Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Terra Magazine

ELEIÇÕES 2006
Bob Fernandes

Lula repensa suas relações com a mídia, 30/10/06

‘Na noite do domingo, decretada a vitória e em meio à sua primeira aparição pública depois de matematicamente eleito, o presidente Lula comunicou a meia centena de repórteres que dali por diante modificaria sua relação com a imprensa, e prometeu entrevistas coletivas ‘a toda hora’. O que o presidente não disse, e nem dirá, é que não apenas nesse aspecto pretende rever suas relações com a mídia. Ele irá repensar, também, as relações de poder com grupos de comunicação.

Não apenas o presidente mas também grande parte dos seus mais próximos colaboradores entendem que, apesar do saldo benéfico ao final, o segundo turno se deu por obra e artes de uma reverberação, dramatização e espetacularização de fatos – além da parcialidade – muito adiante do que já se esperava.

Não se discutem, até porque são indiscutíveis, os fatos: o dossiê, o dinheiro, as fotos, o envolvimento de petistas com o grotesco, mais esse, episódio. Mas discute-se, e não pouco, o que é tido como óbvia articulação e intenção na concatenação de episódios, e no ritmo imprimido a esse processo, da mesma forma que corre de boca em boca, de gabinete em gabinete, a seqüência de edições, de capas, de telejornais.

Uma frase, ainda enigmática por desconhecimento da extensão de seus significados, ecoa nos ambientes do poder desde o final do primeiro turno:

-…os interesses existem e não são poucos, vamos ver como serão as conversas no ‘depois’…

O ‘depois’ já chegou.

A ministra Dilma Roussef, da Casa Civil, por exemplo, cada vez mais poderosa e por quem o presidente não esconde o grande apreço que tem, nega, procura negar, um encontro com João Roberto Marinho, das organizações Globo, depois do primeiro turno das eleições.

Se confirmasse e contasse ter ido apenas discutir um assunto qualquer, qualquer assunto, não produziria o mesmo efeito a que conduz sua negativa. Ainda mais depois das dramáticas 72 horas que antecederam ao desfecho do primeiro turno.

À exceção de Luiz Dulci, da Secretaria Geral da Presidência, os colaboradores mais próximos do presidente eram favoráveis a sua ida ao debate na TV Globo.

Da ministra Dilma ao homem do marketing, João Santana; este sagaz, eficiente e, ao contrário do antecessor Duda, silencioso, até demais – como se fosse possível suportar isso num publicitário -, mas tal característica, o silêncio, redundância num sertanejo de Tucano, Bahia.

Tarso Genro, das Relações Institucionais, Gilberto Carvalho, secretário particular, André Singer, da comunicação e porta-voz, Marco Aurélio Garcia, presidente do PT e coordenador da campanha, eram todos, a princípio, favoráveis a ida ao debate na Globo.

A posição entre os colaboradores mais próximos do presidente foi tomada na véspera daquela quinta-feira. Ao final da manhã daquele 28 de setembro, o próprio presidente provocou o assunto, depois de uma reunião no Palácio da Alvorada:

– E o debate?

Naquele instante, quem falou por todos foi a ministra Dilma:

– Olha, presidente, nós combinamos ontem nem tocar nesse assunto com o senhor, não incomodá-lo com isso…

Por volta das cinco da tarde daquele dia, enquanto praticamente toda a mídia apostava na ida do presidente ao debate, Lula, por motivos que serão para sempre apenas seus e pelos que passaria a expor a colaboradores, informou por que não viajaria para o Rio de Janeiro:

– Pela peãozada eu iria, eu sei que eles gostariam de me ver lá, mas eu tenho a responsabilidade de fazer um outro cálculo, que é também político e eleitoral, e tenho que saber o que está por trás disso tudo…

‘Disso tudo’, entenda-se, não apenas o dossiê e a encadeação de fatos até então conhecidos, mas o que até então era desconhecido. O que ainda hoje segue desconhecido. E, principalmente, o que não provocou, ainda não provoca, nenhuma curiosidade, como se fatos dessa magnitude tivessem apenas um lado a movê-los. Como se jabutis subissem em árvores sem a ajuda de alguma, algumas mãos.

Por mais misteriosos que sejam, de parte a parte, os jabutis, as mãos e as árvores, algum dia serão percebidos.

Naquela quinta-feira do debate do primeiro turno na TV Globo, o presidente não escondeu de um dos seus mais próximos o que temia:

-…uma arapuca. Esse filme eu já vi…

Viu, em 1989. Ele, Lula, morreu no final, enquanto Fernando Collor era eleito presidente. No roteiro, uma seqüência de fatos que começou com um ataque pessoal, envolveu sua filha Lurian, e culminou com uma até hoje polêmica edição de um debate.

