocutor não é o governante x ou y, ou pelo menos não é ele antes de tudo, que está no geral rendido, como dentro, às tecnologias de dentro do capitalismo. Ser de esquerda é ser um fora daqui em relação às próprias tecnologias de produção de subjetividade, de tal modo a propor outras subjetividades, não submissas, não a serviço da subjetividade do lucro, do capitalismo; é brigar para que as mídias, centros de fabricação de subjetividades assujeitadas, sejam igualmente livres, sem donos, para abrigar liberdades subjetivas como fora daqui, fora da hipocrisia subjetiva do capitalismo, muito bem exemplificada na propaganda da Nextel, que tem o jogador Neymar, do Santos, como protagonista, a dizer, caminhando num suposto fora paisagístico de uma praia deserta: ‘Não é fama, não é dinheiro, não é carreira, não é poder’, quando todos sabemos subjetivamente, como dentro sistêmico, que é o contrário que ele quer dizer: é fama, é dinheiro, é carreira, é poder; o poder da fama, do dinheiro, da carreira e do, para ser redundante, poder do dentro capitalista, esse dentro engolidor de dentros, fabricador de dentros.

Ser de esquerda é inventar o fora não paisagístico, porque a própria paisagem do fora já virou um dentro capitalista; é ser revolucionário, mudar as mídias, mediando-as para fora do dentro hipócrita que se afirma negando seu próprio buraco subjetivo despótico. É ser livre, uma mídia livre, de foras não despóticos.

Ser de esquerda é ser mídia; é produzir uma mídia de esquerda; a mídia meio da liberdade, porque fora daqui, porque fora de todo dentro narcísico.

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Poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo