‘Ele já foi chamado de anticristo por evangélicos, aprovado como boa literatura pelo Vaticano e acusado de ser produto de um plágio. Seus cinco livros foram traduzidos em 60 idiomas de 200 países e renderam mais de US$ 1 bilhão a sua autora. Mas por esta Harry Potter não esperava.
De acordo com artigo vindo da academia francesa -de onde mais?-, o bruxinho seria lacaio do imperialismo, um tutor capitalista, e a função da série literária infanto-juvenil seria formar futuros consumidores. O texto motivou réplica igualmente inflamada, segundo a qual Potter é um ícone da antiglobalização, uma Naomi Klein de condão na mão.
Aí, os britânicos entraram na história, e a briga toda ganhou um toque extra de rixa entre países. E até um intelectual italiano meteu a colher. Foi quando o ‘New York Times’ resolveu jogar letras no ventilador, republicando o texto original nos Estados Unidos.
Começando pelo começo. No dia 4 de junho, o jornal francês ‘Le Monde’ trazia artigo intitulado ‘Harry no país do mercado triunfante’, assinado por Ilias Yocaris, professor de teoria literária e literatura francesa do Instituto Universitário de Treinamento de Professores de Nice.
No texto, o acadêmico diz, entre outras coisas, que, a despeito de toda a magia e fantasia que envolvem as histórias escritas pela britânica J.K. Rowling, o universo de Harry Potter é um universo capitalista. E justifica de maneira engenhosa.
Hogwarts é uma escola privada de feitiçaria, escreve; seus alunos são consumidores vorazes, loucos pelos produtos mais recentes das melhores marcas, fabricadas por multinacionais; seu diretor tem de brigar constantemente com o Estado, representado por funcionários obtusos e incompetentes, como o ministro da Magia.
Há uma invasão, diz ele, de estereótipos neoliberais num conto de fadas. ‘Como no totalitarismo orwelliano, este capitalismo tenta modelar não apenas o mundo real, como também a imaginação dos consumidores-cidadãos.’
Foi o que bastou para que o país que, em vez de mesa-redonda de futebol tem painel de discussão intelectual-esportiva (como comprovou este repórter in loco na Copa de 1998), abraçasse o debate. Dias depois, entre centenas de cartas, o ‘Monde’ publicou uma réplica de Isabelle Smadja.
No texto, a autora, que ensina filosofia no Lycée Loritz de Nancy e escreveu o livro ‘Harry Potter – As Razões do Sucesso’ (ed. Contraponto), afirma que o mago de Hogwarts é, na verdade, ‘o primeiro herói ficcional da geração Seattle, antiglobalização, antimercado livre, pró-Terceiro Mundo’.
Dela discordou um colega seu, o teórico libertário italiano Alberto Mingardi, que disse ficar com a opinião de sua irmã de 13 anos: ‘Depois de ler as 800 páginas de ‘HP e a Ordem de Fênix’ em dois dias, ela me falou o que tinha aprendido com o livro: ‘Que você não deve confiar no governo’.
Entra em cena o escritor Ben Macintyre- autor da biografia ‘O Napoleão do Crime’ (Cia. das Letras), sobre Adam Worth, o ladrão que inspirou o personagem Moriarty, arqui-rival de Sherlock Holmes-, que descasca a lenha no ‘Times’ de Londres.
Publicado no sábado, ‘Filho de Seattle, inimigo da globalização?’ atribui a polêmica à falta de humor dos franceses e sua incapacidade de entender o sucesso da série literária. Diz que o pobre Potter conseguiu escapar de dementadores, goblins e até do Lord Voldemort, mas encontrou o pior adversário: o intelectual francês.
No dia seguinte, a página de opinião do ‘New York Times’ publicou o artigo original de Ilias Yocaris, em versão reduzida e com o título ‘Harry Potter, mago do mercado’, e o ciclo começou de novo, desta vez nos EUA.
Desde domingo, os milhares de sites e blogs dedicados à série entraram em estado Defcon 4 de atenção: ‘traidor’, ‘estúpido’, ‘insensível’ são os adjetivos mais publicáveis sobre o francês.
Talvez o mais sincero tenha sido Clark Venable, na lista de discussão do próprio ‘New York Times’: ‘Meu filho de seis anos e eu lemos juntos todas as noites um livro do Harry Potter. Achei que este artigo [o original do francês] faz uma análise interessante e certeira’, começa. ‘OK, não entendi as duas primeiras frases do texto , mas o resto parece bacana.’
