Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Tereza Novaes

‘O filme é sobre uma figura antológica do futebol brasileiro, mas em ‘Garrincha – Estrela Solitária’ pouco se vê a bola em campo.

‘Não é um filme sobre o futebol brasileiro, mas sobre um personagem do futebol’, afirma o diretor Milton Alencar Jr.

Portanto, o espectador que for ao cinema com a expectativa de quem vai assistir a uma bela partida certamente vai se decepcionar.

As cenas de Mané Garrincha em campo são parcas -as originais foram emprestadas do clássico ‘Alegria do Povo’, de Joaquim Pedro de Andrade.

É o próprio protagonista, André Gonçalves, que reconstitui algumas jogadas, como o treino de admissão no Botafogo, em 1953, quando Garrincha passou a bola no meio das pernas de Nílton Santos (estrela da defesa do time e que se tornaria amigo do jogador) e a Copa do Chile, em 1962.

‘Já foram bastante divulgadas as imagens do jogador fantástico que ele era, por isso nos preocupamos mais com o ser humano’, argumenta Alencar.

O que substitui o jogador em ‘Estrela Solitária’ é o Garrincha amante, com direito a muito sexo.

O filme mostra os casos dele em Pau Grande (cidadezinha no interior do Rio onde ele nasceu), o casamento prematuro com Nair, sua amante Iraci (com quem ele viveu no Rio), até o célebre e controverso romance com a cantora Elza Soares.

De acordo com o diretor, além de resgatar a imagem do ídolo, o filme pretende fazer uma reparação à cantora, que esteve ao lado de Garrincha entre 1962 e 1976 e que, na época, foi considerada a razão da desgraça dele.

‘Elza não é a vilã da história. Os vilões somos nós, o povo brasileiro, que não demos valor a ele’, afirma o diretor. ‘No filme, a gente vê que não é isso, que havia muito preconceito.’

Taís Araújo interpreta a cantora. ‘Antes do filme, tudo o que eu sabia sobre o Garrincha e a Elza era que eles tinham sido amantes. E que ela tinha acabado com a vida dele, aquela visão bastante deturpada’, conta Araújo.

A cantora ajudou na construção do personagem e faz uma participação no final do longa.

A biografia homônima de Ruy Castro é a base do roteiro, há apenas duas cenas que não estão no livro. Os problemas que Castro teve com a família do jogador não se repetiram na produção cinematográfica, segundo o diretor; ele não sabe ao certo se Elza já assistiu ao filme.

O entrecho trata da juventude na década de 50, em Pau Grande, até 1980, três anos antes de sua morte, quando ele foi homenageado pela Mangueira.

É o desfile carnavalesco que conduz a história, narrada por Garrincha em flashback.

O enredo da Mangueira fazia uma homenagem a Garrincha, já bastante debilitado pelo alcoolismo. Outros jogadores participaram do desfile, mas apenas Nílton Santos é retratado.

‘O Pelé estava nesse Carnaval, mas preferimos deixá-lo de lado’, conta Alencar. Pelé não aparece em nenhum momento do filme.

‘Particularmente, tenho um grilo com o Pelé. Acho que ele poderia ter dado uma força para o Garrincha’, diz o diretor.’



José Geraldo Couto

‘Cinebiografia é ilustração pobre do livro de Ruy Castro’, copyright Folha de S. Paulo, 17/02/05

‘Com infinitos matizes possíveis, há duas maneiras básicas de encarar a cinebiografia de uma personalidade real: ou se opta por uma reconstituição naturalista, à americana, como faz ‘Cazuza’, de Sandra Werneck, ou se parte para a estilização, apresentando o personagem como signo a ser decifrado, como faz Julio Bressane em ‘O Mandarim’.

O primeiro problema de ‘Garrincha – Estrela Solitária’ talvez seja o de não ter definido claramente a sua proposta. O resultado é um drama biográfico exangue, que nada acrescenta ao conhecimento e à mitologia do personagem real.

A intenção naturalista é visível, por exemplo, na maquiagem que esticou impiedosamente o belo rosto de Taís Araújo para torná-la, supostamente, parecida com a cantora Elza Soares.

Esse ingênuo mimetismo é contrariado pela tendência à teatralidade da ‘mise-en-scène’: predominância de closes e planos médios, diálogos artificiais (sobretudo quando extraídos diretamente do livro ‘Estrela Solitária’, de Ruy Castro), agravados muitas vezes pela dicção algo solene de alguns atores.

A narrativa tem uma estrutura interessante, mas esquemática: no dia em que será homenageado por uma escola de samba, desfilando num carro alegórico, Garrincha (André Gonçalves) relembra momentos importantes de sua vida, em flashbacks narrados em primeira pessoa.

Previsibilidade

Da juventude em Pau Grande à ruína causada pelo alcoolismo, passando pela glória nos campos e pelas aventuras amorosas, tudo é exibido como uma ilustração melodramática e previsível do livro de Ruy Castro.

A redundância impera. Quando o jovem craque chega ao Rio para fazer um teste no Botafogo, por exemplo, são apresentadas várias imagens de cartão-postal da cidade, com a supérflua legenda ‘Rio de Janeiro’.

