‘Com um pedido de licença a João Cabral, é preciso dizer e repetir que o hífen é nosso inimigo, como o touro numa corrida. Sem exagero: trata-se de uma pedra drummondiana no caminho dos falantes de português. Basta ser lusoparlante – sem tracinho, por favor – para ter problemas com o diabo do tracinho. O hífen é nosso arqui-inimigo, e o que é pior: arquiinimigo não tem hífen.
Não conheço nenhum falante de português, nem unzinho só, que mate assim na batata, sem consultar o dicionário, todos os casos cabeludos de hífen/não-hífen. Há de haver os que consigam, como existem os que recitam a lista dos afluentes do Amazonas e dos afluentes de afluentes do Amazonas em ordem decrescente de extensão. Mas são casos raros, monstruosas exceções. Uma pessoa normal não domina o uso do hífen, nem tem como dominá-lo: as regras são confusas demais.
Regras? Será que se pode chamar assim aquele cabide de exigências, cada uma com sua listinha de palavras mágicas, em que as leis são tão numerosas quanto as exceções? Muita gente gostaria de ver resumidos os princípios básicos – composição, justaposição, aglutinação – que regem o uso ou a dispensa do hífen em português. Isso não é possível porque, se princípios básicos há, ou houve, já mal se distinguem, de tão soterrados por idiossincrasias, de tão esburacados de exceções.
O que não quer dizer que a aplicação do hífen em nossa língua seja aleatória, maluca, nada disso. Faz todo o sentido do mundo. Os filólogos têm uma explicação para cada caso. Bom, talvez não expliquem por que diabos tanto faz escrever micro-história quanto microistória (sick!, em inglês mesmo), mas o resto até que explicam. O antipático – porque indomável – comportamento do hífen é produto de um respeito meticuloso por questões de morfologia e fonética que já não fazem sentido para ninguém – se é que fizeram um dia. É matéria de decoreba, não de pensamento.
Por que será que é assim? Nunca quiseram simplificar? Passamos, no século 20, por duas reformas ortográficas. Nossos sábios não julgaram oportuno desridicularizar o uso do hífen em nenhuma delas. Há quem diga que vem aí uma nova reforma. Na verdade, até agora ela tem se mostrado fictícia como tudo o que se refere à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, mas nunca se sabe. De qualquer modo, também dessa vez o hífen será deixado como está.
Alguns acreditam que o motivo é um mesquinho apego ao poder: se o português fosse fácil, quem precisaria de sábios? Eu prefiro a versão segundo a qual tudo não passa de um conluio entre lexicógrafos e editores para vender dicionários.
Não precisaria ser assim. Ortografia é convenção, a única parte da língua que pode ser regulada por lei. Não tem a força estrutural de uma norma de gramática, a profundidade de uma inclinação vocabular, embora nada disso sirva de consolo a quem, por razões profissionais, precisa ser ortograficamente correto. Só há duas saídas: freqüentar o dicionário (serve o site da Academia Brasileira de Letras) ou decorar páginas e páginas de letras miúdas.
Dois anos atrás, publiquei no ‘Jornal do Brasil’ um apanhado das leis do hífen, que reproduzo no link abaixo. Talvez, se por exemplo não chover, nem valha a pena clicar nele: falando com franqueza, o hífen é uma mala pesada. Por outro lado pode ser leitura divertida como ilustração do tipo de cilada que nós, falantes de português, armamos para nós mesmos, e continuamos a armar, dia-após-dia.
‘Dia-após-dia’ – locução adverbial que, naturalmente, nunca levou hífen.’
Deonísio da Silva
‘Boca, língua e coração’, copyright Jornal do Brasil, 20/09/04
‘Faz tempo que o futebol invadiu a grande área de nossa língua portuguesa. O ministro pisou na bola. O senador deu balão no partido. O Congresso está fora da jogada. É chute dizer que o juro vai subir. Embolou o meio-de-campo.
Semana passada, Frei Betto levou cartão amarelo de Patrus Ananias. Acusado de prejudicar o time do ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, aquele foi o segundo cartão, a julgar pela frase irritada do ministro: ‘Frei Betto me aprontou mais uma’. Já o escritor e frade mineiro nada diz sobre o que aprontam para ele.
Na mesma semana, o presidente Lula voltou a recorrer ao futebol: ‘O Corinthians perdeu no domingo. Mas o time se esforçou. Ruim é quando perde sem se esforçar’.
As metáforas do presidente são um caso à parte. Desta vez ligou futebol e menstruação, pois em seguida comparou à tensão pré-menstrual, conhecida por TPM, a inquietude do mercado às vésperas da reunião dos hierarcas que decidem a taxa de juros: ‘Na época em que o Copom se reúne, tem pessoas que entram em TPC. As pessoas têm aquela tensão pré-Copom’.