Agora, só falta a autora se manifestar. Com fortuna de US$ 1 bilhão, é pouco provável que J.K. Rowling se dê ao trabalho…’
Ilias Yocaris
‘Harry no país do mercado triunfante’, copyright Folha de S. Paulo, 21/07/04
‘Com a série Harry Potter, a escritora J. K. Rowling conseguiu a façanha de trazer o encanto de volta ao mundo: o leitor vê se desenrolando diante de seus olhos um universo mágico, onde existem carros que voam, sortilégios que fazem a pessoa vomitar lesmas, árvores que dão socos, livros que mordem a mão de seus proprietários, elfos domésticos, retratos que brigam entre eles e dragões com caudas pontiagudas.
Assim, a priori não existe nada de comum entre o mundo de Harry e o mundo comum de nossa percepção. Nada, claro, se excetuarmos um detalhe: como o nosso, o mundo dele é capitalista.
Hogwarts é uma escola de feitiçaria privada, e seu diretor não pára de brigar com o Estado, representado pelo inepto ministro Cornelius Fudge, pelo ridículo funcionário Percy Weasly e pela odiosa inspetora Dolores Ombrage. Os aprendizes de feiticeiros são consumidores que sonham adquirir objetos mágicos de alta tecnologia, como varas de condão ‘de alta performance’ ou vassouras voadoras ‘de marca’.
Hogwarts não é somente uma escola, portanto, mas um mercado, e visivelmente suculento: submetidos a um clamor publicitário incessante, os alunos só estão realmente felizes quando podem gastar seu dinheiro. Existe toda espécie de tráfico entre os estudantes, e a autora insiste pesadamente nas possibilidades de elevação social para os jovens que vierem a enriquecer graças ao comércio de produtos mágicos.
E o quadro se completa com queixas rituais sobre a rigidez e incompetência dos funcionários públicos. O conservadorismo destes contrasta fortemente com a inventividade, audácia e espírito dos empresários, cujos méritos J. K. Rowling não pára de entoar.
Por exemplo, Bill Weasly, que trabalha no banco Gringotts, é sempre retratado como o exato oposto de seu irmão, o funcionário público Percy: o primeiro é jovem, dinâmico, criativo e usa roupas que ‘não destoariam em um show de rock’. O segundo é estúpido, obtuso e executa com inépcia seu trabalho de regulador estatal; a grande obra de sua carreira consiste em um relatório sobre ‘normas padrão para a espessura dos fundos de caldeirão’.
Essa invasão de estereótipos neoliberais no mundo dos contos de fada tem efeitos consideráveis sobre a descrição dos personagens e do mundo no qual evoluem. O universo de Harry Potter oferece uma verdadeira caricatura do modelo social anglo-saxão: sob o verniz da regulamentação e dos rituais coletivos impostos pela tradição, a micro-sociedade de Hogwarts se apresenta como uma selva impiedosa, onde reina o individualismo, a concorrência exacerbada e o culto à violência.
O condicionamento psicológico dos aprendizes de feiticeiros se baseia claramente numa cultura de confronto: disputas entre os alunos para obter, por exemplo, o prestigioso título de prefeito; a disputa entre as quatro ‘casas’ de Hogwarts para conquistar pontos no concurso anual; a disputa periódica entre escolas de feiticeiros pela Copa de Ferro; e, por fim, a disputa final e sangrenta entre as forças do bem e as forças do mal.
Esse estado de guerra permanente resulta, em especial, na redefinição do papel das estruturas institucionais: diante do número de conflitos cada vez mais violentos que irrompem, as instituições não têm possibilidade, ou vocação, para proteger os indivíduos contra as ameaças que os cercam por todos os lados. Assim, o Ministério da Magia fracassa miseravelmente em seu combate ao mal, e as restrições regulamentares da vida escolar, paradoxalmente, impedem que Harry e seus amigos se defendam dos ataques que sofrem de forma incessante.
Sem assistência, os aprendizes precisam lutar sozinhos para sobreviver em um ambiente hostil, e os mais fracos (como Cedric Diggory, amigo de Harry) serão inexoravelmente eliminados.
