Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Silvio Bressan

‘Há mais coisas para se lembrar do que para se descobrir no livro O Sapo e o Príncipe – Personagens, Fatos e Fábulas do Brasil Contemporâneo (Editora Objetiva, 360 páginas, R$ 48,90), do jornalista Paulo Markun, lançado na terça-feira passada, em São Paulo. Mesmo assim, o cruzamento das biografias do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (o príncipe) e do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (o sapo), não deixa de ser um exercício interessante para se entender melhor as transformações do País nas últimas décadas.

Pelo que cada um fez ou disse do outro, é possível acompanhar como o encontro e o afastamento dessas duas trajetórias influíram e também transformaram a política nacional. Se a oposição à ditadura aproximou-os, em meados de 1978, quando o sindicalista Lula apoiou a campanha do acadêmico Fernando Henrique para o Senado, o fim do regime militar já encontrou os dois em campos opostos.

Durante os anos 80 e 90 eles iriam se afastar ainda mais, mas nunca estariam tão distantes como na década de 40 e 50. Quando Lula nasceu, em 1945, num casebre perto de Caetés, interior de Pernambuco, o menino Fernando Henrique, primogênito de uma família carioca de classe média e já com 14 anos, assistia emocionado no Rio o desfile de pracinhas que voltavam da II Guerra Mundial.

CORINTHIANS

Sete anos mais tarde, enquanto Lula chegava ao litoral paulista numa longa viagem de 13 dias em pau-de-arara, Fernando Henrique, se formava em Ciências Sociais e já começava a dar aulas na USP. E foi na condição de intelectual e estudioso do marxismo que FHC teve de se exilar no exterior após o golpe de 1964. Para o torneiro mecânico Luiz Inácio, o movimento militar não tinha qualquer importância. ‘Nesse tempo eu não queria saber de política’, admite Lula. ‘Meu negócio era ler tudo o que falava do Corinthians. Não tinha cabeça para outra coisa.’

As duas trajetórias só se cruzariam em 1973, quando o então diretor de Previdência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo visitou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), do qual FHC era um dos fundadores. Eles não se recordam da primeira conversa, mas a ascensão simultânea do sindicalista e do intelectual permitiu que ambos trilhassem caminhos paralelos e, por vezes, coincidentes na oposição à ditadura militar.

FORÇA DA NATUREZA

Como candidato ao Senado na sublegenda (uma espécie de suplente) do MDB de Franco Montoro, em 1978, Fernando Henrique considerava Lula ‘um homem excepcional. Ele representa o que há de novo, uma espécie de força da natureza’. FHC queria, inclusive, transformar Lula em responsável pela área sindical do MDB.

Lula não tinha tanta ilusões sobre FHC. ‘Ele mesmo tem consciência de que o ideal para nós seria um candidato dirigente sindical ou trabalhador’, dizia na época. De qualquer forma, o sindicalista considerava Fernando Henrique um intelectual confiável, que um dia poderia fazer parte de um partido só dos trabalhadores. E foi a fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1979, que bifurcou mais uma vez as duas biografias. ‘Já que era para criar um partido, era preferível criar o nosso’, explica Lula. ‘Eu achava aquilo ultrapassado. Não acreditava num partido classista’, justifica Fernando Henrique.

A partir daí, foi cada um para o seu lado. Na clássica definição do brasilianista Thomas Skidmore, tratava-se de um conflito entre duas visões sobre como se construir o caminho da transição democrática: pela ruptura ou pela negociação. Lula estava no primeiro grupo e Fernando Henrique integrava a segunda turma. A única trégua nesse período foi o segundo turno de 1989, quando Lula dividiu seu palanque com FHC na disputa presidencial contra Fernando Collor.

INFANTILIDADE

É desta época que Markun extrai uma das poucas revelações do livro. Segundo Fernando Henrique, o controle da imprensa já era um projeto do PT há 25 anos. ‘Havia 13 pontos e o PT achava que não era eleição, mas uma revolução’, lembra o ex-presidente. ‘A imprensa seria controlada por um comitê de jornalistas e editores. Eu dizia que, como não iam abolir a propriedade privada dos meios de produção, tudo aquilo seria uma loucura. Uma infantilidade enorme.’

Depois, vieram o Real e o ‘principado’ de Fernando Henrique, entre 1994-2002, que afastaram de vez as duas trajetórias. Àquela altura, Lula já havia sido promovido pelo ex-governador Leonel Brizola à condição de ‘sapo barbudo que as elites teriam de engolir’.