Freqüentemente ouvimos e lemos expressões que ligam a política ao futebol. A proposta não foi aprovada, mas passou raspando a trave. Alto funcionário pisou na bola. Perdido por um, perdido por dez, agora é bola pra frente. Não se pode tirar o time de campo.
Outro presidente, Jânio Quadros, cujas metáforas iam muito além dos jardins dos Campos Elíseos ou da Rua Estilo Barroco, onde morava junto com o próprio estilo, indagado pelos jornalistas se ainda cobiçava a Presidência da República, saiu-se com duas metáforas: concluído o mandato de prefeito de São Paulo, em cuja eleição derrotara o futuro presidente Fernando Henrique Cardoso, penduraria as chuteiras, pois estava mais longe da presidência do que o Sol da estrela Alfa de Centauro. E pendurou um par de chuteiras na porta de seu gabinete.
Os jornalistas entenderam a primeira metáfora, que interpretaram como o último cargo que exerceria como político, mas fizeram leitura errada da segunda: estrela múltipla da constelação que lhe deu o sobrenome, Alfa de Centauro tem entre suas componentes aquela que, entre todas as do universo, é a que está mais próxima do Sol, atendendo, por isso mesmo, pelo nome de Proxima Centauri. Jânio Quadros declarou exatamente o contrário do que os redatores escreveram que ele disse. Deu chapéu e lençol em tais jornalistas. Sem contar as inúmeras vezes que os driblou. Se houvesse bicho para os repórteres, Jânio seria o Pelé do time adversário. O bicho ia sempre para o time em que Pelé jogava.
Quanto ao verbo aprontar, um de seus significados é o de prejudicar. Helena Morley utiliza o verbo com o sentido de enfeitiçar. Em Minha vida de menina, ela conta que sua avó manda embora Sô Tomé. O motivo: ‘Diz que é feiticeiro e estava aprontando Andresa com um chá de raízes para ela casar com ele’.
O livro foi transposto pra o cinema por Helena Solberg e arrebatou seis Kikitos no Festival de Gramado. Logo depois da Abolição e da República, Helena Morley, vivida pela atriz Ludmila Dayer, escreve um diário. Ela é magra, desengonçada, sardenta e se acha feia. Diferente da irmã, Luizinha, não é boa aluna. Escrevendo, ironiza seus contemporâneos de Diamantina.
O futebol é constantemente invocado para ilustrar idéias e comportamentos. Livros, escritores e filmes, muito raramente. Nos evangelhos de Mateus e de Lucas, discutindo com os fariseus, diz Jesus: ‘Raça de víboras, como podeis falar coisas boas se sois maus? A boca fala daquilo de que o coração está cheio. A versão latina é mais sintética: ex abundantia cordis os loquitur.
Enfim, cada qual com seu repertório.’
JORNAL DA IMPRENÇA
‘Haja ventilador!!!’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 17/09/04
‘Deu na sempre apreciada coluna do Ricardo Boechat:
Vai melhorar
Daqui a pouco, ir ao banheiro será bem mais agradável.
A Associação Brasileira de Normas Técnicas vai anunciar, em outubro, regras para a fabricação de papel higiênico.
O Brasil é o primeiro país do mundo a buscar qualidade nesse produto.
As marcas vão ser classificadas por sua capacidade de absorção de água, tração (resistência ao ser puxado do rolo), maciez, entre diversos outros quesitos.
Aquele papel cheio de letrinhas de jornal e furinhos está com os dias contados.
As regras valerão a partir de 2005.
Janistraquis alarmou-se: ‘Considerado, é melhor a gente botar as barbas de molho desde já; se estão preocupados com papel higiênico é sinal de que vem m… por aí…’
É mesmo; portanto, seria o caso de se constituir imediatamente aquele cargo sugerido por Chico Buarque a Lula, segundo anotou Ancelmo Gois no mês passado, quando se anunciou a promoção de Henrique Meirelles. O festejado compositor e escritor, agraciado com o Prêmio Jabuti/2004, propôs a criação de um ‘ministério-do-vai-dar-m…’, com a finalidade de prevenir o governo. Funcionaria assim: antes de tomar qualquer medida, o presidente da República a submeteria ao titular da pasta, que lhe diria: ‘Olha, presidente, não faz isso não que vai dar m…!’