Agentes da ditadura militar que invadem a casa de Elza Soares são sádicos que literalmente esmagam passarinhos com as mãos e exibem os dentes podres em risadas sarcásticas.

Personagens mais ou menos célebres dizem as falas que deles se espera. O técnico Gentil Cardoso, em sua primeira aparição, diz: ‘Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência’. O jornalista Sandro Moreyra, ao longo do filme: ‘Tem coisas que só acontecem no Botafogo’.

A falta de jogo de cintura do roteiro chega a surpreender, pois dele participaram grandes conhecedores da fala popular, como Aldir Blanc e João Máximo.

Mas o mais grave de tudo é a incapacidade do ator André Gonçalves, talvez por culpa do roteiro e da direção, de construir um Mané Garrincha crível. Em alguns momentos, o craque fala como um sábio cético, em outros, como um malandro à beira da cafajestice, em outros ainda, como um simples estúpido.

O longa-metragem só ganha vida quando entram as imagens do Garrincha verdadeiro em campo, ou quando a verdadeira Elza canta a linda ‘Bambino’, já sob os créditos finais.

Garrincha – Estrela Solitária

Direção: Milton Alencar Jr.

Produção: Brasil/Chile, 2003

Com: André Gonçalves, Taís Araújo, Henrique Pires

Quando: a partir de amanhã nos cinemas de São Paulo’



Folha de S. Paulo

‘Família do craque faz acordo financeiro; filha elogia adaptação’, copyright Folha de S. Paulo, 17/02/05

‘Ao terminar a pré-estréia de ‘Garrincha – Estrela Solitária’, anteontem à noite, no Rio, Maria Cecília Marques, filha do craque, estava em prantos. Não por não ter gostado do filme, mas por rever o pai como um zumbi no desfile da Mangueira de 1980.

‘Eu me lembrei de como ele estava naquela época. Foi um absurdo ele ter desfilado’, disse Cecília, 44, sexta filha do craque com Nair. Garrincha saiu na escola dopado por um remédio, poucos dias após mais uma internação por causa do alcoolismo.

‘Gostamos do filme. É uma leitura digna da vida dele. Todas as mulheres precisavam aparecer mesmo’, afirmou, evitando polemizar sobre o fato de Elza Soares ter mais destaque do que sua mãe.

Cecília teve dificuldade para reproduzir a árvore genealógica do pai. Não pôde concluir se são 14 ou 15 filhos, mas pelo que se sabe, são 14. Seis foram ver o filme.

Para não enfrentar uma batalha judicial como a que chegou a proibir a circulação de ‘Estrela Solitária’, a biografia de Ruy Castro em que se baseia o filme, a produção fez um acordo prévio: criou 12 cotas para os herdeiros, pagando R$ 3.000 e 0,3% da bilheteria a cada um.

O sueco Ulf Lindberg, gerado durante uma excursão do Botafogo em 1959, não está na partilha. É o único filho homem vivo de Garrincha. Neném, da relação com Iraci, morreu num acidente; Garrinchinha, filho de Elza, morreu afogado. A cantora disse que não pretende ver o filme para não recordar a morte do filho.’



TV & MIGRAÇÃO
Esther Hamburger

‘Televisão afugenta migração nordestina’, copyright Folha de S. Paulo, 16/02/05

‘A TV que um dia estimulou a migração em massa de lugarejos nordestinos para metrópoles do sudeste hoje difunde imagens que afugentam.

Nos anos 70 e 80, São Paulo e Rio de Janeiro, que até hoje produzem quase toda a programação, apareciam como centros do ‘progresso’.

O avanço das antigas antenas -as famosas ‘espinhas de peixe’, que o memorável filme ‘Bye Bye Brasil’ (1979), de Cacá Diegues, mostrou- sinalizava a penetração crescente de imagens das oportunidades oferecidas nas metrópoles afluentes.

O ‘sul maravilha’, além de trabalho, acenava com uma certa liberdade, de escapulir da rígida autoridade paterna, de sair da órbita de influência exclusiva do coronel. A TV oferecia uma janela para um mundo diferente, onde seria possível mudar de vida.

Mesmo que nem todos possuíssem um aparelho, as TVs coletivas, nas praças públicas, tornavam possível o acesso às imagens de um mundo fascinante -e assustador- onde era possível se perder na multidão.

Hoje as antenas parabólicas substituíram as espinhas de peixe. Os aparelhos coletivos permanecem instalados em verdadeiros altares nas praças públicas das pequenas cidades nordestinas. Mas cada casebre, mesmo que precário, possui um desses discos, sugestivamente voltados para o céu.

A TV permite acompanhar a trajetória bem-sucedida dos que, como o presidente Lula, a personagem Maria do Carmo (‘Senhora do Destino’) e muitos outros, vieram na boléia do caminhão.

Mas essa via está interrompida. No lugar dos telejornais locais, espectadores em bucólicas praias nordestinas assistem à programação gerada em São Paulo.

A metrópole que aparece no ‘Cidade Alerta’ (Record) ou no ‘SPTV’ (Globo) é violenta e caótica. Por contraste com a barbárie, as pessoas valorizam seus próprios lugares.

Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’