De fato, Lula chegou lá, mas ainda está para se descobrir se quem assumiu a faixa de Fernando Henrique ainda era um sapo ou já havia virado outro príncipe. Markun não tenta desvendar a moral dessa fábula e nem precisa, porque ela ainda está em aberto. Melhor do que qualquer teoria, ele nos oferece diálogos reveladores e até proféticos entre os dois personagens.

Um dos mais interessantes, na página 295, mostra Fernando Henrique, ainda presidente, advertindo Lula contra a tentação da oposição fácil. ‘Lula, não se iluda. Se houver uma crise séria, nós todos vamos perder, e depois não vem o paraíso. Você nunca foi socialista, mas nós acreditávamos que depois da crise vinha a bonanza. Agora, depois da crise não vem nada.’ Pela cautela que o ex-líder sindical tem demonstrado no governo, o recado parece ter sido entendido. Quem descobrir até onde a mensagem foi assimilada terá uma boa pista para o final da fábula.’



MEMORIA DE MIS PUTAS TRISTES
Folha de S. Paulo
/ El País

‘García Márquez retorna com uma história de amor’, copyright Folha de S. Paulo / El País, 21/10/04

‘Gabriel García Márquez volta ao romance, dez anos depois de ‘Do Amor e Outros Demônios’, com ‘Memoria de Mis Putas Tristes’ (Mondadori), uma história de amor terna e íntima, mas repleta de ironia e humor: um homem de 90 anos se apaixona por uma menina de 14 com tamanha intensidade que retorna aos tormentos da adolescência.

Em 109 páginas, dispostas em cinco capítulos, o escritor colombiano relata, em primeira pessoa, essa paixão, a vida desse homem sem nome que nada tem de avô; fala de música, de livros; reflete sobre a velhice e a fama. O livro chegou ontem às livrarias da Espanha e da América Latina, com tiragem inicial de 1 milhão de exemplares, em espanhol.

‘Quando completei 90 anos, quis me presentear com uma noite de amor louco com uma adolescente virgem’, assim começa o romance que, assim como ‘Do Amor e Outros Demônios’ (1994), também traz como protagonista uma menina quase adolescente que é tida como possuída por um demônio.

Entre os dois romances, García Márquez publicou ‘Notícia de um Seqüestro’ (1996), reportagem sobre os seqüestros organizados pelo Cartel de Medellín, e o primeiro volume de suas memórias, ‘Viver para Contar’ (2002).

‘Memoria de Mis Putas Tristes’ presta homenagem ao escritor japonês Yasunari Kawabata e em particular ao livro ‘A Casa das Belas Adormecidas’. O ancião do colombiano laureado com o Nobel, como os do escritor japonês que recebeu igual honraria, se deixa submergir no prazer do olhar.

García Márquez começou a escrever o romance há muitos anos, mas só o deu por concluído em maio passado. Continua trabalhando em suas memórias e também no livro ‘Em Agosto nos Vemos’, uma série de quatro contos. O narrador de ‘Memoria de Mis Putas Tristes’ é feio, tímido e anacrônico, segundo o escritor o descreve. Trabalhou durante 40 anos como ‘inflador de despachos’ no jornal ‘Diario de la Paz’. Foi professor de gramática espanhola e de latim, se bem que mau professor, como ele mesmo admite. Há meio século publica um artigo dominical no mesmo jornal. Foi iniciado nas ‘artes do amor’ pouco antes dos 12 anos, quando ainda usava calças curtas, por uma senhora chamada Castorina. Nunca se deitou com uma mulher sem pagar e, nas poucas ocasiões em que dormiu com mulheres que não eram do ofício, lhes dava algum dinheiro para se sentir tranqüilo. As putas não lhe deixaram tempo para se casar.

Quando tinha 20 anos, começou ‘um registro’ das mulheres com que fazia amor. Anotava a idade, o lugar e uma breve descrição das circunstâncias. Batizou a compilação de ‘Memoria de Mis Putas Tristes’. Homem metódico e ordeiro, vive em uma bela casa herdada dos pais, mas tem poucos recursos porque suas duas aposentadorias não dão para muita coisa e o artigo dominical paga ainda menos. Faz críticas de música de graça.

Aposentado, mas não acabado e sentindo-se às vezes condenado à vida eterna, as coisas começam a mudar certo dia, em 29 de agosto, quando ele completa 90 anos. O presente que quer dar a si mesmo faz com que tudo mude. ‘Foi o princípio de uma nova vida em uma idade na qual a maioria dos mortais está morta.’

A epígrafe do livro, extraída de ‘A Casa das Belas Adormecidas’, de Yasunari Kawabata, é reveladora: ‘A dona da pensão advertiu ao velho Eguchi que não fizesse nada de mau gosto. Nada de enfiar o dedo na boca da mulher adormecida, ou algo parecido’.