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Augusto Nunes
Lê-se no indispensável Jornalistas & Cia. a notícia de que nosso consideradíssimo Augusto Nunes está deixando a rotina das redações para dedicar-se à literatura, velho projeto que agora, às vésperas do 55º aniversário, decidiu assumir. Janistraquis sugere que os leitores de bom gosto comemore tal decisão com as mais vistosas fanfarras, embora ache que Augusto já tenha feito a opção literária e há muito tempo, desde os primeiros trabalhos, inda menino, nas páginas do Estadão. É verdade. Afinal, todos os textos de Augusto Nunes, ainda no início da carreira, revelam quanta literatura pode haver no melhor e mais elegante jornalismo.
J&C também anuncia que o mestre continuará com sua coluna dominical no Jornal do Brasil e também com os artigos em No Mínimo, para alegria dos tantos e tantos admiradores.
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Vuca-vuca
O considerado Marcello Xavier, jornalista esperto que não costuma confundir tentáculo com testículo, lia o Jornal de Brasília quando foi cutucado por este título deveras incomum:
Rôla se diz usado por Shana
O susto continuava nas partes baixas do jornal:
Sergipe – Irritado com as freqüentes associações feitas pela imprensa do seu apelido ao da candidata a vereadora Maria Rosilene, a ‘Shana’, o ex-candidato a deputado federal José Ribeiro (Prona), mais conhecido como ‘Rôla’, disse que vai processar quem utilizar o seu apelido para se promover eleitoralmente. ‘Eu não vou permitir que oportunistas tentem me usar para se promoverem. Já estive com Shana e lhe disse que se ela estiver usando o meu apelido para se promover, vou processá-la. Por que, obrigatoriamente, estão ligando Rôla a Shana?’, questiona, indignado.
Janistraquis, que já viu de tudo nesta vida, caceteou-se: ‘Considerado, mulher alguma, e nem mesmo um candidato do Grupo Gay da Bahia, iria se ‘promover’ agarrado a Rôla. Se eu fosse juiz eleitoral enquadrava a dupla Zé Ribeiro/Rosilene por desrespeito à inteligência do eleitorado.’
Discordo; num regime democrático, Rôla e Shana podem (e devem) conviver numa boa. Os litigantes só precisam ser lembrados disso.
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Oportuno
Deu na mais apreciada editoria da Folha de S. Paulo:
Erramos: Lula faz crítica à política econômica de FHC
Diferentemente do que informou a reportagem ‘Lula faz crítica à política econômica de FHC ‘, Lula mencionou as viagens realizadas nos 19 meses de governo e não em 19 anos.
Aí então o considerado Fernando Perez, diretor de marketing da Silicon Networks, que enviou a pérola, fez o seguinte e oportuno comentário:
‘Depois chamavam o outro de Viajando Henrique Cardoso…’
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Unanimidades
Ao comentar artigo de Marcello D’Angelo exposto aqui neste Comunique-se, uma jovem mineira escreveu:
Sou sindicalizada, mas não faço parte do SJMG, embora aprove a gestão. A desqualificação dos sindicalistas foi algo assustador. Mas continuo acreditando em uma célebre frase: ‘toda a humanidade é burra’.
Janistraquis, que jamais achou a humanidade muito inteligente, faz pequena observação:
‘Na verdade, Nélson Rodrigues não declarou que toda a humanidade é burra; ‘toda unanimidade é burra’, disparou o célebre autor de Perdoa-me Por Me Traíres e tantas outras magníficas peças teatrais. E, antes que também distorçam, aqui vai outra de suas frases imortais: ‘o video-tape é burro’.
Se estivesse vivo, o que falaria o mestre a respeito de alguns comentários postados neste notável portal?’
É bem lembrado, é bem lembrado…
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Assassinato
Diretor de nossa sucursal no Planalto, de onde se pôde escutar João Paulo a dar conselhos a Lula, Roldão Simas Filho leu no Correio Braziliense a notícia de um ‘assassinato em Niterói’, segundo garantia o título; no texto, porém, dizia-se que a ocorrência fora em Itaboraí, no Grande Rio.
Roldão, que perdeu a paciência com jornalistas ainda no tempo em que Ricardo Kotscho e Clóvis Rossi eram amigos, estrilou:
‘Entre os dois municípios fica o de São Gonçalo; portanto, Niterói e Itaboraí sequer fazem divisa!!!’
Meu secretário, cujo nome começa com jota mas não se chama Joaquim e nunca morou em Niterói nem em Itaboraí e muito menos em São Gonçalo, está com Roldão e não abre!