Todos esses fatores exercem influência determinante sobre o conteúdo do ensino dispensado aos jovens de Hogwarts. O mínimo que se pode dizer é que o ensino é unidimensional. Os programas educativos de Hogwarts são orientados de maneira muito precisa no plano didático: só contam as disciplinas capazes de transmitir aos alunos um saber prático passível de exploração imediata.
Isso não surpreende, já que a prestigiosa escola visa acima de tudo formar indivíduos competitivos no mercado de trabalho e capazes de lutar contra as forças do mal. Pode-se constatar que as matérias artísticas terminaram eliminadas do currículo descrito pela autora, e o ensino das humanas é fortemente desvalorizado: os estudantes passam apenas por um curso infeliz de história literária, que os faz bocejar de tédio.
Harry parece, em diversos momentos, servir como resumo em forma humana, sem dúvida involuntário, do projeto educativo e social do capitalismo neoliberal.
Como o totalitarismo descrito por Orwell, esse capitalismo tenta moldar à sua imagem não só o mundo real, mas o imaginário dos cidadãos consumidores. A mensagem implícita que as crianças leitoras de um texto como esse recebem, ‘grosso modo’, é a de que ‘vocês podem imaginar quantos mundos fictícios, quantas sociedades paralelas e quantos sistemas educativos quiserem, mas todos eles serão regidos pelas leis do mercado’. O mínimo que se pode dizer, à luz do sucesso da obra, é que as jovens gerações não esquecerão a lição.’
Folha de S. Paulo
‘‘Times’ sai em defesa de jovem mago’, copyright Folha de S. Paulo, 22/07/04
‘Depois de o ‘Monde’ abrir espaço para um artigo que atacava a obra ‘capitalista anglo-saxônica’ da inglesa J.K. Rowling, o ‘Times’ londrino partiu para a defesa de sua conterrânea no último sábado, com um artigo de Ben Macintyre que reaviva a polêmica cultural entre os países.
‘Prosa pomposa’, ‘involuntariamente hilariante, virtualmente incompreensível e perfeitamente inútil’ são exemplos do bombardeio que o artigo do jornal inglês faz contra o do ‘Monde’.
Usando da conhecida ironia inglesa, Macintyre pontua seu texto com expressões francesas para atacar o intelectualismo que, segundo escreve, manteve a tradição de enxergar muita coisa onde não há nada. ‘Como Freud disse, às vezes um charuto é apenas um charuto. Às vezes um livro infantil é apenas para crianças.’
O inglês usa o argumento de que a crítica francesa estaria colocando chifre em cabeça de burro para defender a pátria e a obra: o ataque se daria porque o sucesso da obra é tão grande que adultos estão lendo textos infantis e transferindo para ele suas neuroses.
‘Que os adultos se sentem obrigados a encontrar nos livros de Rowling algo mais do que eles aparentemente oferecem, é um sinal do sucesso sem precedentes de Harry Potter e das raízes que a série fincou em nossa cultura’, diz o autor.
Macintyre faz uma distinção entre os tipos de obra para crianças. ‘Alguns livros infantis são dignos de status semelhante ao da literatura adulta. Uns poucos talvez até mereçam análise de texto mais profunda. Mas isso não se aplica à maioria deles.’
Exemplificando sua argumentação, ele cita ‘Alice no País das Maravilhas’ (‘um conto de fadas surreal, mas também uma paródia sobre a injustiça’) e ‘O Senhor dos Anéis’ (‘é sobre a corrupção do poder’), e coloca o bruxo no lugar que julga adequado: ‘Os livros de Harry Potter oferecem pouco em termos de complexidade psicológica ou moral. Não se trata de uma alegoria sobre a nossa era, mas de histórias simples e bem escritas, a serem lidas por ou para as crianças. Ao pretender que Harry Potter tenha algo a dizer aos adultos, prestamos à série e à literatura em geral um profundo desserviço.’
Macintyre classifica o intelectualismo francês acerca da literatura de ‘teorização pseudo-erudita’, que não conseguiria distinguir ‘entretenimento infantil de estímulo intelectual adulto’. ‘Quando acadêmicos, lingüistas, analistas, adversários do racismo, jungianos, freudianos, jung-freudianos, sociólogos, advogados, filósofos, psicólogos e críticos literários começam a se juntar em torno de um livro infantil, é hora de deixar de ler nas entrelinhas.’’