Uma velha cafetina que ele não freqüentava já há 20 anos lhe proporciona uma adolescente virgem de 14 anos para sua noite de glória. Quando ele chega, a menina, que cuida de seus numerosos irmãos e trabalha em uma fábrica pregando botões, está dormindo. Contempla-a nua, mas não a acorda. Vai embora ao amanhecer. E volta na outra noite, e na seguinte. Sussurra-lhe uma canção ao ouvido: ‘A Cama de Delgadina de Anjos Está Rodeada’.

Uma história de amor sem palavras. Ele a prefere adormecida ou desperta? É uma das partes mais bonitas do romance. García Márquez mantém uma tensão que aprisiona o leitor, até que oferece um final inesperado. E antes disso o ciúme, o desespero, o amor do velho que ‘não se reconhecia em sua dor adolescente’. Ele, que ‘sempre havia entendido que morrer de amor não era mais que licença poética’. Tradução de Paulo Migliacci’

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‘García Márquez muda final e dribla piratas’, copyright Folha de S. Paulo, 21/10/04

‘Gabriel García Márquez, conhecido como pai do ‘realismo fantástico’, mostrou ontem algo digno de sua literatura. O escritor colombiano, de 77 anos, havia antecipado em uma semana o lançamento de seu novo romance depois que cópias piratas do livro foram apreendidas na Colômbia.

Ontem, ao lançar o romance ‘Memoria de Mis Putas Tristes’ no México, o vencedor do Nobel de 1982 deu o troco nos piratas. ‘Pode verificar a versão colombiana e compare com a edição oficial, lançada hoje. García Márquez mudou o último capítulo’, disse Braulio Peralta, editor da Random House Mondadori, que publica o escritor.

Primeiro romance do escritor de ‘Cem Anos de Solidão’ em uma década, a história do colombiano de 90 anos que narra suas peripécias amorosas teve alterações leves, segundo o editor.

As mudanças foram feitas a tempo de pegar toda a tiragem recorde de 1 milhão de exemplares em língua espanhola (só na Colômbia foram impressas mais de 350 mil cópias).

A polícia colombiana, que prendeu anteontem três vendedores de cópias piratas do romance, anunciou que não foram mais do que 5.000 os exemplares impressos ilegalmentes.

As notícias sobre pirataria não foram as únicas sobre García Márquez que circularam pela imprensa internacional ontem. Os editores do escritor no México anunciaram também que Gabo, como o escritor é apelidado, já está escrevendo outra obra, a novela ‘Nos Vemos en Agosto’.

‘Ficamos muito contentes em saber que ele está escrevendo. Estávamos muito preocupados com sua saúde’, disse o editor de García Márquez, em referência ao câncer do sistema linfático que o escritor vem combatendo.

O lançamento mais recente do autor, que mora atualmente na Cidade do México e que não publicava um romance desde ‘Do Amor e Outros Demônios’ (1994), tinha sido o livro de memórias ‘Viver para Contar’, que saiu há pouco mais de um ano.

As ‘memórias’ inventadas que ele acaba de publicar, em não mais do que 110 páginas, ainda não estão programadas para sair no Brasil, segundo a editora Record, que vem publicando suas obras. A data de lançamento da edição norte-americana também ainda não foi anunciada. Com agências internacionais’



LIVROS & MÍDIAS
Arnaldo Bloch

‘Não destruirás o livro’, copyright O Globo, 21/10/04

‘Uns vinte anos atrás, Bill Gates deu uma de futurólogo do apocalipse e anunciou a morte do papel impresso para o início do novo milênio. Se isto estivesse em vias de acontecer, o bibliófilo José Mindlin, 90 anos, dono de uma das mais importantes bibliotecas do Brasil e símbolo nacional do culto ao livro, não teria se encontrado esta semana com seu colega americano, Matthew Battles, 35, editor do boletim da Biblioteca Houghton, que guarda as obras raras de Harvard. À menção do nome de Gates, Mindlin recorda uma história recente:

– Outro dia uma revista de informática quis me fotografar segurando um e-book. Eu disse que só aceitaria se, na outra mão, houvesse um livro convencional. No dia marcado, o repórter disse: agora o senhor vai ver uma coisa maravilhosa. Mas na hora de ligar, o e-book não funcionou! Então eu disse: isso nunca aconteceria com um livro. Após 550 anos, o livro é basicamente o mesmo. O resto é adivinhação. Posso dizer que vão inventar uma pílula que você toma e pronto, já leu tudo…

Matthew, que lançou no ano passado o livro ‘A conturbada história das bibliotecas’ (no Brasil, editado pela Planeta), ironiza:

– Já deve ter alguém trabalhando nesta pílula… provavelmente, Bill Gates! A tecnologia não substitui o livro. Ela ajuda a encontrá-lo nas bibliotecas. Por outro lado, as bibliotecas servem para fazer frente a uma certa informação torrencial que nos atinge e é confusa, mesmo que democrática. A biblioteca garante que possamos, se necessário, reassumir o controle sobre o conhecimento de uma maneira transparente e ordenada.