Esse debate de 2006, o do primeiro turno, trazia embutido um risco que o presidente e os seus levavam em consideração: até onde, do ponto de vista verbal, poderia ir Heloisa Helena, mulher e nessa condição representante da maior fatia do eleitorado e facilmente vitimizável ante uma resposta mais dura.

O risco, esse risco, ainda poderia ser enfrentado, mas havia um outro, desconhecido, não detectável, e o escaldado Lula optou por não enfrentar o imponderável em sua quinta eleição presidencial. Valeu-se, contra a opinião de quase todos, de sua intuição.

Naquela noite, enquanto considerável porção do país acompanhava a performance de Bonner, Heloisa Helena, Cristovam Buarque e Geraldo Alckmin diante de uma cadeira vazia, Lula encerrava sua campanha em São Bernardo do Campo.

Sintomático o contorno do comício; luzes apagadas, por decisão do prefeito, e adversário William Dib (PSB).

No palanque, sorumbático, todo o plantel dos principais ministros e assessores. Uma noitada que anunciava, em toda sua tensão e bola baixa, o que estava por vir: a arapuca intuída por Lula.

Na sexta-feira, início da tarde, a notícia se espalhava entre o reportariado que seguia os passos do presidente numa panfletagem diante da Mercedes e da Ford, em São Bernardo do Campo: o delegado Edmilson Bruno, o mesmo que flagrara as malas de dinheiro e dera partida no escândalo dossiê, vazara fotos do dinheiro para jornais e emissoras de televisão.

Mesmo sem ser conhecido ainda em todos os seus aspectos – inclusive quanto à origem do dinheiro – mais esse episódio se tornaria lendário na história de campanhas à brasileira; não que sejam maiores, ou piores, apenas exibem digitais em verde-amarelo.

Discute-se até hoje, e se discutirá sempre, o que disse o delegado ao entregar as fotos, (leia aqui) e o que não se disse do dito pelo delegado até que o estrago tivesse sido feito.

Na noite da sexta-feira, dia 29 de setembro, quando o Jornal Nacional pontuou quase toda sua edição com fotos do dinheiro, depoimentos a respeito, e mesclou o fato com a repercussão do debate na noite anterior, o presidente Lula teve reforçada suas convicções quanto à decisão da véspera.

Pergunta um palaciano, e embute a resposta na indagação:

– Imagine a Heloisa Helena se permitindo dizer o que quisesse, ofendendo o presidente da República, e essa fala, junto com as fotos do dinheiro, sendo ‘colada’ ao presidente nas edições dos telejornais na sexta e no sábado, e repetidas por todo o segundo turno?

Quem conhece o presidente Lula, acompanha sua trajetória desde o início, com ele convive ao longo de quase 30 anos e cinco eleições presidenciais, sabe que sua relação com a mídia foi sempre pendular, e quase sempre saudável nos andares de baixo.

Se por um lado é profunda a compreensão da importância vital e inescapável do papel da imprensa e de todo esse jogo, por outro permanece a desconfiança ante incontáveis e reiteradas manifestações de parcialidade, de demonstrações de que o jornalismo, ao contrário do que alardeia e faz de conta crer, tem lado. E que o lado é quase sempre o mesmo.

No primeiro mandato, em grande parte dele, prevaleceram a desconfiança e o distanciamento. Para o segundo mandato o presidente e seu porta-voz, André Singer, anunciam maior proximidade, contatos mais intensos com jornalistas, mas paira no ar a decisão de refletir, e agir, ante eventuais macro-desequilíbrios nessa relação.

A grosso modo isso é o que pensa hoje a porção mais decisiva do poder político, do Executivo.

Sintomas e conseqüências desse desequilíbrio estão por aí.

Não foi obra do acaso o ensaio de apupos de alguns cardeais petistas a William Bonner quando este, num intervalo do debate-quase-programa-de-auditório da sexta-feira 27, reclamou da interferência de celulares e ameaçou mandar recolher telefones ‘independente da patente’. Da mesma forma não passaram desapercebidas as palavras do apresentador ao final do encontro:

-…e parabéns aos candidatos pelo comportamento exemplar no debate…

Entendeu-se que o singelo cumprimento, mais do que um deslize provocado pela empolgação, carregou um manifesto antropológico.

Minimalístico, perdido em meio a uma frase do astro do telejornal, o testemunho de um tempo e de suas relações de poder.’



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