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Nota dez
O melhor texto da semana, para o leitor avaliar o que acima foi dito, nasceu da inquieta lavra do jornalista e escritor Augusto Nunes em sua coluna do site No Mínimo:
Cabeças de aluguel
Pode um jornalista defender qualquer causa, argumentar em favor de qualquer idéia, em troca de dinheiro, ainda que se trate do salário mensal? Penso que não, mesmo no caso dos editorialistas. A ressalva é essencial. Em conversas de botequim, gente da imprensa continua achando engraçadas histórias ocorridas nem faz tanto tempo. São protagonizadas por profissionais que, com naturalidade e talento, defendiam num jornal determinada idéia e, no mesmo dia, procuravam implodi-la em outro editorial encomendado pela publicação concorrente. Como ambos os textos saíam sem assinatura, debitava-se o delito ético na conta dos patrões (…)
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Errei, sim!
‘BAIXAREL EM DIREITO – Um misterioso leitor, que se identifica apenas como Tio Elísio, envia de Brasília um Boletim de Campanha do Sindicato dos Servidores Públicos Federais do DF, filiado à CUT, com preciosa colaboração a esta coluna. O folheto reproduz informe a respeito da liberação do FGTS, assinado pelo advogado Miltonilo Cristiano Pantuzzo (OAB/DF4.689) e, a linhas tantas, escreve o causídico: ‘(…) a fim de olvidarmos os esforços necessários visando a atualização das referidas contas’. Olvidarmos!!! Janistraquis comentou: ‘Considerado, data venia, convém a OAB envidar esforços no sentido de que os adevogados se ilustrem um pouco mais.’ Aprovo.’ (março de 1993)’
MÍDIA & VIOLÊNCIA
‘Como noticiar sem inspirar assassinos?’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 16/09/04
‘Essa é uma pergunta que me tenho feito, em meio à série de assassinatos de moradores de rua pelo Brasil. Os crimes no centro de São Paulo teriam inspirado a barbárie cometida em outras cidades, alguns dias depois? Ou será que o assassinato de sem-teto é mais comum do que pensamos? É possível que sejam fatos corriqueiros, ainda que individuais, e não coletivos, como em São Paulo? Estávamos desinformados? Não ligávamos a mínima para os ‘B.O.s’ dos indigentes? Devemos noticiar, com alarde, cada um dos homicídios? O que fazer?
Taí um desses desafios da linha ‘quem nasceu primeiro: o ovo ou galinha?’.
O ímpeto do jornalista é sempre noticiar. É para isso que ele existe. Porém, jornalista sem responsabilidade social é apenas um meio-jornalista, se tanto. É desconfortável pensar que débeis mentais do sadismo (ou assalariados da infâmia) possam inspirar-se nas nossas notícias para matar.
Sim, desconfortável. Mas não é bom se calar. Primeiro porque não resolve, e temos de apontar soluções que melhorem o dia-a-dia da sociedade. Posso ser radical (e sou mesmo), ao considerar obrigatório o mergulho do profissional nas dificuldades do seu tempo, com mente alerta para denunciar e propor as respostas que urgem.
Se o silêncio por vezes favorece a delinqüência em todos os escalões, e o barulho pelo barulho não desperta a consciência dos criminosos (antes, transtorna-a), como devemos proceder?
Tenho muitas perguntas e apenas algumas pistas. Uma delas é não nos esquecermos de que esses crimes são apenas uma conseqüência. Nada mais previsível. O celerado pára e conclui, mais ou menos assim: ‘Pô, se matar figurão não dá em nada, vamos arregaçar esses vagabundos!’. Um exemplo de impunidade: até hoje a polícia não sabe quem teria sido o mandante do assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro Filho, embora os supostos atiradores tenham ido a julgamento. Castro Filho investigava o crime organizado no Espírito Santo.
O expurgo de moradores de rua é resultado de uma sociedade ausente, de um Estado omisso. Onde estão os policiais? Bom, há quem diga que estão matando mendigos por aí. Como os inquéritos ainda estão em curso, prefiro, por prudência, concluir que a polícia (a instituição) simplesmente não está onde deveria estar. E isso também é conseqüência de uma política de Estado ineficaz.
Tenho algumas respostas para uma cobertura jornalística que se aproxime da ideal. Não são absolutas, chamo o leitor para o debate.
1) Não noticiar nada?
R- Isso é simplesmente se calar e se omitir.
2) Noticiar, todos os dias, cada um dos assassinatos de sem-teto pelo Brasil?
R- Isso não soluciona o problema social e inspira novos crimes.
3) Acompanhar diariamente a investigação dos casos já noticiados? Cobrar resultados?
R- Sim, é claro.
4) Produzir artigos e reportagens que levem à adoção de medidas públicas contra a impunidade, contra a miséria e, conseqüentemente, contra a perpetuação da brutalidade?
R- Sim, é preciso atacar a causa. Ainda que prendam um ou dois, não resolve. Não podemos dar trégua ao Poder Público, não podemos deixá-lo respirar. Mais: devemos fazer a nossa autocrítica social.
Conto com a sua opinião.’