‘Os livros vão sobreviver a nós’

Mindlin, que não é usuário de computador (embora o catálogo de sua biblioteca seja informatizado), ensina o caminho da virtude:

– Acho que o que perdemos com a internet, sobretudo, é o traço da escrita do autor, das anotações, das emendas que, no computador, hoje, simplesmente se apaga. Por outro lado, o uso do computador permite outras possibilidades no processo de criação e a internet garante acesso rápido a documentos e imagens. Por isso eu digo que é um falso dilema. Uma coisa eu digo: os livros vão sobreviver a nós e a várias e várias gerações…

Matthew, por sua vez, vê certa negligência com os manuscritos de hoje, ao mesmo tempo que com aquilo que se perde no universo eletrônico:

– Da mesma forma como os documentos pessais, notas fiscais, bilhetes de nosso tempo terão valor de raridade, a enorme quantidade de e-mails, textos de blogs e outros processos transitórios e efêmeros da internet podem estar escondendo preciosidades que a qualquer momento serão deletadas da História.

Presente à conversa, que se deu na Biblioteca Nacional, o presidente da instituição, Pedro Corrêa do Lago, ilustra o paradoxo:

– Imaginem se Shakespeare tivesse um blog e este fosse deletado… Imaginem se os esboços, as anotações, os cadernos, aquilo que os grandes mestres deixaram de lado, não pudessem ser estudados pelas geraçoes futuras?

‘Farenheit 451 não é fantasia’

A discussão segue num tour pelos corredores da BN em que se passou pelas seções de obras raras, iconografia e restauração, e ruma para o principal foco de interesse de Matthew: a destruição de bibliotecas, de Alexandria até o conflagrado século XX, que assistiu a queimas de livros em plena alvorada da modernidade.

– Na verdade, o que se precisa evitar é a destruição. A terrível realidade descrita no filme ‘Farenheit 451’, de Truffaut, em que o Corpo de Bombeiros tem a função de queimar livros, não é assim tão fantasiosa. À compulsão de ler contrapõe-se, historicamente, a tentação de destruir.

– A pior tragédia que pode acontecer à Humanidade é a morte de seus livros – complementa Mindlin.’



ELEIÇÕES LÁ E CÁ
Carlos Heitor Cony

‘Debatendo os debates’, copyright Folha de S. Paulo, 23/10/04

‘Mais uma vez, e como sempre, estou na contramão do consenso, um dos quais, em época eleitoral, é a importância do debate na TV entre os candidatos a cargos eletivos. Os marqueteiros e colunistas especializados acreditam que Kerry diante de Bush, ou Marta diante de Serra, consumidos pelos milhões de telespectadores que acumulam a função de eleitores, ganharão ou perderão de acordo com a performance diante das câmaras.

É evidente que um ou outro eleitor assistirá ao debate e, se estiver indeciso, poderá decidir se vota em A ou em B. Esse contingente de indecisos é pequeno. Nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório, há a tendência de se votar num dos partidos, há o voto republicano e o democrático -e este voto é que decide a questão.

No Brasil, onde praticamente não há partidos, o eleitor vota em nomes, caras e bocas, quase que da mesma forma como torce pelo Flamengo ou pelo Vasco, e não espera a última partida entre os dois para mudar de time. Tal como nos Estados Unidos e em outros países, a turma dos indecisos é pequena.

Dizem que o último debate entre Collor e Lula, em 1989, decidiu a fatura em favor do primeiro. Realmente, Collor se saiu melhor naquela ocasião, mas ele ganharia de qualquer maneira. Sua campanha estava bem azeitada, com imensos recursos, e havia o medo de uma vitória do PT. Lula não seria eleito naquela ocasião nem mesmo se fizesse chover e descobrisse onde estão os ossos de Dana de Teffé.

O mesmo se poderá dizer de Kerry e de Bush, de Marta e de Serra. Um fato novo, de última hora, poderá mudar o voto do eleitorado. Mas não um fato produzido, como o debate na TV. Prova disso foi a vitória de Cesar Maia no primeiro turno, aqui no Rio. Os seus concorrentes uniram-se para torpedear o prefeito, apontando as falhas de sua gestão, que são e continuam sendo muitas. Não adiantou.’